A formação de estoques é parte da história de vida dos/as agricultores/as familiares do Semiárido. Armazenar sementes, água e alimentos tem permitido que as famílias atravessem períodos críticos de seca. Os Bancos e Casas de Sementes, assim como as cisternas, são equipamentos bastante disseminados na região para o armazenamento de recursos. Além de armazenar sementes com qualidade, os bancos e casas comunitárias garantem o fortalecimento de práticas coletivas associadas a estratégias de valorização e de cuidados com a agrobiodiversidade. O aprendizado que vem do Semiárido é sobre estocagem solidária que permite que as famílias intercambiem fazeres e conhecimentos e fortaleçam o entendimento coletivo de que as sementes crioulas são um bem comum a ser protegido.
“As Casas de Sementes trouxeram autonomia”, afirma a agricultora e representante do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs) Cleide Pereira, do município de Forquilha, no Ceará. A visão de Cleide é compartilhada em diferentes lugares do Semiárido brasileiro, onde o armazenamento coletivo de sementes é entendido como uma prática associada à busca pela liberdade, pela conservação da agrobiodiversidade e pela garantia de alimentos com o cair das chuvas.
O armazenamento doméstico de sementes é reconhecido pelos/as agricultores/as do Semiárido como uma prática realizada “desde sempre” e remete a saberes que através das gerações vêm permitido a seleção e o armazenamento de variedades adaptadas às condições locais. O surgimento de formas coletivas de guardar as sementes levam-nos à década de 1970 e ao interior do Ceará como discutem Almeida e Cordeiro (2002) [1]. Os primeiros movimentos de armazenamento coletivo se iniciaram na região de Tauá-CE e foram dirigidos por Organizações Não Governamentais (ONGs), religiosos, STTRs e agricultores/as. Em relatos da época [2] a maior motivação dessas ações conjuntas, além de garantia de sementes para o plantio, era problematizar a situação que enfrentavam os/ agricultores/as frente à tríade – patrões, território e seca:
Naquele tempo não tinha semente nenhuma para plantar. O agricultor tinha que correr pra qualquer lado para conseguir na hora da chuva plantar na sua roça. E daí vinha a exploração. Quem não tinha semente era obrigado a pagar [para o patrão] ou não plantava (ESPLAR, 1992, p. 16).
Esse relato de um agricultor cearense dá a exata dimensão de como era difícil assegurar sementes para o plantio nos anos 1970. O que se impunha sobre os agricultores/as era uma “dependência em relação aos patrões”. Eles controlavam a terra e o território obrigando os/as agricultores/as a se submeterem a regimes específicos de trabalho. Devido às secas seguidas, os estoques de sementes de grande parte dos/as agricultores/as se esgotavam. Com isso, ficavam dependentes dos “patrões” também para plantar seus roçados. Quando as chuvas chegavam no Semiárido “[…] ao invés do trabalhador ir para sua própria roça, ia trabalhar primeiro na roça do patrão. Fazer primeiro a planta dele para depois fazer a sua. E, nessa agonia, os trabalhadores vinham quase perdendo a safra” (ESPLAR, 1992, p. 17).
Os bancos de sementes comunitários passam então a ser organizados como estratégias de assegurar disponibilidade de sementes aos/às agricultores/as “na hora certa”, quando o céu anuncia que “está bonito para chover”. Naquele tempo, as sementes foram compradas pela parceria entre os STTRs as Dioceses e armazenadas nos próprios Sindicatos. Nos relatos de Padre Bernardo Holmes, um dos religiosos envolvidos à época, destaca-se que a constituição dos Bancos nunca foi apenas sobre sementes, mas sobre organização política para enfrentar as situações de domínio da terra e o “cabresto que os patrões colocavam nos agricultores”. A luta era contra as relações trabalhistas impostas pelos patrões, o domínio da terra e dos bens naturais pela elite e, também, pela garantia de auto-organização, constantemente sufocada durante a década de 1970 e 1980 pelo regime autoritário implantado com o golpe de 1964: “nós tivemos uma época em que a coisa era complicada. Onde a gente estava era vigiado. Se ia fazer uma reunião era preciso ser escondido mesmo” (ESPLAR, 1992, p. 17).
A luta pelas sementes e pela garantia de direitos dos/as agricultores/as no Semiárido se fortaleceu ao longo dos anos. Atualmente, é possível encontrar Bancos e Casas de Sementes em cada estado do Nordeste, geridos pelos/as agricultores/as em sistemas de empréstimo e devolução que têm garantindo acesso perene a sementes de qualidade e no tempo certo do plantio [3]. Dentre as ações encampadas por agricultores/as, STTRs e ONGs é preciso destacar o trabalho de resgate de variedades crioulas como forma de identificar sementes que estavam há gerações sendo selecionadas por agricultores/as e que pela atual ameaça de contaminação por variedades híbridas e transgênicas, estavam desaparecendo.
Na Paraíba, na região da Borborema, agricultores e agricultoras se organizam por meio do Polo da Borborema, que envolve 13 STTRs e aproximadamente 150 associações comunitárias, além de uma organização regional de agricultura ecológica, a Ecoborborema. Há hoje, no território, 60 bancos de sementes crioulas que envolvem 1.280 famílias sócias e que abasteceram mais de 4 mil famílias em 2019. São armazenadas nesses bancos 13 espécies e mais de 130 variedades. Em 2019 esses bancos armazenaram cerca de 24 toneladas de sementes. Assim como grande parte do Semiárido, o território da Borborema enfrentou recentemente cinco anos de seca. Em períodos semelhantes nas décadas de 1980 e 1990 os estoques domésticos de sementes dos/as agricultores/as chegaram a esvaziar completamente. O cuidado com a agrobiodiversidade, pela diversificação dos plantios e pela conservação das variedades locais, tem permitido que mesmo diante do período prolongado de estiagem os/as agricultores/as estejam semeando seus roçados e quintais.
Em 2016, os/as agricultores/as da Borborema começaram a enfrentar processos acelerados de erosão genética de suas sementes devido à contaminação por variedades transgênicas de milho. Como estratégia para enfrentar a situação, o Polo e a AS-PTA lançaram a campanha “Não Planto Transgênico para não Apagar Minha História”. Uma das iniciativas da Campanha foi a construção, em 2018, de uma unidade de beneficiamento de milho. A ideia foi a de agregar valor às sementes de milho crioulo. De acordo com Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA, a primeira parte dessa ação envolveu um mapeamento das famílias guardiãs das “sementes da paixão” que produzem milho. Os grãos são testados para certificar que se estão livres de transgênicos. Certificada a qualidade, são transportados até a unidade regional de produção de derivados de milho no município de Lagoa Seca-PB. Foram moídos, em 2019, sete toneladas de grãos de milho, beneficiadas em 3.135 kg de fubá, 906 kg xerém, 1.231 mungunzá e 1.524 kg de farelo para consumo animal.
Dentre os produtos, o de maior sucesso é o Fubá da Paixão, componente base do cuscuz, receita típica e cotidiana da alimentação nordestina. Os produtos beneficiados são comercializados em 14 feiras agroecológicas e em 15 pontos fixos, entre quitandas e armazéns especializados na comercialização de produtos agroecológicos.
Os Bancos e Casas de Sementes e as estratégias de agregação de valor às variedades crioulas têm trazido autonomia aos/às agricultores/as ao garantirem a disponibilidade de sementes a cada safra. Além de gerar renda adicional para os/as agricultores/as, as ações de beneficiamento e comercialização do milho crioulo têm assegurado o consumo de alimentos livre de transgênicos e agrotóxicos para um público cada vez mais consciente do valor da agricultura familiar para a sua saúde e para o conjunto da sociedade. As práticas coletivas historicamente constituídas no Semiárido nos ensinam que enfrentamentos a crises alimentares e de abastecimento requerem olhares políticos, solidariedade compartilhada e agricultura familiar.
[1] ALMEIDA, P.; CORDEIRO, A. Sementes da Paixão: estratégia comunitária de conservação de variedades locais no semi-árido. Paraíba: AS-PTA, 2002.
[2] Os relatos foram retirados do Relatório I Encontro da Rede de Intercâmbio de Sementes do Ceará, 1991, produzido pela Organização Não Governamental cearense ESPLAR em 1992 e gentilmente cedido à autora.
[3] Por meio do Programa Sementes do Semiárido, coordenado pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), foram construídos 708 Bancos de Sementes distribuídos por todos os estados do semiárido brasileiro. A quantidade de Bancos, contudo, é ainda maior, pois são implantados e fomentados por múltiplos projetos conduzidos por ONGs e, ainda, construídos de forma autônoma pelos/as agricultores/as.