Demarcando territórios livres de transgênicos e agrotóxicos, casas da semente são um caminho para preservação da cultura e agrobiodiversidade
Trabalho coletivo e solidário. Este é o fio que tece as ações em rede do Grupo Coletivo Triunfo desde fevereiro de 2010, quando foi criado. A inauguração da Casa da Semente e da Agrobiodiversidade, no município de Fernandes Pinheiro, centro-sul do Paraná, é a materialização desse trabalho e de um antigo sonho, compartilhado por muitas pessoas. Ali, na casa da família Santos, mais de 150 pessoas, vindas de 19 municípios do Paraná e Santa Catarina, se reuniram no dia 1 de dezembro para celebrar a vida.
A família Santos, com Dona Terezinha, Seu Silvestre, a jovem Jaqueline e os outros cinco filhos, acolheram a construção da Casa da Semente, concretizando um sonho coletivo de muitos anos. “A gente entendeu, dentro do Coletivo Triunfo, que ter uma casa comunitária seria importante para organizar nosso trabalho, ajudar na seleção e beneficiamento das sementes e aumentar a nossa capacidade de distribuição para as outras pessoas do grupo que às vezes não conseguem nem plantar, porque tem gente da cidade também”, conta o guardião.
Como se tivesse sido ontem, lembram da primeira reunião do grupo, na casa de outro antigo guardião – o sorridente Seu Taborda, músico-agricultor de 76 anos do município de São João do Triunfo, comunidade do Rio Baio. As e os integrantes do coletivo vêm principalmente de associações comunitárias, sindicatos e cooperativas de agricultura familiar. Integram também professoras/es e estudantes de instituições públicas de ensino – técnicas e superiores, gestores públicos e assessores técnicos.
O Grupo Coletivo Triunfo atua na organização comunitária voltada à ação, fortalecimento e promoção da agroecologia a partir da formação e troca de experiências entre áreas de agricultura familiar camponesa. Nestes espaços, busca fomentar o debate sobre a preservação da agrobiodiversidade, o uso de agrotóxicos e a defesa das sementes crioulas contra a contaminação por transgênicos.
Mas, para contar essa história, precisamos voltar um pouco mais na memória.
Caminhos que se cruzam
Compreender a trajetória camponesa da região, seu antigo trabalho de preservação dos recursos genéticos e o atual cenário na defesa contra a contaminação dos transgênicos é fundamental. “Em 1976, eu tinha quase 20 anos de idade, nós plantamos os primeiros pés de milho híbrido que vieram de fora da propriedade. Até então eu lembro que sempre 100% das sementes cultivadas eram crioulas e nós trabalhávamos na seleção delas. Hoje eu tenho uma variedade de milho que escolhi manter e guardar enquanto puder, decidi manter apenas uma para que fique segura e eu tenha certeza de sua preservação e melhoramento”, conta José Lemos Licheski, agricultor guardião de São Mateus do Sul e integrante do coletivo.
O avanço do agronegócio – e, com ele, o cultivo das sementes comerciais e o uso intensivo de agrotóxicos – resultou em grande perda das variedades genéticas e práticas tradicionais da região. Antes, o milho branco e o trigo eram muito presentes nas férteis terras paranaenses. Hoje, quase não se vê nenhum dos dois, o trigo principalmente.
Diante dessa elevada perda de variedades locais e da crescente contaminação das variedades crioulas de milho por transgênicas, o cuidadoso trabalho das famílias guardiãs, realizado muitas vezes de forma individual, assumiu um papel ainda mais importante.
Em 1993, a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia se instala na região para prestar assessoria às organizações da agricultura familiar. André Jantara, assessor técnico da organização, conheceu Seu Silvestre em 2002, quando este trabalhava na construção de um pedágio para aumentar a renda da casa. Nesse período, a propriedade da família localizada em Fernandes Pinheiro, seguiu sendo manejada por Dona Terezinha juntamente com os filhos.
“Nos conhecemos num dia de campo em que produzimos dois mil quilos do adubo da independência, a responsabilidade durante todo o processo foi compartilhada: a cada dia alguém ia mexer o adubo e nós dividimos tudo no final”, relembra Seu Silvestre. A partir daí esta forte rede começa a ser tecida.
O trabalho desenvolvido pela AS-PTA em parceria com a Universidade Estadual de Londrina reaproximou o guardião de suas sementes. Diversos experimentos foram realizados, com plantio de roças de feijão e milho, principalmente.
O próximo passo, dado coletivamente, foi a participação nas festas e feiras das sementes crioulas e da agrobiodiversidade. A primeira experiência foi no município de Anchieta, em Santa Catarina, no ano de 2004. A articulação local, partindo das ações e demandas do próprio território, impulsionaram a organização de festas e feiras regionais no estado do Paraná.
Para Dona Terezinha a chegada da AS-PTA potencializou a organização do trabalho e a articulação entre as redes. “Além desse apoio, houve uma multiplicação de variedades que eles trouxeram, junto com a experiência da adubação verde”.
De lá para cá – agindo sempre a partir dos territórios, os nós de nossas redes enraízam assim como as sementes crioulas semeadas, e dão frutos. Somente em 2018 foram mais de 15 festas e feiras organizadas no estado do Paraná. A preservada Baía de Guaraqueçaba, região litorânea de muitas comunidades e povos tradicionais, acolheu a sua primeira feira de sementes. As famílias guardiãs do centro-sul estiveram presentes. Apoio mútuo e construção coletiva.
As inspirações ao longo do processo
Conservar as sementes é algo presente nas famílias camponesas, pois significa a continuidade do plantio, significa a sua soberania. Os intercâmbios entre agricultoras e agricultores e a forte articulação com os movimentos sociais do campo e da cidade e organizações que trabalham na promoção da agricultura familiar e agroecologia, como a AS-PTA, possibilitam a troca de experiências e cultivam a esperança.
Uma das inspirações para a materialização da Casa da Semente e Agrobiodiversidade de Fernandes Pinheiro veio do encontro do Grupo Coletivo Triunfo com Dona Vilma e Seu Isaac, família guardiã de Francisco Beltrão, região sudoeste do Paraná, em 2017. Em uma área de 4 hectares, mais de 400 variedades são preservadas a mais de dez anos pelo casal em um pequeno casebre. Para o guardião, as feiras são espaços fundamentais na diversificação, multiplicação e disseminação das sementes crioulas, pois “é possível trazer novas variedades para cá e também possibilita que as nossas sementes cheguem em outras comunidades. As casas ajudam nesse processo de organização porque centralizam as variedades em um local mas a sua distribuição é livre e aberta. Existe a troca”.
Os intercâmbios e vivências fortalecem os nós de nossa rede, pois conectam as famílias guardiãs, seus conhecimentos e suas práticas tradicionais. Em diálogo com outras experiências apoiadas pela AS-PTA, integrantes do Grupo Coletivo Triunfo visitaram a Rede Sementes da Paixão, que atua na defesa da vida há mais de 20 anos no semiárido paraibano. A potência desses encontros pode ser vista na riqueza do patrimônio genético e fortalecimento dos territórios e redes locais contra a contaminação dos transgênicos.
O recado da juventude
Jaqueline dos Santos, de 14 anos, é a filha mais nova da família e foi nomeada a primeira Guardiã Mirim das Sementes Crioulas em 2015, durante a 13ª Feira de Sementes de Santa Catarina. Agir coletivamente na multiplicação e preservação das sementes para as futuras gerações são algumas das responsabilidades compartilhadas pela guardiã. As feiras, para ela, são momentos de união e amor, “eu digo amor porque assim como conserva a vida e a saúde, possibilita que a gente conheça pessoas novas e suas histórias”.
Foi a partir das feiras que as juventudes se encontraram. E, como toda semente, a casa de Fernandes Pinheiro também tinha o seu tempo para germinar e crescer. Em uma terra já fértil, parte do adubo veio do encontro com o curso de agroecologia da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral e o Projeto de Extensão Sementeia.
O projeto, que busca participar de espaços de troca, fomentar o debate da conservação dos recursos genéticos no litoral do estado e criar um espaço físico para ter a experiência de multiplicação e organização, floresceu junto com a casa da família Santos. Em dois mutirões, um grupo da UFPR ajudou na materialização do antigo sonho.
Utilizando técnicas de bioconstrução, paredes foram erguidas e desenhos coloriram o espaço. Em um lado das prateleiras, o artesanato de mulheres guardiãs, como o de Jaqueline. Noutro, livros sobre agroecologia e vivas memórias de uma rica herança armazenada em garrafas pet, pequenos potes e sacos. O importante é mantê-las protegidas e disseminadas.
É também a partir das casas e feiras, que a juventude rural das escolas do campo descobre a riqueza genética presente em seu cotidiano. A Casa de Fernandes Pinheiro recebeu, em sua inauguração, variedades coletadas pelo Projeto de Extensão Laboratório em Educação do Campo do Instituto Federal do Paraná, que apoia a organização de feiras e diálogos com as juventudes dos municípios da região de Irati.
Trabalho coletivo e solidário em defesa da vida e na preservação de nossa memória genética. Guardiãs e guardiões, de todas as idades, semeando a esperança, multiplicando as sementes e colocando na terra a vida.
Em um agradecimento ao delicado e amoroso trabalho desenvolvido por todas as famílias guardiãs, versos do jovem poeta capixaba Humberto Junior, que nos inspira a seguir caminhando.
Semente Crioula
Ó Semente Crioula
Por ti que começamos
A nos entender como gente
E na revolução nos criamos
Eu falo da revolução agrícola
E do começo da agricultura
Entre idas e vindas
Direcionar nossa cultura
Mas, não está sendo assim tão fácil
Estão te transformando
E com um enorme gorgulho te dizimando
Que triste, um verdadeiro descaso
Os transgênicos são agressivos
Já não basta a tal importância que o dão
E o desequilíbrio ambiental
Eles querem tirar a senhora do chão
Ó semente crioula
Eles vêm, e
Roubam nossa semente
Roubam nossa cultura
Roubam nossa família
Roubam nossa luta
Roubam nossa genética
Roubam o conhecimento do agricultor
E logo os ladrões vendem
Vendem nossa semente
Com vários problemas
Vendem agrotóxicos
Vendem adubos
E tomam conta da indústria farmacêutica
E todos entram nesse ciclo vicioso
Ó semente crioula
É mesmo contigo que falo?
Pois depois de tantos transgênicos
Estão contaminando vocês
Mas, não deixaremos
Nós estamos aqui
A maioria da alimentação brasileira
Vem de vocês
Por isso vamos persistir!
Semente crioula
É tradição
É cultura
É alimentação de milhões
É amar a terra
É respeitar nosso alimento
É a natureza
É a sustentabilidade
É a agroecologia
É a agrofloresta!
É a senhora nossa crioula, que devemos saudações!
Texto e fotos: Por Luiza Damigo