O dia de São José é comemorado em 19 de março. No semiárido brasileiro a data anuncia a chegada do inverno e as chuvas para início dos plantios. É o início da safra, período no qual agricultoras e agricultores começam a retirar as sementes dos Bancos de Sementes Comunitários e também dos bancos familiares.
O encontro entre sementes e a terra, proporcionado pelas chuvas, tem, no entanto, se alterado ao longo dos anos, tanto pela seca prolongada que a região semiárida tem enfrentado, quanto pela chegada dos transgênicos, que contaminam sementes cultivadas há décadas pela agricultura familiar camponesa.
As Sementes da Paixão, como são (re)conhecidas as sementes crioulas no território da Borborema, “são como um filho”. Sendo livres de transgenia e agrotóxicos, elas são sementes com que as crianças podem brincar e ajudar a plantar como nos explicou a agricultora do município de Queimadas, Severina da Silva Pereira, mais conhecida como Silvinha, mãe do José Miguel e da Maria Julia. Sementes são também parte da família. É por isso que Euzébio Cavalcanti, agricultor e presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio, nos fala sobre o pesar de ter que dizer a um agricultor ou a uma agricultora que a semente que selecionaram há mais de 20 anos não é mais a mesma semente, que ela está contaminada por genes desconhecidos – “é como se um parente tivesse morrido e só a gente soubesse e tivesse que dar a notícia”.
É nesse entremeio, da conservação da agrobiodiversidade pela agricultura familiar e da luta contra os transgênicos, que, em 2016, nasce no território da Borborema a Campanha Não Planto Transgênico para não Apagar minha História. Conversamos com Silvinha e Euzébio, que nos trazem as memórias da Campanha, assim como os fios que ela foi tecendo com a vida cotidiana dos agricultores, agricultoras, bancos de sementes e a organização política na região.
De onde vem a necessidade da Campanha Não Planto Transgênico para não Apagar minha História? Como o problema da transgenia começa a aparecer no território da Borborema?
Euzébio (STTR Remígio): A Campanha nasce com a Comissão de Sementes do Polo da Borborema, quando a gente começou a mapear os guardiões de sementes, por causa, justamente, das políticas de sementes, que eram sementes de uma variedade só. A gente ficou muito preocupado com a questão da erosão genética das sementes, porque temos uma diversidade de sementes muito grande, tanto do milho, quanto do feijão.
Em 2006, quando começamos a fazer a Festa das Sementes da Paixão, a gente pensava que os transgênicos eram uma coisa que estava longe da gente. A gente tinha conquistado uma lei de bancos de sementes no estado. Nossa luta era pelo reconhecimento das nossas sementes, as Sementes da Paixão. A gente ainda não tinha essa luta contra o transgênico, como no Sul e no Paraná. A gente sabia que era um problemão, um perigo para nossa diversidade, mas achava que não ia chegar aqui tão cedo. Quando veio a seca, em 2012, a Conab tinha um programa de venda de milho subsidiado para alimentação dos animais. Foi quando veio o milho de Goiás, 90% transgênico. Embora fosse para ração, nos levantou uma preocupação muito grande, porque a natureza camponesa é experimentar algo novo. A gente tinha esse medo de as pessoas testarem quando vissem uma semente bonita.
Então começamos a fazer uma campanha para que as pessoas não plantassem essa semente, apenas usassem como ração. Na Festa das Sementes da Paixão, em 2016, entregamos um documento para o governo federal para que as sementes da Conab fossem trituradas, já que eram apenas para fomento, para evitar o risco de plantio.
Nós aqui já começávamos a perceber a presença [dos transgênicos] também no mercado. Tínhamos aqui as feiras agroecológicas desde 2001, que se ampliaram bastante a partir de 2006, e os agricultores e agricultoras da feira faziam à moda antiga o fubá para cuscuz, com uma grande dificuldade, já que todo fubá que tinha no mercado era transgênico. Dificilmente a gente encontrava um fubá que não fosse transgênico. Para nós, o transgênico era mais no alimento, a gente não tinha isso no roçado. No entanto, quando começamos a fazer o fubá, começamos também a fazer o teste no milho e a gente ficava feliz que nenhum milho dava transgênico.
Um dia fomos comprar um milho no Assentamento Queimadas, na região do Gabinete, onde todo ano a gente comprava o milho de seu Biruquinha, que há 20 anos tinha o milho Pontinha dele. Entramos no meio do roçado para pegar uma amostra. Com o teste, vimos que a contaminação tinha chegado dentro do roçado. Para a gente, isso foi assustador, porque não sabíamos de onde veio, porque aquela comunidade planta milho Pontinha e guarda as sementes em casa. Resolvemos ir para a comunidade testar o milho dos outros agricultores, mesmo daqueles de quem não iríamos comprar o milho. Fizemos um encontro com a comunidade e notamos que todo milho estava contaminado. Somente um agricultor tinha produzido 100 sacos, então era muito milho que estava sendo produzido. Isso nos deu um alerta. Fizemos um encontro regional e começamos a testar o milho de todo mundo. Nessa comunidade, nós criamos um Banco de Sementes e começamos uma campanha de descontaminação. A gente levava semente para constituir campos comunitários de milho.
Nós realizamos ainda um encontro com o Polo da Borborema, com todas as comunidades, para relatar esse fato acontecido na região do Gabinete e aí tivemos a tristeza de encontrar outras regiões do Polo da Borborema com sementes contaminadas. No caso específico do Gabinete o que aconteceu foi que seu Antônio Cabeção disse que tinha plantado milho e estava muito animado com o roçado. Resolveu comprar mais uma quantidade para completar uma área que tinha. Ele comprou numa venda em Casserengue, e nessa venda, provavelmente, era milho da Conab que o agricultor comprou como semente. Era muito bonita e ele comprou essa semente. Não levou em conta a variedade, não levou em conta nada, levou em conta que era milho. E como o milho transgênico vem do mesmo jeito do que outro, ele contaminou toda a região.
Ali, também, a gente começou a encontrar histórias bonitas de proteção das sementes. Em 2016, fizemos um encontro em Santa Fé, no município de Arara e a gente contou várias histórias de “como é que você protege seu milho?”. Nós tivemos a história de vários agricultores. A partir do momento que identificamos que a comunidade estava contaminada, realizamos encontros municipais e regionais do Polo para que a gente pudesse fazer uma Campanha. Ali, em 2016, começou a Campanha Não Planto Transgênico para não Apagar minha História.
Como é o funcionamento da Campanha, quais são as ações no território? Quais são momentos importantes durante o ano, por exemplo?
Sílvinha (Agricultora): A gente tem a maior preocupação no início e no fim do inverno. A gente pede para o pessoal trazer suas sementes [para o armazenamento coletivo] no final, depois da colheita. Como aqui é um Semiárido e as chuvas são poucas, a gente corre o risco da primeira planta se perder. Por isso, a gente pede para que os agricultores tragam sementes a mais do que plantam. Se plantar 10 kg, tragam 15 kg para deixar 5 kg no Banco. Utiliza os 10 kg, mas é importante ter sempre uma reserva no Banco para não perder a semente. Os agricultores que fazem parte do Banco também têm seu banco familiar em casa. Eles nunca deixam de guardar ali também. Essa é uma forma da gente fazer a Campanha. Tem anos aqui que a gente planta umas três vezes e três vezes perde. Então, a gente recorre ao Banco Mãe de Sementes [uma espécie de banco dos bancos comunitários], onde há sementes armazenadas para podermos multiplicar nossas sementes.
Euzébio (STTR Remígio): Nesse primeiro momento [março], a gente costuma fazer reuniões com as comunidades onde tem Banco de Sementes e onde não tem também, para que a gente possa levantar esse cuidado de que semente vai para dentro do seu roçado. Além do perigo dos transgênicos, há também as sementes contaminadas com agrotóxicos. Porém, o ponto forte mesmo da Campanha é no momento de guardar a semente para plantar, que é o momento da safra. No período da safra acontece testagem em massa de sementes de milho para analisar se estão contaminadas e para ver se poderão ser armazenadas nos Bancos, tanto nos familiares quanto nos comunitários e também porque nós temos a unidade do Banco Mãe.
Na Unidade Mãe a gente faz o beneficiamento do milho e quem tem milho livre de transgênico e agrotóxicos a gente compra as sementes com preço 30% a mais do mercado para fazermos o Fubá da Paixão. Nós agora vamos fazer o flocão também. Isso também tem ajudado as pessoas a terem um cuidado maior na hora de plantar, porque elas sabem que isso é uma perda deles, pois se estiver contaminado não é possível comprar. Isso tem sido um incentivo para que os agricultores possam ficar atentos às suas sementes. Alguns agricultores na época da safra já procuraram os Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs) e a AS-PTA para fazer testes com as sementes que irão plantar. A gente está também nos Conselhos Municipais reforçando para que as prefeituras comprem testes de transgenia, para que entrem nessa luta também, para deixar o município livre de transgênicos. A gente já tem comunidades livres de transgênico e precisamos que os municípios fiquem livres também. É uma luta política contra os transgênicos por dentro dos Conselhos, de denúncia de lugares onde se contamina de propósito, como o agronegocinho que acha que tanto faz ser uma coisa como outra. Uma luta que não é fácil, mas é necessária.
Como vocês se organizam na defesa das Sementes da Paixão e como vão estabelecendo relações, também, com os municípios?
Euzébio (STTR Remígio): Nós temos a Comissão Regional do Polo da Borborema e temos uma Rede de Sementes da Articulação do Semiárido (ASA), além da Rede de Sementes do Semiárido. Essas redes estão aí permeando esse debate das políticas de sementes, das sementes crioulas, das Sementes da Paixão. Nós temos a Comissão Regional e cada município tem uma forma de se organizar. Se organizam em comissões municipais com os Bancos de Semente. Em alguns municípios, o próprio Sindicato trata de ser o mobilizador dos Bancos de Sementes.
Então, nós temos essas formas de se organizar e nós temos trabalho de formação, intercâmbio, que é uma formação bastante interessante que temos conseguido levar os agricultores de Bancos de Sementes menos organizados para conhecer aqueles mais organizados, aprendendo sobre o formato, o jeito e o trabalho da comunidade também. Temos também a comunicação, os agricultores têm feito vídeos sobre suas sementes, compartilham nos grupos WhatsApp e a gente aproveita isso, as informações que vêm dos próprios agricultores. E há outros vídeos que a gente procura fazer, com mais qualidade e que possam ajudar nas reuniões de outras comunidades.
Vocês acham que a Campanha tem fomentado transformações na agricultura do território, um maior conhecimento entre os agricultores e agricultoras sobre a transgenia, a contaminação e formas de evitá-la e, em contrapartida, cultivo de variedades crioulas? Como percebem isso na relação entre as sementes e as agricultoras?
Sílvinha (Agricultora): A Campanha veio fortalecer os agricultores e veio ter um reconhecimento do que os agricultores estavam fazendo, que é plantar o milho, o milho crioulo, a Semente da Paixão, plantar e permanecer com ele. Além disso, a Campanha tem o objetivo de valorizar os agricultores que já têm essas sementes de anos, de décadas, de muitos anos, trazendo de seus avós e sem a contaminação. Não Planto Transgênico para não Apagar minha História é uma campanha muito bonita e estamos preocupados tanto com a minha semente, quanto com a semente que o vizinho planta. Não adianta eu plantar uma semente livre de transgênico e o vizinho plantar uma semente contaminada. Com essa preocupação, os Bancos têm se fortalecido, fortalecido o que os agricultores vêm fazendo e promovendo o resgate dessas sementes.
É um trabalho de formiguinha. É a gente convencer aquela outra pessoa de que o milho crioulo é mais produtivo, é mais saboroso, é livre de transgênico. A produtividade do nosso milho é muito superior à produtividade do outro milho. Muitas pessoas já estão conscientes. Temos trabalhado em reuniões, formações e folhetos informativos pelas comunidades. As pessoas estão ficando mais conscientes e não estão plantando esse milho. Mas há agricultores que estão fora dos Bancos e nós temos essa preocupação, temos feito conversas com eles também para não plantar sementes contaminadas, pois uma vez o milho contaminado pelo transgênico ele já não é mais o mesmo. A gente tem que procurar dar destino a esse milho e procurar a semente pura.
As mulheres têm o maior cuidado com as sementes. Tem homens que têm o cuidado com as sementes, mas na maioria são as mulheres. Têm o cuidado de olhar para a semente como se fosse um filho, cuidar, deixar limpinha, trazer uma semente selecionada, de boa qualidade. A mulher tem esse papel importante junto à agricultura familiar. Aqui vem desenvolvendo bastante [o trabalho com as agricultoras]. Tem guardiãs de sementes que resgataram as sementes de fora, umas sementes que têm um grande conhecimento e um grande valor nutricional, como o Fogo na Serra, que é um feijão gordo. A guardiã desse feijão, ele veio de Pernambuco, ela achou bonito esse feijão e plantou dele e foi com ele que ela curou a anemia da criança dela. A filha estava doente e ia fazer uma cirurgia e ela deu uma semana o caldo desse feijão, que é bem forte, e ela curou a anemia e a criança pôde fazer a cirurgia. Ela conta com grande valia dessa semente, que hoje ela é guardiã e com muito orgulho dessa semente. Cada semente tem uma história.
Euzébio (STTR Remígio): Nós temos diferentes agricultores dentro das comunidades. Temos aqueles que participam de reuniões. Esses têm uma possibilidade de estar mais atentos a tudo isso. Muitas vezes eles até trabalham na formação daqueles que não participam de reuniões, e assim o assunto se espalha muito dentro da comunidade até para aqueles que não participam. Existem aqueles que de certa forma são desligados, não guardam sementes. Esses são agricultores que colocam muito em risco essa questão dos transgênicos, porque qualquer semente para eles é semente, desde que eles plantem seu roçado.
Nós temos ajuda dos agricultores que ganham uma consciência maior, eles são os Guardiões mesmo. Estão nas comunidades protegendo as sementes deles e ficam atentos aos que são mais descuidados. Não é um trabalho que atinge 100%, mas os agricultores Guardiões têm um papel importantíssimo para que possamos atingir o máximo de agricultores e não se contamine as sementes.
Vocês enfrentam outros problemas com políticas públicas, como foi o caso da política da Conab a partir de 2012?
Euzébio (STTR Remígio): O maior desafio nosso é com as políticas públicas, porque a política pública não conhece esse milho, não conhece o milho crioulo. A política pública pensa é naquele milho que a empresa produziu em grande escala. Assim, quase todo o estado recebe uma variedade só. Não conhece que se for para o sertão não vai ter uma variedade de milho igual à que tem no agreste ou no brejo, são outras variedades. A política de sementes vem com uma variedade só, infelizmente sem o cuidado de ser semente, porque ela foi contaminada com transgênicos, mas vem como milho variedade. Nosso desafio com a política de sementes é grande.
Nós temos também a política pública de sementes [estadual] que nunca deu ouvidos às comunidades. Está ali porque eles querem dizer “nós distribuímos sementes, então, vocês nos devem um favor”. Nós, por outro lado, temos um trabalho com as lideranças, até com as que não tenham Bancos de Sementes nas comunidades, para que elas compreendam a importância das Sementes da Paixão e o risco das sementes transgênicas.
A gente tem tido reunião com o governo do estado, eles têm tentado desenvolver uma política de sementes com a gente, mas não bate com o orçamento. O prazo do orçamento do governo não é o mesmo que faz no roçado, tem plano plurianual que passa da data da chuva da gente e aí termina atrapalhando. O maior desafio é com as políticas públicas, porque a campanha de agricultor para agricultor tem crescido bastante, ajudado as pessoas a reconhecer novamente as variedades de sementes que têm na nossa região, mas com as políticas públicas tem sido difícil, é uma briga do agronegócio contra a agricultura familiar e a gente tem que ser forte para não se deixar ser engolidos por eles.
E há outros desafios enfrentados? Como são construídos caminhos para superá-los?
Euzébio (STTR Remígio): Um grande desafio nosso é a consciência sobre as sementes crioulas. Nós temos aqui milho Jabatão, milho Pontinha, Adelaide, Dente de Cavalo. Quem tem o milho e é Guardião, sabe muito bem o que é esse milho. Mas para quem não tem, alguns conhecem muito o Pontinha e o Jabatão, que são os mais conhecidos na região. Ainda tem na região aqueles que não conhecem mais o milho como variedades. Para eles o milho é o mesmo, um desafio nosso é adquirir essa consciência de que o milho Jabatão, Pontinha e outras variedades crioulas são as variedades daquele lugar. Isso é um desafio no nosso trabalho de formação.
Quando a gente conhece que esse milho é importante, as pessoas adquirem um outro lado da consciência e entendem que têm que proteger esse milho. Como ele vai proteger o milho se para ele qualquer milho é milho? A gente vê pessoas que perdem produção porque não tiveram o cuidado com o milho. Uma segunda coisa é o armazenamento do milho. Você não pode selecionar de qualquer jeito. Tem que selecionar a parte do meio das melhores espigas. Tudo isso são trabalhos que a gente tem de formação, conscientização, porque aí você vai garantir um bom roçado com aquela variedade.
Outra luta que nós temos é que a gente vai para dentro dos Conselhos Municipais, fazemos audiências com prefeitos. Nos municípios de Remígio e Lagoa Seca, os prefeitos eleitos assinaram a Carta da Agroecologia nas eleições. Vamos ter uma conversa com eles para cobrar esse compromisso. E nós temos um fator da natureza que é a questão da seca. Estamos vivendo 10 anos de seca. Isso significa que até Guardião sofre, ele tem a semente todo ano e ele tem esse cuidado e essa consciência. Porém nós temos uma diminuição de pessoas com semente guardadas por causa da seca. Roçados que perderam suas sementes. Então, a gente tem que apoiar com os Bancos Comunitárias e não tem Banco em todas as comunidades, mas aquelas que têm estão mais protegidas do que as que não têm.
Em Queimadas, com o Conselho Municipal a gente conseguiu evitar distribuir o milho convencional da política pública. O mesmo aconteceu no município de Lagoa Seca. Esse ano já está acontecendo em Remígio. A gente tem ido nas comunidades para apresentar o perigo de contaminação pelos transgênicos. As políticas públicas estão há muitos anos seguidos com sementes perdidas, porque as pessoas não quiseram plantar para não contaminar seu milho.
Sílvinha (Agricultora): Uma dificuldade que a gente tem é do pessoal ter poucas terras para plantar e a gente produzir pouco, poucas sementes. Mas tem lugares no Polo que tem gente que mora em áreas de assentamentos e onde a gente procura esse socorro. Há agricultores que plantam 30 quadros de terra [pouco mais de 30 hectares], mas há agricultores que plantam meio quadro. O Banco de Semente procura um representante do Polo, da Comissão de Sementes, e a gente localiza agricultores que têm essas sementes.
Há agricultores e agricultoras que estão há muitas décadas cuidando de suas sementes. Como foi para aqueles/as que tiveram suas sementes contaminadas receber essa notícia?
Euzébio (STTR Remígio): A gente tinha que dar a notícia para o agricultor, é como se um parente tivesse morrido e só a gente soubesse e tivesse que dar essa notícia. Foi esse o sentimento de ter que dizer a seu Biruquinha que aquela semente não era mais o milho Pontinha dele, foi invadido por genes desconhecidos e o agricultor nem sabia o que era transgênico. É realmente um choque. Nós tivemos em Lagoa Seca um agricultor que trouxe uma variedade do Paraná, seu Zé Paraná, e ele jamais imaginaria que aquelas sementes que há mais de 50 anos ele vinha plantando ali, ele não plantava outra e nem deixava ninguém plantar outra, pudesse ter sido invadida por transgênicos. Quando o teste apontou contaminação, ele chorou muito na reunião. Ele perguntou “e agora, como vou fazer para recuperar essa semente?”.
Nós tivemos também o caso de seu Zé Pequeno, um Guardião símbolo do Banco de Sementes mais antigo aqui da região. Ele plantou o milho Jabatão dele e o vizinho achou por bem plantar um milho acima do dele e ele não viu. A semente dele era inclusive uma semente bastante selecionada, com seleção massal para o Banco receber uma semente de bastante qualidade. Mas quando a gente testou deu contaminada e ele chorou bastante. Por sorte ele não perdeu a história desse milho porque nós tínhamos uma política no Banco Mãe de Semente, que toda semente que nós compramos para o fubá ou para Bancos de Sementes, guarda-se garrafas daquela variedade no Banco Mãe para que, se o agricultor tiver a semente contaminada, a gente possa devolver o gene de volta para ele, para que ele possa novamente multiplicar a sua mesma semente. Por sorte seu Zé Pequeno tinha, mas seu Zé Paraná não tinha, ele perdeu mesmo a semente e só ele plantava daquela semente. E foi difícil, é uma situação muito difícil essa.
A gente fica pensando nos agricultores do Paraná, que, além de ter a semente contaminada, veio o royalty, que além de apagar a história deles, os obrigou a pagar. É tudo isso, é uma tristeza muito grande. Seu Biruquinha vinha há mais de vinte anos plantando o milho Pontinha e jamais imaginava que o milho seria contaminado e foi, por um descuido de um vizinho, que também guardava sementes.
No semiárido, plantar em época diferente do vizinho é muito difícil, certo? Diante disso, como garantir estratégias de cuidado e parceria?
Euzébio (STTR Remígio): Aqui a gente tem dificuldade de plantar em uma época diferente da do vizinho porque os invernos são bastante curtos. Quando começa a chuva a gente tem que aproveitar para plantar. Na comunidade de Lagoa do Jogo, por exemplo, seu Paulo costuma ficar muito atento em quem vai trazendo milho diferente para a comunidade. Uma vez o vizinho, seu Antônio Palala, tinha comprado na cidade 20 kg de milho para o plantio e antes dele plantar seu Paulo trocou o milho de fora pela variedade Pontinha, para que ele plantasse milho crioulo e não aquele milho de fora. Em um acordo entre eles, eles conseguiram fazer essa troca. Além disso, nós começamos a fazer muitos encontros nas comunidades onde a gente pedia o milho para testarmos o milho, testávamos na própria comunidade, as pessoas viam o teste e com as sementes livres recebiam o diploma de Guardião das Semente da Paixão. Nós temos comunidades que ficam bastante atentas, como o assentamento Dorothy, localizado em Remígio, que os agricultores não aceitam entrar outras sementes, a não ser aquelas que eles têm lá. Eles guardam as sementes todo ano para plantar e ter uma unidade no Banco comunitário para proteger a variedade da comunidade.
Sílvinha (Agricultora): Aqui no Semiárido a gente sobrevive com pouca chuva, pouquíssima chuva. Tem vez que a gente perde na folhagem do milho, por isso a importância de estar em rede, de envolver vários municípios. Tem uns municípios que puxam mais para brejo, que chove mais e a gente tem que estar se ligando com os outros municípios, porque se aqui a gente não lucrar, o outro município vai e a gente vai comprar semente de boa qualidade. O pessoal aqui com os anos de seca, toda semente que é boa a gente reproduz e arranja uma maneira de deixar nos Bancos.
Há Bancos de Sementes, por exemplo, aqui em Queimadas que fazem bingo, recolhem dinheiro da própria associação e entre os agricultores quando há perda e a gente procura comprar essas sementes e a gente só compra fazendo o teste. A AS-PTA faz o teste e a gente compra essa semente livre de transgênico. Isso também é uma forma dos agricultores reconhecerem suas sementes. Eles conhecem a semente, conhecem a história e a produtividade de suas sementes.
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Assista a live da Campanha: “Comunidades Livres de Transgênicos”