Em 1962 o prêmio Nobel de medicina foi para Francis Crick e James Watson, a dupla que descobriu a famosa estrutura de dupla hélice do DNA, o chamado código genético da vida (na verdade foram três pesquisadores, mas essa é outra história). Em 1970, o prêmio Nobel da paz foi para Norman Borlaug, tido como o pai da Revolução Verde. Semanas atrás, as laureadas com o Nobel de química foram Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, pesquisadoras reconhecidas por terem desenvolvido a técnica de edição genética chamada Crispr (lê-se crisper). Revistas científicas, como Science e Nature, consideram a técnica “revolucionária” por promover modificações genéticas precisas e que poderão alterar genes humanos, eliminar doenças e abrir novos campos de terapias genéticas.
Não é difícil lembrar que uma das justificativas para a adoção dos transgênicos estava na vantagem de esses novos organismos serem resultantes justamente de técnicas mais precisas de modificação genética. As alegações de fundo permanecem as mesmas, mudaram as metáforas. Antes se falava em “cortar e colar” genes, hoje são as “tesouras genéticas”. Tal discurso dá até a entender que o pacote tecnológico que rendeu o prêmio a Borlaug virou peça de museu, que as sementes híbridas foram substituídas por sementes mais modernas e que o aumento da produtividade das lavouras resolveu o problema global da fome e da degradação ambiental. Quem não saiu de cena nos 50 anos que separam esses dois prêmios foram os agrotóxicos, base da Revolução Verde e produtos que tiveram seu uso ampliado com a adoção das sementes transgênicas. É o modelo agroalimentar dominante que molda os usos dessas velhas e novas tecnologias.
O sistema de edição genética Crispr, associado a impulsores (gene drives), pode ser usado para alterar rapidamente os mecanismos de herança genética de toda uma população de uma dada espécie. Essa edição do DNA aumenta a taxa com que uma dada característica é transmitida para a geração seguinte. Avança, assim, a capacidade técnica de intervir na natureza e ampliam-se os dilemas éticos. Os bebês passarão a ser geneticamente editados para nascerem com determinada cor de pelo ou de olhos? Essas técnicas serão aplicadas para eliminar as populações de plantas espontâneas como buva ou amendoim bravo, que se tornaram resistentes aos herbicidas aplicados nas lavouras transgênicas? Quem decide qual espécie deverá ser alvo dessa extinção programada?
Além de novas metáforas, essas tecnologias emergentes trazem a novidade de que seus desenvolvedores e proponentes agora alegam que não se trata mais de organismos transgênicos como os que já conhecemos. E não sendo transgênicos, não se aplicam sobre eles nem a lei de biossegurança, nem a rotulagem. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) criou uma norma para isso: a empresa pergunta se seu novo produto é OGM. Se a CTNBio disser que não, pronto, está desregulado. Entre 2018, quando essa regra foi editada, e novembro de 2020, a Comissão julgou 16 desses pedidos e concluiu que 14 não eram OGM. Esse vazio jurídico não tem respaldo técnico nem legal. Do ponto de vista da alteração do genoma, importa o que é mudado e seus efeitos e não só a técnica empregada. Do ponto de vista jurídico, a definição do Protocolo de Cartagena de Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica, da qual o Brasil é parte, já previa novos desenvolvimentos das tecnologias de recombinação de DNA e sua definição incorpora esse conjunto de novas técnicas no qual o Crispr e outras se enquadram.
Debater o tema das novas biotecnologias a partir da ótica dos direitos humanos, da soberania alimentar e da justiça social é hoje relevante por alguns motivos principais: i) a capacidade de essas tecnologias causarem impactos negativos pode ser ainda maior do que a dos organismos transgênicos; ii) esses efeitos podem ocorrer em larga escala, dado que são tecnologias incorporadas ao modelo agrícola dominante; (iii) a possibilidade de vazio regulatório pode facilitar a entrada desses produtos no mercado sem debate público; (iv) a aceleração desse processo pode inibir, além da informação pública, estudos sobre potenciais riscos, de médio e longo prazos, feitos sob a ótica do princípio de precaução. Como temos visto, desde o Nobel de 1962, a ciência orientada pelo mercado segue colhendo os louros, e muitas vezes vendendo soluções para os problemas que ela mesma criou.
Essas e outras questões são apresentadas e debatidas em maior profundidade no livro Novas biotecnologias, velhos agrotóxicos: um modelo insustentável que avança e pede alternativas urgentes, lançado no final de 2019 pela Fundação Heinrich Boll.