Ano de 2016. Todas as variedades de milho crioulo guardadas no banco de sementes do assentamento Ernesto Che Guevara, no município de Casserengue, estavam contaminadas pela transgenia. A fonte de contaminação foram os roçados vizinhos de famílias, que não faziam parte do banco de sementes e que compraram as sementes em lojas de produtos agropecuários, sem informação que se tratava de variedades transgênicas.
Imediatamente, se iniciou um processo de multiplicação de sementes crioulas que o assentamento recebeu da AS-PTA e do Polo da Borborema, um coletivo de sindicados rurais que atuam em 13 municípios do território que lhe dá nome. Mas, a variedade recebida, a jabatão – a única disponível no banco de sementes mãe no momento – é de ciclo longo e não se deu bem com o regime de chuvas da região de Curimataú, no semiárido paraibano. “A gente precisava de um milho mais ligeiro, porque as chuvas aqui são poucas”, afirma Adriana Araújo, uma das lideranças do assentamento Che.
Por conta do desencontro entre o ciclo do milho jabatão e o período das chuvas no assentamento, o que se colhia dos campos de multiplicação em 2017 e 2018 não respondia às expectativas e necessidades das famílias do assentamento. Por conta disto, ano a ano, o plantio nos roçados era feito com as sementes doadas pelo Governo Federal ou compradas nas lojas de produtos agrícolas e veterinários.
Em 2019, um novo teste de transgenia apontou novamente uma alta taxa de contaminação do milho guardado no banco comunitário do assentamento Che e nos demais bancos comunitários de Casserengue.
“Em Casserengue, nos testes de transgenia que fazemos todo ano, dá muito milho contaminado, são áreas grandes plantadas com milho para alimentação das famílias e dos animais. Durante quatro anos seguidos foi assim”, anuncia Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA que acompanha as ações relacionadas às sementes da Paixão.
Mas, houve milho colhido na safra de 2019 no assentamento Che que passou no teste. Ou seja: estava livre de transgenia, como a safra de Adriana e seu esposo Augusto. Mas estaria livre até quando se os vizinhos seguissem plantando milhos transgênicos? Foi quando, em reunião, o assentamento Che decidiu fazer uma cota coletiva para comprar mais sementes crioulas e distribuir para outras famílias. O planejamento foi feito em 2019 e o plantio destas sementes adquiridas aconteceu este ano.
Com o recurso levantado, foram compradas 10 sacas (60kg) de milho crioulo da variedade pontinha, que em 75 dias estava no ponto de colheita, mais ligeiro que o jabatão, de ciclo de 90 dias. As sacas, compradas de um guardião de sementes da Paixão do município de Arara, foram acrescidas de mais 10 sacas doadas novamente pelo Banco Mãe para o Banco de Sementes Comunitário do assentamento.
Mas, este ano, esta história dá sinais de mudança. Diferente dos anos anteriores, os primeiros testes de transgenia realizados nas amostras de milho de oito famílias do assentamento deram todos os resultados isentos de contaminação. Na semana que vem, mais oito serão testadas.
O resultado parcial encheu de ânimo não só as famílias guardiãs e as lideranças do assentamento, que há anos perseguem a ideia de plantar só milhos crioulos, como também renovou as esperanças da Comissão de Sementes do Polo da Borborema, formada pelos/as guardiões e guardiãs da biodiversidade e assessorada pela AS-PTA e Polo da Borborema nesta luta desigual para proteger o material genético da contaminação que altera o código genético da semente já adaptada à região.
E a que se deve esse excelente resultado preliminar e promissor?
Emanoel credita esta possível virada nos rumos ao “trabalho coletivo e a organização comunitária do assentamento. Além disso, tem a campanha permanente “Não planto transgênico para não apagar a minha história”, que realiza testes de transgenia e distribui sementes todos os anos. Como também há a garantia da aquisição do milho com um valor maior de mercado.”
Mudança de olhar – Para além disso, em 2020, o assentamento Che foi apontado pela Comissão de Sementes do Polo da Borborema como uma das duas experiências a serem desenvolvidas de Comunidades Livres de Transgênico no Polo da Borborema. Uma espécie de experiência piloto iniciada no território.
Como os esforços para a proteção do milho crioulo focados em cada guardião e guardiã não estavam sendo eficazes diante da facilidade da contaminação, a estratégia passou a ser proteger comunidades inteiras.
“A questão da transgenia não é só pensar em um agricultor familiar. Temos que pensar na comunidade”, revela Emanoel. E aí a estratégia no território para evitar a contaminação cada vez mais crescente deixou de ser de defesa e passou a ser de ataque. “Estimular a produção de milho livre de transgenia é uma forma de diminuir a plantação de milho transgênico no território”, anuncia o agrônomo que acompanha a Comissão de Sementes do Polo há mais de dez anos.
Na Borborema, as propriedades rurais são muito próximas. Muitas vezes, cerca com cerca. Esta é uma condição ideal para a plantação de milho crioulo ser polinizada pela plantação vizinha do milho transgênico. A polinização cruzada é feita pelo ar, com a ajuda do vento ou dos insetos.
E como aumentar as áreas de plantio das sementes de milho da Paixão, de forma que as famílias agricultoras que estejam numa mesma área não plante as sementes distribuídas pelo governo ou compradas nas lojas?
Uma das estratégias usada atende pelo nome de Unidade de Beneficiamento do Milho da Paixão, inaugurada no ano passado. A Unidade virou uma excelente oportunidade de negócio para as famílias guardiãs de sementes da Paixão. “Se o milho passar no teste e o seu resultado mostrar que ele é livre da contaminação dos transgênicos, a safra é comprada pela unidade com um valor de até 30% acima do praticado no mercado convencional”, explica Emanoel.
Segundo ele, este valor tem sido um atrativo eficaz para que as famílias se interessem apenas pelos milhos crioulos. No ano passado, a quantidade de sementes compradas para estocar no Banco Mãe e depois ir para o beneficiamento foi o maior desde 2017, quando se começou a fazer a aquisição de sementes junto às famílias do território. Em 2019, foram adquiridas 10 toneladas. Em 2018, 7 toneladas. E 2017, 2 toneladas. Para garantir qualidade dos produtos beneficiados e as boas práticas de produção dos alimentos à base de milho livre de transgênicos, essa iniciativa contou com a contribuição e parceria do Laboratório de Tecnologia de Alimentos da Universidade Estadual da Paraíba.
De acordo com Adriana, do assentamento Che, o milho crioulo colhido na comunidade tem quatro destinos. Uma parte volta para o banco de sementes comunitário, a qual será destinada para o plantio no ano seguinte. Outra é separada para o consumo animal. Outra para comer. E a parte da venda é toda destinada à unidade de beneficiamento.
“Antes, vendíamos para atravessadores que dizem o preço. Uma saca de milho (60kg) chegou a R$ 20,00. Veja que preço baixo. Aqui na região tem um único comprador. Ele é quem aumentava e diminuía o valor”, conta. Em 2019, uma saca de milho livre de transgênicos (60kg) chegou a R$ 90,00.
“Não planto transgênico para não apagar a minha história” – Todas estas ações e estratégias para manter as sementes crioulas livres da transgenia fazem parte de uma campanha permanente no território da Borborema. Desde 2016, a campanha ‘Não planto transgênico para não apagar a minha história’ está na rua e atua em três vertentes: a comunicação dos malefícios da transgenia, as ações de campo como a produção de campos livres de transgênicos, e a realização dos testes de transgenia e a criação de uma central que transforma o milho em vários produtos beneficiados, como o xerém, mungunzá, fubá e a novidade será o flocão para fazer o cuscuz, comida típica do nordeste Brasileiro.
Estes produtos têm venda certa e a demanda por eles só tem aumentado. Atualmente são vendidos na rede de 12 feiras agroecológicas do território, nas quatro quitandas agroecológicas acompanhadas pelo Polo da Borborema e em 10 pontos fixos: três no próprio território – Campina Grande, Boqueirão e Soledade – e sete em João Pessoa. Os produtos também ultrapassam as fronteiras da Paraíba e alcançam o mercado do Recife de alimentos saudáveis sendo vendidos quatro pontos na capital pernambucana.
A campanha começou a visitar os bancos de sementes da Borborema em 2017. Foi criada quando os testes de transgenia anunciavam, a cada ano, o aumento das contaminações. “Tínhamos que fazer algo para que a situação não ganhasse repercussão negativa no território”, recorda Emanoel. A campanha foi pensada para os agricultores e agricultoras saber o que é a transgenia e como ela ameaçava a vida das famílias camponesas. “Transgenia é um termo difícil para as famílias agricultoras entenderem, pois se você colocar um milho contaminado próximo de um milho livre, morfologicamente não tem diferenças. A diferença é invisível, por isso, que a constituição de uma metodologia própria e contínua foi necessária ser desenvolvida”, acrescenta.
No ano passado, quando a campanha completava dois anos de vida, ela foi um dos temas refletidos na 8ª Festa Estadual das Sementes da Paixão. “E a Rede das Sementes da Paixão da Paraíba assumiu a campanha como ação estadual, ampliando as suas ações – testes de transgenia, campos de multiplicação de milho livre de transgênicos e também a construção da chegada do milho dos outros sete territórios de atuação da ASA Paraíba para ser beneficiado na Unidade da Borborema”, conta.
Reconhecimento – Ainda este ano, o Polo da Borborema e a AS-PTA tiveram outra alegria com relação ao trabalho de conservação da agrobiodiversidade por meio da Rede de Bancos Comunitários. Ela foi uma das experiências vencedoras do 2º Prêmio de Práticas Agrícolas Tradicionais do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
A premiação vem coroar um sentimento de satisfação que vive em cada um/a dos/as envolvidos/as nesta ação coletiva. “É um trabalho formiguinha, gradativo. Mas a gente vai mexendo no mais importante, que é o processo de formação das pessoas e vai tendo esta mudança. A nossa luta é para que as sementes da Paixão continuem livres e a serviço das futuras gerações!”, sentencia Emanoel em tom de profecia.
Este trabalho de proteção do milho, base da alimentação de todos os brasileiros, é de suma importância em qualquer lugar do mundo. E, no território da Borborema, a ação ganha um significado ainda mais robusto uma vez que foi considerada uma zona de preservação das sementes de milho por um conjunto de universidades que estavam catalogando espécies endêmicas – que só existem em um único local. Quatro raças de milho cultivadas na região nunca haviam sido catalogadas antes.
Um tesouro salvaguardado pelas mãos e ações de famílias agricultoras, com o apoio imprescindível das organizações sociais, cuja atuação vai sedimentando, com muita luta, a construção de políticas públicas que preservem este patrimônio imaterial da humanidade.