O biólogo estadunidense Garrett Hardin escreveu, em 1968, um artigo que o tornou famoso. De acordo com esse autor, os bens geridos coletivamente tendem a se exaurir mais rápido. Essa tese, denominada pelo autor de “tragédia dos comuns” parte do princípio de que cada ser humano, perseguindo seu próprio interesse, explora os recursos além de sua capacidade de suporte, pois considera que os benefícios são individuais ao passo que os prejuízos são divididos por todos/as. As histórias que contaremos aqui são completamente diferentes. Elas apontam para caminhos possíveis de manejo da natureza mobilizados por redes de agroecologia que, em distintos territórios, têm garantido vida digna a mulheres e homens.
O estudo “Redes de Agroecologia para o desenvolvimento dos territórios: aprendizado do Programa Ecoforte”, conduzido pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), no período de 2017-2020, sistematizou a experiência de 25 redes de agroecologia presentes em todas as regiões brasileiras. Todas foram apoiadas pelo Programa Ecoforte (financiado pela Fundação Banco do Brasil – FBB, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e pelo Fundo Amazônia). A pergunta que guiou a sistematização pode ser sintetizada da seguinte maneira: por que é importante apoiar as redes territoriais de agroecologia? Dentre as respostas destacadas, está a capacidade dessas redes, compostas por um tecido organizativo diverso – representações de agricultores/as, indígenas, quilombolas, seringueiros e camponeses/as – entidades de assessoria, agentes econômicos locais, pesquisadores/as, educadores/as, estudantes, consumidores/as, gestores/as públicos de colocarem em prática ações voltadas à reestruturação dos sistemas de produção e de abastecimento alimentar segundo os princípios da agroecologia.
As Redes sistematizadas têm origens em momentos distintos, sendo algumas constituídas ainda na década de 1970, enquanto outras emergiram já na década de 2010.A sistematização dessas experiências em rede revelou-se uma oportunidade ímpar para o intercâmbio entre elas. As práticas de conservação e manejo das sementes crioulas figuram de forma recorrente nas redes, articulando os saberes dos/as agricultores/as e povos e comunidades tradicionais com a conservação da biodiversidade e a produção de alimentos saudáveis, livres de transgênicos e agrotóxicos.
No norte de Minas Gerais, a Rede Sociotécnica do Sertão do Norte Mineiro conta com a ciência do povo indígena Xacriabá para o trabalho realizado com as sementes. Na Terra Indígena Xacriabá (TIX) há três bancos de sementes geridos especialmente pelos/as mais velhos/as das aldeias, localmente reconhecidos como os/as “Guerreiros/as da tradição”. Esses/as mentores/as do território são também responsáveis pela organização dos plantios dos campos de sementes, uma atividade realizada comunitariamente, que também tem a função de transmitir as técnicas de seleção de sementes para o armazenamento e garantia de plantio na próxima safra para a geração mais nova.
Presente em parte dos estados de Minas Gerais e de São Paulo, a Rede de Sementes Biodinâmicas tem apoiado as famílias agricultoras em duas frentes de trabalho: produção de sementes de hortaliças para autoabastecimento e comercialização. A Associação Brasileira Biodinâmica (ABD), uma das animadoras da Rede, possui uma coleção com aproximadamente 1.000 tipos de sementes que foram previamente selecionadas por agricultores/as. Essas sementes são analisadas em uma câmara de germinação da Associação, o que permite verificar a qualidade em conformidade com as exigências para a comercialização estabelecidas pelo Ministério da Agricultura e da Pecuária (MAPA). A atuação da Rede tem possibilitado a inscrição e a manutenção de variedades no Registro Nacional de Cultivares (RNC). Embora esses sejam processos complexos e burocráticos, são passos importantes para a conquista de autonomia sobre o material genético, condição necessária para a reprodução de sementes visando à comercialização em mercados formais.
A Rede de Intercâmbio de Sementes (RIS), no norte do Ceará, tem conectado Casas de Sementes com a comercialização de alimentos por meio do Programa Nacional de Aquisição Alimentar (PNAE). As mulheres são protagonistas nessa história, tanto por serem as principais responsáveis pela gestão das Casas de Sementes, mas também porque é da produção agrícola feita por elas que vem grande parte do alimento ofertado pelo PNAE. A explicação é dada por uma agricultora da Rede: “quando a gente pensa em geração de renda, por meio da comercialização no mercado institucional e autonomia das mulheres, é sobre Casas de Sementes que estamos falando”. No que diz respeito à gestão comum, combinando recursos do território e do Estado, a RIS traz um interessante aprendizado. A aposentadoria rural requer a apresentação de documentos para a comprovação do tempo de contribuição junto ao Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). Esses documentos, chamados pelos/as agricultores de “provas” são em regra oferecidos por órgãos especializados de assistência técnica e extensão rural, por exemplo, às/aos agricultores que acessam programas de distribuição de sementes. Mas, como explica um agricultor da RIS, “aqui no Ceará as sementes distribuídas são envenenadas, elas vêm até rosas”. Contudo, muitos/as agricultores/as pegavam as “sementes do governo” como forma de acessar os documentos requeridos no momento da aposentadoria, até que a RIS encampou essa luta e conseguiu que os comprovantes de empréstimo e devolução de sementes gerados pelas Casas fossem aceitos pelo INSS, comprovando a atividade agrícola familiar.
Na Paraíba, a Rede de Agroecologia da Borborema mantém 60 Bancos Comunitários de Sementes, que mobilizam mais de 1200 famílias de agricultores/as. Além de estocar 13 espécies e 130 variedades de sementes crioulas, a Rede é ativa em vários outros campos como, por exemplo, a coleta e armazenamento de água da chuva a partir da construção de cisternas de primeira água, pelo Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), e de segunda água, pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). As sementes guardadas nos Bancos de Sementes e a água para agricultura e para o trato de pequenos animais garantem a produção da agricultura familiar.
Em nossa travessia pelos trabalhos com sementes crioulas das redes apoiadas pelo Programa Ecoforte, a última parada é na Rede de Intercâmbio em Agroecologia (GIAS), no Mato Grosso. A GIAS desenvolveu o Banco de Informações sobre Sementes (BIS), uma tecnologia social em agroecologia que visa ao registro e à sistematização das variedades de sementes mantidas pelos agricultores/as familiares. O fluxo das sementes organizado pelo BIS é verificado anualmente durante a Festa da Troca de Sementes Crioulas. Nessas oportunidades, mais de 300 pessoas cadastram variedades, ofertando-as numa economia de troca, quanto levam para casa variedades já cadastradas. A importância disso é destacada por Josefa Aparecida: – “a troca se torna mais gratificante quando a gente sabe para onde foi a semente, quem a recebeu, para onde andou a nossa história, sem o risco de perder as informações. É como uma nova vida, que poderá ser encontrada”.
Em tempos de pandemia e de crise de abastecimento alimentar, é fundamental destacar que as 25 redes sistematizadas pela ANA produzem juntas mais de 700 itens alimentares, entre produtos in natura, panificados, doces e geleias e derivados do leite. Esses alimentos produzidos e consumidos, especialmente nos territórios, indicam processos de relocalização dos sistemas agroalimentares, primando pelo acesso e consumo de seus produtos a partir de circuitos curtos, livres de proteínas transgênicas, agrotóxicos e de ultraprocessamento. Além do manejo agroecológico, esses alimentos são produzidos e comercializados, assegurando remuneração justa para a agricultura familiar e acesso a alimentos saudáveis a preços acessíveis para os/as consumidores/as.
Em momento de crise, as redes de agroecologia seguem produzindo e alinhando respostas para garantir o consumo de alimentos saudáveis. As redes de agroecologia dão mais uma mostra de que Hardin estava muito enganado. O que essas experiências em rede nos ensinam é que a verdadeira tragédia é a do “não comum”, pela qual territórios e seus bens sociais e ecológicos são convertidos em objetos de exploração por meio das transações em mercados controlados por grandes conglomerados empresariais.