Educadora comunitária e ativista pela justiça alimentar, Leonida Odongo tem um vasto conhecimento sobre a realidade dos agricultores na África. Nesta entrevista, ela fala sobre o impacto da Covid-19 sobre as mulheres na África e a importância do tafakari, ou seja, da reflexão com os agricultores sobre suas próprias experiências. “Está ficando claro que o futuro é agroecológico”.
Por Leonardo van den Berg e Janneke Bruil
COMO A COVID-19 AFETOU AS MULHERES NA ÁFRICA?
As medidas de prevenção e controle da transmissão da Covid-19 no Quênia exigiam que os agricultores tivessem uma permissão para transportar alimentos de um condado para outro. Situação que ocorreu logo no início da pandemia no Quênia, em março de 2020. Porém, muitos agricultores (particularmente mulheres) não podiam pagar para obter essa autorização. Feiras foram fechadas para conter a pandemia. Foi um problema grave, pois as feiras são um dos principais meios de subsistência das mulheres. As restrições foram implementadas de forma violenta, com o uso, por exemplo, de gás lacrimogêneo para dispersar os comerciantes. Devido à crise financeira e pelo fato de as pessoas terem que ficar em casa, houve também mais conflitos nos lares, o que têm contribuído para um aumento da violência doméstica baseada especificamente em gênero.
Essas restrições também levaram a aumentos nos preços dos alimentos para os consumidores. Outras determinações restringiam a circulação de pessoas entre os municípios, o que levou as famílias, especialmente as de assentamentos informais, a terem grandes dificuldades em obter alimentos. Alguns assentamentos foram completamente fechados. Enquanto o governo anunciava que os alimentos seriam fornecidos, os administradores locais controlavam o alimento e só o distribuíam às pessoas que os apoiavam politicamente. Isso levou a comícios e manifestações, por exemplo, em Eastleigh, onde as pessoas gritavam “Você não pode nos prender e nos negar comida”, devido a um bloqueio que o governo impôs, restringindo a entrada e saída da região devido aos crescentes casos de Covid-19.
Além disso, muitas empresas da capital e de outras cidades fecharam. Os funcionários não receberam seus salários e não puderam enviar dinheiro para as áreas rurais – fonte de renda fundamental para muitas famílias rurais. Isso significava que os agricultores que dependiam dessas remessas não conseguiram preparar suas terras para o cultivo a tempo.
Essa situação foi agravada por uma infestação de gafanhotos durante o período da pandemia. A principal medida do governo foi a pulverização aérea que, sabemos, tem efeitos negativos em termos de mudanças climáticas e toxicidade. Os agricultores não receberam apoio para mitigar os impactos, tanto da pandemia quanto da infestação de gafanhotos.
QUAL É O MAIOR DESAFIO PARA OS AGRICULTORES AFRICANOS?
As empresas do agronegócio descobriram que a produção de comida é uma atividade bilionária e estão cada vez mais presentes no campo. Mesmo nas comunidades rurais mais remotas do Quênia, agora você encontrará lojas que vendem fertilizantes químicos, pesticidas e sementes comerciais.
As empresas do agronegócio tentam convencer os agricultores a usar agrotóxicos, alegando que facilitam o trabalho e contribuem para o aumento das produções. No entanto, o que eles não dizem é que os agrotóxicos destroem a biodiversidade, intoxicam o solo, matam minhocas, borboletas, abelhas e outros organismos. Pesquisas feitas no Quênia encontraram níveis alarmantes de agrotóxicos em alimentos frescos, o que é parcialmente responsável pelo aumento do câncer e outras doenças devido aos seus componentes cancerígenos.
Muitos dos agrotóxicos disponíveis no Quênia foram abolidos por lei em outros países. Infelizmente, a legislação frágil da África está levando o continente a se tornar refugo para o que não é mais útil em outras partes do mundo.
COMO VOCÊ DISCUTE ESSA QUESTÃO COM AS COMUNIDADES?
Usamos o tafakari, uma palavra suaíli que significa reflexão. Ao trabalhar com os agricultores, você não pode demonizar suas formas de produção e o que eles estão usando sem apresentar alternativas.
Por isso, realizamos sessões comunitárias onde os agricultores são capazes de refletir e compartilhar suas experiências. Os agricultores costumam me dizer que há 10 ou 20 anos eles cultivavam alimentos sem usar nenhum produto químico. Agora eles usam agrotóxicos: antes da semeadura, quando as culturas estão crescendo e até mesmo durante a colheita. Muitas vezes eles dizem que, embora esses produtos químicos tenham aumentado a produção inicialmente, agora as colheitas estão diminuindo.
Esse é um ponto de partida para discutirmos várias questões. Por exemplo, a fertilidade do solo. Pedimos aos agricultores que tragam um pouco de terra de sua área de trabalho e observem quantas folhas, minhocas e outros organismos podem encontrar nela. Se não há folhas, não há microrganismos. Se não há minhocas, significa que foram mortas pelos produtos químicos. Sem folhas e organismos também significa que não há húmus no solo. Em seguida, refletimos com os agricultores sobre a importância dos microrganismos e do húmus para a manutenção da fertilidade do solo.
Também usamos o teatro para provocar reflexão. Por exemplo, eles assumem o papel de abelhas, borboletas, agricultores ou empresas químicas e cada ator compartilha como os agrotóxicos os impactaram. No final, um juiz, que é a Mãe Terra, dá o veredicto. Dessa forma, o aprendizado é feito da maneira mais fácil possível. Após cada sessão, conversamos com o público para compartilhar suas experiências e discutirmos sobre os desafios.
Em algumas de nossas reflexões com os agricultores, convidamos um artista ou músico para se expressar artisticamente e mostrar como é a relação entre arte e a forma como a comida é produzida atualmente. Os músicos podem tocar uma música sobre a vida tradicional na África e relacionar isso com o que está acontecendo agora. Por exemplo, agora há muito individualismo. Costumava ser raro comprar sementes de uma loja, porque você sempre poderia obtê-las de seus vizinhos. A arte pode ser um ponto de partida para refletir sobre a mudança.
QUAL É O SEGREDO PARA O SUCESSO DESSA ABORDAGEM?
Os agricultores querem ver mudanças concretas. Então discutimos coisas com as quais eles podem relacionar. A beleza disso é que construímos coletivamente conhecimentos passados por meio de reflexões e experiências dos próprios agricultores. O que gostamos muito é o compartilhamento de conhecimento transgeracional, por exemplo, quando os agricultores idosos falam sobre as diferentes plantas que podem ser usadas para fazer fertilizantes orgânicos e quando os jovens participam dessas sessões para aprender com os agricultores mais velhos.
Também pedimos aos agricultores inovadores locais que venham falar sobre como eles produzem. Quando as plantações estão fracas, os agricultores perguntam: por que suas plantações não estão morrendo como as minhas? Essas trocas entre os agricultores deixam claro que as práticas tradicionais e agroecológicas de produção realmente funcionam. Também organizamos treinamentos práticos de fabricação de adubos, biofertilizantes ou repelentes naturais de insetos-praga, por exemplo, feitos de folhas e cascas da árvore neem. Não utilizamos muito a escrita e, em vez disso, focamos na escuta e nos intercâmbios práticos.
QUAL É O PAPEL DAS MULHERES E DO FEMINISMO NESSAS INICIATIVAS?
A Agroecologia tem um rosto feminino. A maioria das pessoas que preparam a terra para o cultivo e estocam sementes são mulheres. Elas têm conhecimentos importantes para a Agroecologia. Infelizmente, quando se visita uma família na África, você percebe que os homens controlam a terra, o gado e as plantações de café ou chá. São consideradas culturas masculinas, enquanto as mulheres controlam as culturas que não dão dinheiro para a família, pois são voltadas principalmente para o autoconsumo. Ironicamente, são as mulheres que colhem chá e café e os levam para os moinhos para serem processados. Mas quando se recebe o dinheiro pela comercialização, são os homens que controlam esse dinheiro. Em alguns casos, quando os agricultores recebem algum bônus ou quando os preços das mercadorias sobem, os homens tendem a sair de casa, ir para a cidade mais próxima e gastar todo o dinheiro. Por isso, é importante iniciar um diálogo sobre a produção de alimentos e quem controla os recursos.
As rodas de conversa nas comunidades permitem que as mulheres tenham espaços seguros onde suas vozes e suas preocupações possam ser ouvidas. Esses ambientes de compartilhamento também oferecem oportunidades para que as mulheres reconheçam sua importância como mulheres, não apenas em termos de reprodução, mas também em termos de produção. Permitem que as mulheres tenham a oportunidade para interagir e falar sobre questões como violência doméstica, reprodução, saúde e educação ou discutir outras questões que afetam seus filhos.
O patriarcado está muito enraizado na cultura africana. E levará tempo para que isso mude. Nas comunidades, temos discussões sobre papéis de gênero na produção de alimentos e o trabalho em geral na propriedade e em casa. Perguntamos: por que isso está acontecendo? Qual é a contribuição econômica de cada pessoa em casa? Por que precisamos mudar? Nesses espaços, as mulheres explicam diretamente aos homens por que o patriarcado prejudica a produção de alimentos. Essa autoanálise é o início da mudança de papéis de gênero. Estamos vendo que os homens com quem trabalhamos estão mudando na forma como interagem com as mulheres. Mas muita coisa ainda precisa ser feita, não só no Quênia, mas em toda a África.
COM TUDO O QUE ESTÁ ACONTECENDO, O QUE TE DÁ MAIS ESPERANÇA PARA O FUTURO?
O que me dá esperança é que está ficando claro que o futuro é agroecológico. O surgimento de muitos problemas, incluindo novos patógenos como a Covid-19, está relacionado com a destruição dos ecossistemas. Isso dá visibilidade para a Agroecologia.
Outro aspecto que nos dá esperança é que mais espaços estão sendo criados para que as mulheres participem da tomada de decisão e que elas demonstram ter uma grande habilidade na organização desses espaços. Para mudar a mentalidade das pessoas de forma estrutural, há a necessidade de redes femininas mais fortes, que contribuam para o desenvolvimento da liderança das mulheres rurais. E vemos que essa liderança está crescendo. A partir de rodas de conversa, conseguimos criar uma rede de mais de 300 mulheres no Leste do Quênia que trabalham com questões de Agroecologia. A campanha Somos a solução, liderada por mulheres na África Ocidental, é outro exemplo de uma forte rede liderada por mulheres que promove vozes femininas em processos políticos para a agricultura familiar. E no Sul da África, há a Assembleia das Mulheres Rurais (ver página 21).
Descobrimos que as mulheres se conectam com mais rapidez que os homens; já eles tendem a compartilhar mais facilmente. Eles têm mais espaços de interação, não só durante o trabalho na agricultura, mas também no mercado e em outros lugares. Claro, a ação com os homens também é importante. Você não pode resolver problemas relacionados ao patriarcado se você não incluir homens. Mas quando as mulheres se unem, aprendem umas com as outras e crescem juntas. Sabemos que mulheres organizadas são ousadas, resistentes e transformadoras.