Neste mês de agosto, o tema debatido na reunião mensal da Coordenação Executiva da ASA foi sementes crioulas. Luciano Silveira, da ASP-TA, e Flávia Londres, consultora na área de biossegurança da ASP-TA e na área de sementes para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), além de integrante do Grupo de Trabalho em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), dividiram a exposição. A conversa versou sobre a relação das civilizações com as sementes e a prática agrícola, as estratégias comunitárias e familiares de conservação e distribuição das sementes, as pressões da agricultura dita “moderna” sobre o modelo tradicional e as políticas públicas que enfraquecem ou fortalecem a resistência das sementes crioulas. Numa tentativa de compartilhar um pouco do conteúdo apresentado, a jornalista Verônica Pragana, da Assessoria de Comunicação da ASA (Asacom), entrevistou Flávia Londres. Confiram a entrevista!
Asacom – Podemos contar a história da humanidade a partir da relação do homem e da mulher com as sementes?
Flávia Londres – A história das civilizações está profundamente ligada à história do homem e da mulher com a seleção de sementes e a prática da agricultura. Essa relação ela teve origem há cerca de 12 mil anos. As pessoas começaram a perceber que podiam cultivar as plantas, plantar as sementes, selecionar aquelas plantas de mais interesse. Esse processo vem se desenvolvendo ao longo dos milênios e continua até hoje. Em todo o mundo, comunidades agricultoras selecionam e conservam sementes, realizando, safra após safra, o melhoramento das plantas a partir de variados critérios.
Asacom – Quais as diferenças entre o melhoramento de sementes feito pelos/as agricultores/as e as realizadas pelos centros de pesquisa?
Flávia Londres – O melhoramento genético realizado nos centros de pesquisa, tanto públicos como privados, busca criar variedades de alta produção, mas que para alcançarem seu potencial produtivo precisam ser manejadas nas chamadas “condições ótimas de cultivo”, que em geral são obtidas através da artificialização do meio com a correção do solo, a adubação química e a irrigação. E por serem extremamente homogêneas, essas lavouras tornam-se vulneráveis ao ataque de pragas e doenças, que são então combatidas com o uso de agrotóxicos.
A seleção das variedades crioulas tradicionalmente realizada pelos agricultores familiares, ao contrário, não é focada somente na produtividade. Tomando-se como exemplo a cultura do milho, características como a produção de palha, importante para alimentação dos animais da propriedade, o porte das plantas e a espessura do colmo, que serve de sustentação para culturas trepadeiras cultivadas em consórcio, o fechamento das espigas, que protege os grãos do ataque de insetos durante o armazenamento, ou a resistência a períodos secos, podem ser tão ou mais importantes para os agricultores quanto a produtividade dos grãos. Características como o sabor ou o tempo de cozimento também são levadas em conta. O manejo da diversidade é outro componente importante desses sistemas, conferindo a eles maior segurança.
Asacom – Podemos dizer que a desvalorização das sementes crioulas é uma das facetas da invisibilidade do Semiárido, das famílias agricultoras, das comunidades tradicionais?
Flávia Londres – Isso não acontece só no Semiárido. Em outras regiões o processo de substituição das sementes crioulas pelas sementes comerciais foi até mais agressivo. A partir da década de 1960, foi implementada, no Brasil e em muitos outros países, uma série de medidas no sentido de difundir o pacote tecnológico da chamada “Revolução Verde”, baseada na utilização de sementes melhoradas, na mecanização, na irrigação e no uso intensivo de insumos químicos. Houve um esforço articulado para a difusão desse modelo, que envolveu universidades, centros de pesquisa, órgãos de extensão e políticas de crédito. Nesse processo estavam incluídas estratégias que buscavam a substituição das sementes tradicionais pelas sementes comerciais melhoradas. E até hoje predomina, tanto entre pesquisadores como entre gestores que elaboram e executam políticas públicas nessa área, a ideia de que as sementes crioulas são material de baixa qualidade. Há de fato uma desvalorização tanto das próprias sementes, como das estratégias comunitárias de conservação e gestão dos recursos genéticos locais.
Asacom – Por que no Semiárido não foi tão violento. O que protegeu o Semiárido, de certa maneira, dessa invasão do pacote tecnológico?
Flávia Londres – Em regiões onde o modelo de agricultura convencional se difundiu de forma mais generalizada, como no Sul e no Sudeste, as pressões para a substituição das sementes crioulas foi ainda maior do que no Semiárido. Muitas sementes tradicionais desapareceram, só existem na memória dos agricultores mais antigos.
No Semiárido, esse processo talvez tenha sido um pouco menos intenso, pois os agricultores sabem que, sobretudo em função do regime irregular de chuvas, a segurança de suas lavouras depende do emprego de sementes altamente adaptadas, bem como do manejo de uma grande diversidade de espécies e variedades. Uma lavoura que não vinga porque foi plantada com uma semente não adaptada e não resistiu à seca pode representar a fome da família.
É dessa sabedoria que vêm a tradição e o esforço das famílias e comunidades do Semiárido de conservar suas sementes locais, mesmo com toda a propaganda e a pressão pela sua substituição. A diversidade de variedades de sementes encontrada em comunidades rurais da região é impressionante.
Apesar disso, a pressão pela substituição das sementes locais existe, e muitas variedades estão desaparecendo. Um exemplo nesse sentido são as políticas de distribuição de sementes que ignoram as variedades de sementes produzidas localmente e promovem a difusão de sementes comerciais aos agricultores familiares.
Asacom – E com relação à resistência das famílias agricultoras, você acha que este fator conta também?
Flávia Londres – Sim, outro aspecto fundamental relacionado à conservação das sementes locais pelas famílias e comunidades agricultoras está ligado à busca de autonomia: trata-se de ter sementes próprias para plantar quando a chuva chega, e não depender de semente do prefeito ou do patrão. Historicamente, as sementes estiveram ligadas a relações de poder, eram trocadas por votos, favores ou cedidas em relações de forte exploração, em troca de metade ou da terça parte da produção. A resistência e a organização das famílias agricultoras no Semiárido se desenvolveram, portanto, como uma forma de enfrentar essas dificuldades.
Asacom – Quais as principais críticas ao modelo atual de distribuição de sementes adotado pelo governo federal e estaduais?
Flávia Londres – A principal crítica feita pela sociedade civil organizada é o fato de essas políticas de distribuição de sementes, em geral, não reconhecerem o valor das sementes crioulas, a importância do seu uso para a segurança e a reprodução dos sistemas produtivos das comunidades rurais, e nem as estratégias coletivas de conservação, difusão e uso de sementes crioulas, que incluem os bancos de sementes comunitários, as redes de bancos, os sistemas de trocas, as feiras de sementes.
Ao não reconhecerem o valor das sementes locais e das estratégias comunitárias de gestão, as políticas acabam sendo baseadas na distribuição individualizada de poucas variedades comerciais, melhoradas em centros de pesquisa e frequentemente pouco adaptadas às condições locais. Em alguns casos são distribuídas sementes híbridas, que sequer se prestarão ao plantio na safra seguinte à da distribuição, o que reforça a relação de dependência dos agricultores em relação ao insumo.
Em outros casos são distribuídas sementes da Embrapa de polinização aberta – as sementes chamadas “varietais” ou “variedades”, que podem ser plantadas por sucessivas gerações sem perder suas qualidades e o potencial produtivo. Nesses casos, entretanto, distribuem-se poucas ou uma única variedade de milho e de feijão em regiões inteiras. Essa semente única que chega de fora acaba muitas vezes competindo com os esforços de conservação dos recursos genéticos locais, bem como desmobilizando as estratégias de organização comunitária para a conservação de sementes crioulas.
Asacom – Isso acaba com toda a malha genética das sementes locais…
Flávia Londres – Dependendo da forma como essa distribuição acontece na ponta, se não tem o trabalho de estimular os agricultores a continuarem guardando e conservando essas sementes, esse risco existe.
Asacom – E agora com a atual grande seca, esse risco está mais iminente.
Flávia Londres – Exatamente. Depois de tantos anos de seca, muitas famílias acabam perdendo as sementes que tinham. E as que recebem de fora substituem as que elas conservavam, podendo causar a perda de variedades de sementes.
Asacom – Em outubro, a ASA realiza o 3º Encontro de Agricultores e Agricultoras Experimentadores e um dos temas a ser tratado é a semente crioula. Qual a importância de espaços como esse para discutir o nobre papel das famílias agricultoras de guardiãs das sementes crioulas?
Flávia Londres – É sempre muito importante aproveitar os espaços de formação para trazer essa questão. Existe uma tradição familiar e comunitária dos agricultores do Semiárido de conservar as sementes locais de geração para geração, até por uma questão de necessidade. Eles sabem que aquela semente vai produzir em ano de seca, que consegue resistir a uma condição específica.
Esse trabalho de conservação tem uma série de dificuldades. Ele sofre pressão pelas sementes que chegam pelo governo, por todo um incentivo dele adotar outro modelo de produção.
A conservação de sementes muitas vezes está isolado em pequenas comunidades, em famílias, e a articulação desses agricultores e a valorização do trabalho dos guardiões de sementes, que está invisibilizado, são fundamentais para a própria conservação dos recursos genéticos locais. E isso pode levar a um aumento de escala dessas sementes.
Por Verônica Pragana – ASACom
Fonte: www.asabrasil.org.br