Esta experiência é uma das sistematizadas pelo projeto Agroecologia nos Municípios da Articulação Nacional de Agroecologia
Era uma vez uma região com chuvas concentradas em 3 a 4 meses e muito, mais muito calor no restante do ano. Neste lugar, para colher os alimentos no roçado, era preciso semear sementes que germinam com pouca água. Para as famílias que plantam, estas sementes são como verdadeiros tesouros, porque só elas conseguem multiplicar-se em centenas de outras sementes para alimentá-los e garantir os plantios nos anos seguintes.
Mas o problema é que o povo que planta zelava sozinho pelas suas sementes. Sem apoio, estes homens e mulheres não conseguiam fazer com que elas se multiplicassem ano a ano. Porque sempre há períodos de seca e as sementes, mesmo sendo muito adaptadas ao calor da região, não brotavam.
E vocês podem perguntar: E os governantes? O que eles faziam para ajudar o seu povo? Ah, neste lugar, por muito tempo, os governantes não se importavam com estas sementes-tesouros, que os agricultores e agricultoras amavam tanto que as chamavam de sementes da paixão. Os governantes não faziam nada para preservá-las. Por vezes, criavam até medidas que ameaçavam ainda mais a preservação destas sementes.
Até que os agricultores e agricultoras – cansados de tanto penar, de tanto passar necessidade e esperar ajuda de quem deveria cuidar da população – começaram a se organizar.
O primeiro passo foi eleger novas pessoas para a direção do sindicato que eles mesmos criaram para buscar melhoras para quem vive de cultivar a terra. É que o sindicato já tinha 18 anos, mas não estava cumprindo a sua missão. A nova diretoria, comprometida em buscar soluções para as dificuldades das famílias agricultoras, começou a fazer alianças com outros sindicatos da região, ONGs e a participar de redes com organizações da sociedade civil de lugares mais distantes.
Esse relato pode ser de qualquer município da região semiárida brasileira, mas a história o diferenciará. Infelizmente, por um lado e, felizmente, por outro.
Vamos começar com a parte do “felizmente”: O que aconteceu de bom foi que o povo que vive da terra passou a se organizar cada vez mais e, depois de muitos anos de trabalho e mobilização social, conseguiu eleger um representante para ocupar a Câmara dos Vereadores, um lugar onde ficam as pessoas que criam as leis do município.
O representante das famílias agricultoras foi eleito duas vezes seguidas. Cada vez, ele ocupou a Câmara por quatro anos. Neste período, criou uma lei muito importante para que as famílias contem com o apoio do governo municipal na proteção das sementes da paixão.
Quando o vereador foi reeleito pela terceira vez, surgiu a possibilidade de ele ir para o poder executivo, o lugar que executa as leis criadas na Câmara dos Vereadores. Assim, a lei que beneficia os povos que semeiam a terra começou a ser posta em prática.
A parte do “infelizmente” é que esta história ainda está distante da vida real de milhares de agricultores e agricultoras familiares de todo o Brasil.
Não ponha o candeeiro debaixo da mesa – O Sindicato protagonista desta história é o dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Lagoa Seca, um município localizado no estado da Paraíba e que, hoje, se destaca no mapa das políticas e programas públicos que fortalecem a agroecologia e foram construídos com participação ativa da sociedade civil organizada, a partir da Lei de Sementes nº 206, aprovada em 2014, sancionada em 2015 e implementada em 2021.
Esta lei estabelece a criação de Bancos Comunitários de Sementes nas comunidades rurais e o fortalecimento dos já que existem por meio do repasse das sementes e o veto à compra e distribuição de sementes transgênicas e híbridas por parte do município. As sementes, prioritariamente, devem ser de variedades crioulas e adquiridas de agricultores familiares da própria região. Outro elemento importante é o resgate das variedades crioulas e a multiplicação quando necessário para o abastecimento aos bancos comunitários de sementes.
Para que conquistas tão simbólicas como essa não permaneçam desconhecidas no Brasil, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) promove uma série de ações para dar visibilidade e contribuir para a irradiação de feitos importantes que reforçam a agricultura que cuida dos recursos naturais, ao contrário, do agronegócio.
A iniciativa encampada pela ANA chama-se Agroecologia nos Municípios e foi posta em prática logo depois de outra estratégia: a Agroecologia nas Eleições. Esta última criou compromissos para os candidatos e candidatas pôr em prática quando eleitos.
Foi justamente o aconteceu com o prefeito de Lagoa Seca, o Fábio Ramalho. Quando ainda estava disputando as eleições, ele se comprometeu em implementar a Lei nº 206 de 2014, que cria o Programa Municipal de Sementes. Importante destacar que, durante a sua primeira gestão, esta lei já existia, mas não foi posta em prática.
A partir do ano passado, as condições políticas, em grande parte provocadas pela atuação do STR em Lagoa Seca, passaram a ser mais favoráveis às famílias agricultoras do ponto de vista das sementes crioulas. Foi quando o vereador eleito a partir da atuação do Sindicato de Lagoa Seca, o Nelson Anacleto, que havia conquistado o terceiro mandato para a Câmara dos Vereadores nas eleições de 2020, foi convidado pelo prefeito reeleito para assumir a secretaria de Agricultura e Abastecimento.
“É um momento histórico para o sindicato. Sempre foi uma luta para as famílias agricultoras ter uma semente de qualidade, resistente, pois as sementes que são distribuídas pela Emater/ governo estadual não é de boa qualidade e ainda mais tem química e, de certa forma, deixa os agricultores dependentes do mercado. O sindicato sempre buscou valorizar a semente da paixão, aquela semente que os agricultores guardam em garrafas pets no banco familiar ou comunitário, sementes esta que é passada de geração em geração”, destaca Márcia Araújo, da diretoria do STR de Lagoa Seca.
Para mostrar como esta jornada foi sendo construída, a AS-PTA e a ANA, por meio do projeto Agroecologia nos Municípios, mobilizou os agentes envolvidos nesta caminhada e produziu um vídeo, já disponível no Youtube da AS-PTA, e uma sistematização desta experiência, a partir de uma metodologia participativa. No início do ano que vem, estes produtos poderão ser acessados a partir do Agroecologia em Rede, um repositório virtual de experiências referências no campo da agroecologia.
A ideia é irradiar a experiência para todo o Brasil e não apenas no território. Com a sistematização, a experiência ganha ares de “exemplo pedagógico para outras partes do país”, como descreve a consultora do projeto na Paraíba, Miriam Farias de Silva.
É o que já está acontecendo no município de Montadas, que a exemplo de Lagoa Seca, faz parte do Polo da Borborema, um coletivo de 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações de base, uma associação de agricultoras e agricultores agroecológicos, a EcoBorborema, e uma cooperativa, a CoopBorborema.
Em Montadas, seu Joaquim Pedro de Santana, agricultor, guardião das sementes da paixão, militante, da diretoria do STR e representante do sindicato no Conselho de Desenvolvimento Rural, têm pautado as compras de sementes crioulas com recursos públicos municipais.
Refletir sobre a prática e colher aprendizados – O processo de sistematização da experiência de Lagoa Seca foi iniciado em maio passado. Segundo Miriam, a escolha desta experiência de incidência política aconteceu a partir do diagnóstico participativo realizado no território da Borborema.
O segundo passo foi formar um Grupo de Trabalho com representantes do Sindicato, da Secretaria de Agricultura, da AS-PTA e do Polo da Borborema, todos atores envolvidos na construção, aprovação e implementação da lei. Com este GT houve quatro reuniões.
“O primeiro momento aconteceu no Banco Mãe, com a presença do prefeito, foi para apresentar a iniciativa. E, por último, foi um encontro ampliado com representantes das comunidades e de outros órgãos públicos e secretarias”, conta Miriam, que é agricultora assentada da reforma agrária no município de Areia e economista.
O que veio antes da Lei das Sementes em Lagoa Seca – Para conhecer mais a fundo a história de conquistas e avanços do STR, é recomendada a leitura da própria sistematização quando estiver disponível. Mas, enquanto isso, vamos pincelar alguns feitos não só do STR de Lagoa Seca, mas também do Polo da Borborema. O Polo funciona como uma rede de sustentação política e organizativa de todos os 13 sindicatos e também conta com a assessoria técnica e política da AS-PTA desde a sua criação em 1998.
O Polo da Borborema, por sua vez, está inserido em redes estaduais e nacionais que defendem o projeto da Convivência com o Semiárido e a agroecologia, as Articulações Semiárido da Paraíba (ASA-PB) e a nacional (ASA Brasil) e a ANA. Inseridos nestas teias, os sindicatos passam a acessar políticas públicas que nasceram no governo Lula e se mantiveram nas gestões de Dilma Rousseff, como o Programa Cisternas.
Como o sindicato atuava com independência frente aos partidos políticos e ancorava em Lagoa Seca a importante política de acesso à água para a população dispersa da área rural, os políticos locais se enchiam de ciúmes e perseguiram, de várias formas, o sindicato.
“O Sindicato de certa forma era visto como inimigo, antes do mandato de referência da agricultura familiar em 2013, existia ‘ciumeira’, investida pelos políticos locais na desconstrução das ações do Sindicato, em particular na construção de cisternas, de outros programas federais. A ciumeira era tão grande que teve vereador que propôs até CPI contra o Sindicato, desconfiados pelo peso das nossas ações e mudanças no cenário da agricultura familiar no município”, aponta um trecho da sistematização.
“Esse cenário mudou quando o Sindicato passou a ter representante na Câmara [dos Vereadores], trazendo o debate da agricultura familiar para dentro [da casa legislativa] e com uma ação qualificada”, continua o documento.
“Nenhuma lei de interesse é efetivada sem a organização da sociedade” – Os integrantes do GT da sistematização reconhecem que um dos méritos do Sindicato foi a estratégia de “estar no lugar certo, na hora certa”. E, quando se trata de sair da periferia para ocupar espaço de decisão política, se faz necessário muita organização, mobilização social e estratégia para fazer pressão e forçar este movimento de mudança.
“Por mais que a política fosse aprovada, se não tivéssemos no espaço [no executivo municipal], não seria implementada”, assegura o GT da sistematização que, mais adiante, reforça: “‘Já tínhamos até outro documento mais antigo do que esses entregues em 2020, na primeira gestão de Fábio Ramalho mais não avançamos’, contam. O avanço foi dado com a ocupação do espaço na Secretaria de Agricultura por alguém que faz parte do movimento sindical, acredita-se que o trabalho agora pode avançar.”
Conhecimento da necessidade das famílias agricultoras, legitimidade do Sindicato – Um grande mérito não só do STR de Lagoa Seca, mas de todos inseridos na dinâmica do Polo, é estar enraizado na vida das famílias locais, com escuta atenta às necessidades e criando formas de superar os constantes obstáculos de diferentes naturezas.
Um grande passo para este enraizamento foi o Diagnóstico Rural Participativo realizado pelo STR e AS-PTA no ano 2000. “Acreditávamos que os agricultores e agricultoras eram todos iguais. Um exemplo desse reflexo foi na própria construção dos Bancos Comunitários de Sementes, fazíamos [estes equipamentos] até na região das frutas”, conta Nelson Ferreira, atual presidente do Sindicato.
A partir deste diagnóstico, foi delimitado “o espaço rural em seis microzonas ambientais: região das frutas; dos roçados; das verduras; do encontro dos rios; das ladeiras e do agreste. E os agricultores estratificados em três grandes tipos, tendo como base os agroecossistemas. A denominação de cada tipo foi dada a partir da principal atividade agrícola: agricultores de roçado, fruticultores e verdureiros. É um desenho que traduz a vocação dos sistemas de produção e influência na formatação da política pública, ação das organizações da sociedade civil e gestão municipal”, diz outro trecho da sistematização.
Esta percepção permitiu ao Sindicato ser um ator influente na construção do Plano Diretor do município, construído em 2003. Este ano, o STR se envolve novamente na revisão e atualização deste documento que baliza as políticas públicas do município.
A experiência com as sementes – Outro elemento muito importante para ser considerado é a caminhada dos atores sociais locais para proteger as sementes crioulas. Os primeiros bancos de sementes comunitários em Lagoa Seca foram criados entre 1992-1995 e o sindicato foi determinante para isso. Não é à toa que o município também acolhe o Banco Mãe de Sementes que abastece todos os bancos de sementes comunitários.
“O sindicato é um instrumento de luta para a classe dos trabalhadores rurais”, sustenta Márcia e acrescentando a seguir uma lista infinita de atividades realizadas pelo STR para melhorar a qualidade de vida das famílias agricultoras em todos os âmbitos: na luta contra a violência no campo, em atos de mobilização contra reformas nacionais como a da previdência, contra o fechamento das escolas rurais, pela conquista a escritura pública para os agricultores, entre muitas outras.