Diante da contaminação da soja gaúcha exportada para a China com sementes envenenadas, o RS corre o risco de jogar fora uma credibilidade construída por décadas. O pior é que muitas pessoas com responsabilidade tanto da área governamental quanto privada se esforçam para nos convencer de que tudo não passa de uma barganha comercial dos chineses.
Que bom se assim fosse. Mas infelizmente não é só isto. A China tem uma preocupação maior do que alguns países de Primeiro Mundo quanto ao controle da qualidade alimentar, tanto que possui um ministério estruturado só para isto.
Em segundo lugar, é no mínimo ingenuidade acreditar que a presença de sementes envenenadas é apenas um pretexto para a devolução de cargas. Teriam outros pretextos mais plausíveis, como o nível de resíduo de glifosato, que na soja transgênica é maior e, não raro, acima dos padrões admitidos pela Organização Mundial da Saúde.
Aos que acreditam na teoria do pretexto, um alerta. Só tem um jeito para acabar com os pretextos: eliminar os motivos que os originam. E aqui vai um rol deles: semente envenenada, sujeira, resíduo de agrotóxicos, transgenia, excesso de umidade, mofo etc.
Vamos ao que de fato aconteceu. No início de 2003, o governo federal proibiu o plantio da soja transgênica. Os sojicultores adquiriram a semente convencional, mas meses depois, atendendo a pressões políticas das mais
diversas, foi liberado o plantio de mais uma safra modificada. Com isso, muita soja transgênica foi plantada e sobrou a semente convencional.
Aí reside o fato novo relevante: a semente tratada com veneno ficou na mão de produtores por ocasião da colheita da safra. Até então a semente excedente ficava com as sementeiras e nem por isso elas eram misturadas nas cargas de soja comercial. Qualquer agricultor sabe que semente de cor avermelhada contém veneno. Assim, misturar semente envenenada com o grão comercial foi um ato consciente, portanto, criminoso.
O grave é que muitos inocentes estão pagando esta conta: a maioria absoluta de sojicultores que não cometeram o crime e que estão perdendo até 20% no
preço da sua produção, as cooperativas, que ficam com a soja estocada, o país, que vê o seu PIB e a balança comercial afetados, e, por último, os consumidores, que vão ingerir os derivados desta soja sem saber o grau de contaminação e nem os eventuais males a ela associados.
Por que chegamos a este ponto? Uma análise honesta e isenta indicará que esta contaminação tem relação direta com o plantio ilegal da soja transgênica. Sem ela, não teríamos chegado ao ponto de ter excedente de
semente envenenada na mão de agricultores. E, principalmente, sem ela, nãoteríamos chegado a esta cultura da desobediência civil generalizada no campo. Se pudemos plantar soja transgênica, que é proibida, por que não misturar semente envenenada com grão comercial?
Portanto, além dos autores da mistura, tem mais gente responsável. Falo das lideranças que estimularam o plantio ilegal, venderam facilidades, iludiram e enganaram os agricultores, os mesmos que esconderam dos sojicultores opagamento dos royalties para a indústria. Infelizmente, o estrago está feito. Agora, precisamos todos nos debruçar na tarefa de preservar a
qualidade do alimento derivado da nossa soja e de recuperar a credibilidade no mercado internacional.
No governo Olívio Dutra, buscamos valorizar a agricultura familiar e o agronegócio. Barramos a entrada de arroz asiático triangulado pelos parceiros do Mercosul, não permitimos que a nossa carne suína e avícola perdesse mercados por causa dos focos de aftosa e enfrentamos com firmeza uma tentativa dos chineses de desqualificar a nossa soja, sob a alegação de que uma carga chegara a Pequim parcialmente mofada. Provamos que a soja mofada era argentina, de um navio que carregara em Buenos Aires e aqui só
completara a carga. A partir daí, os chineses aumentaram as compras do produto gaúcho.
Esta é a agenda que se impõe aos setores público e privado, sem o oportunismo político e o imediatismo, propulsores do plantio ilegal da soja transgênica aqui no Rio Grande.
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José Hermeto Hoffmann é ex-Secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul