No mundo rural africano, as mulheres são invisibilizadas e vivem marginalizadas nas estruturas de poder. Ao se organizarem em movimentos sociais, as mulheres do Sul da África amplificaram suas vozes para desafiar o agronegócio e a opressão patriarcal, ao mesmo tempo que promovem avanços na Agroecologia a partir de novas perspectivas de ação política informadas pelo feminismo.
Mercia Andrews
Na África, as mulheres rurais lutam contra o agronegócio e contra grandes projetos predatórios que buscam controlar suas terras, sementes e outros recursos que fazem parte de seus meios de vida. Ao mesmo tempo, enfrentam diferentes formas de opressão e exploração patriarcal em suas próprias casas, comunidades, locais de trabalho e até mesmo em movimentos sociais.
Embora no âmbito local as mobilizações das mulheres podem superar algumas dessas questões, permanece difícil ampliar o efeito de suas lutas regional, nacional e internacionalmente. A Assembleia das Mulheres Rurais foi criada exatamente para enfrentar esse desafio. Neste artigo abordamos suas duas principais lutas.
DESAFIANDO O AGRONEGÓCIO E OS GRANDES PROJETOS CORPORATIVOS
Investidores globais e corporações transnacionais estão adquirindo grandes extensões de terras na África para produção de grãos, biocombustíveis, mineração e especulação de terras. Ao mesmo tempo, a Aliança para a Revolução Verde na África (Agra, na sigla em inglês), a Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional na África e os defensores da Agricultura Climaticamente Inteligente estão promovendo uma Nova Revolução Verde. Essas iniciativas buscam incentivar a colaboração entre governos e empresas do agronegócio, como Bayer, Syngenta e outros grandes produtores e comerciantes de organismos geneticamente modificados (OGMs). Diante do declínio geral no financiamento externo, os governos africanos, que têm pouca responsabilidade para com o povo e possuem mecanismos regulatórios débeis, dão boas-vindas aos projetos dessas corporações transnacionais. Os Programas de Subsídio de Insumos Agrícolas (Fisp, na sigla em inglês), por exemplo, são a prova de que essas corporações têm presença marcante na política da União Africana. Trata-se de uma intervenção política chave que defende que a África só pode se alimentar através da modernização agrícola impulsionada pelo capital transnacional e por pacotes tecnológicos altamente subsidiados, que incluem fertilizantes químicos e agrotóxicos. Enquanto isso, as linhas de financiamento do governo negligenciam a Agroecologia e as sementes crioulas.
Na maioria dos países da região, os Fisp beneficiam apenas (novas) elites locais e grandes proprietários de terras. Enquanto as demandas das mulheres por apoio à Agroecologia são completamente ignoradas, os programas promovem a disseminação de sementes, agrotóxicos e outros insumos desenvolvidos pela Bayer e outras transnacionais do agronegócio. O impacto desse impulso ao agronegócio liderado por corporações é particularmente prejudical às mulheres rurais. Entre outros aspectos, elas se queixam do aumento no assédio sexual e na coerção institucional realizada por parte de funcionários do governo que agem em nome dessas novas elites.
A Assembleia das Mulheres Rurais (ver Quadro anterior), cujas integrantes praticam a Agroecologia, juntou-se a outras camponesas e agricultoras familiares do Sul da África para contestar o agronegócio e a falta de apoio de seus governos à agricultura camponesa. Repudiamos a forma como as políticas e os programas dos governos, como os Fisp, minam e marginalizam as produtoras de pequena escala e a Agroecologia como uma alternativa legítima ao modelo agrícola dominante. Também confrontamos as agendas de exploração predatória de nossos governos e a maneira como eles estão permitindo a captura corporativa de nossas sementes, terras, florestas e oceanos por grandes capitais, como os interesses do agronegócio e dos biocombustíveis.
A Assembleia questiona as leis de sementes e o poder das transnacionais, que transgride limites legais impostos. Quando se reúnem para compartilhar sementes crioulas, elas estão manifestando publicamente o seu desejo e sua capacidade para destruir as sementes transgênicas. Como guardiãs das sementes crioulas, as mulheres rurais continuam a manter bancos de sementes e a compartilhar e comercializar suas próprias variedades. Também resistem à imposição dos alimentos ultraprocessados em suas dietas, ao revitalizar os sistemas alimentares locais e a produção local de alimentos.
Por meio dessas ações, elas exigem respeito aos seus direitos territoriais como forma de assegurar a soberania alimentar e estabelecer barreiras políticas à apropriação de terras comunitárias pelo agronegócio e pelas empresas de mineração.
A LUTA CONTRA O PATRIARCADO
Apesar do importante papel das mulheres na agricultura e na segurança alimentar de suas famílias, autoridades tradicionais seguem reproduzindo as estruturas patriarcais. Isso tem um grande impacto na capacidade de tomada de decisão das mulheres, seja nas práticas de manejo agrícola, no acesso aos mercados e a financiamentos, bem como nos espaços comunitários, na igreja, nas instituições de ensino, na arena política e na economia de forma mais ampla. Essas estruturas são mantidas por uma cultura de subordinação que sustenta e reproduz o patriarcado como sistema de poder.
Podemos citar o exemplo da província de Limpopo, na África do Sul, onde os homens afirmam que a cultura BaPedi determina que as mulheres não devem liderar. Isso se evidencia pelo provérbio comumente usado Tsa etwa key a tshadi pele di wela leopeng, que significa “se uma mulher assumir a liderança, um desastre está fadado a acontecer”. A liderança das mulheres é obstruída pelas autoridades tradicionais nas comunidades rurais, que esperam que as mulheres sejam silenciosas, respeitosas e reclusas. Essas normas e culturas opressivas devem ser desafiadas. As mulheres devem assumir a linha de frente para denunciar a má liderança e a corrupção nos vilarejos e distritos.
É para isso que estamos trabalhando. Por exemplo, no Zimbábue, nós nos organizamos para defender as mulheres que são expulsas de suas terras quando seus maridos morrem. Esnati, da Assembleia das Mulheres Rurais do Zimbábue, explica: Quando meu marido morreu, meus sogros me expulsaram da terra em que eu trabalhava com ele. Fui mandada de volta para meus pais sem nada, e lá comecei a cultivar as terras. Durante anos, meu trabalho nos alimentou e eu ainda vendia excedentes. No dia em que meus pais morreram, meu irmão e o chefe local vieram me despejar. Fiquei arrasada e com raiva. Eu fui procurar o grupo local da Assembleia das Mulheres. Cinquenta mulheres me acompanharam de volta à propriedade e juntas insistimos que eu deveria ficar na terra e na casa. Ocupamos a terra por mais de 20 dias lutando contra os homens locais. Finalmente, Esnati teve permissão para ficar na terra, abrindo caminho para outras mulheres na mesma situação.
AUMENTAR AS CAPACIDADES DE AUTO-ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
Um desafio crítico é que as mulheres não são valorizadas como líderes. É por isso que estamos criando estruturas poderosas, como associações locais, grupos de agricultoras, clubes de poupança, comitês de saúde e organizações religiosas lideradas por mulheres rurais. A existência dessas iniciativas locais mostra que as mulheres rurais têm capacidade, habilidade, experiência e conhecimento para liderar.
Isso é muito importante porque muitas vezes as mulheres são invisibilizadas em movimentos mais amplos, apesar de neles terem desempenhado papéis importantes. Por exemplo, o movimento anti-apartheid na África do Sul, o Movimento Cinturão Verde no Quênia, que mobilizou milhares de mulheres contra a exploração madeireira, e o Movimento de Mulheres do Delta do Níger, que resistiu à perfuração petroleira. Existem centenas de outras iniciativas lideradas por mulheres em toda a África. As mulheres desafiaram a escravidão, o colonialismo, o apartheid e lutaram nas guerras de libertação. Portanto, é essencial pesquisar as áreas inexploradas da liderança das mulheres africanas, seus protestos, ativismo e campanhas para que sua liderança e suas vozes possam ser ouvidas e amplificadas em toda sua plenitude.
Desenvolvemos várias estratégias para fortalecer a liderança das mulheres. No âmbito regional do Sul da África, organizamos regularmente uma escola feminista, sessões de liderança e um campo de formação em redes sociais para mulheres jovens, onde as ideias de feminismo, liderança feminista e relações de poder são debatidas e desenvolvidas. Essas formações incorporam exemplos de resistência popular e ativismo de base de mulheres. Em nível nacional, em vários países, desafiamos as organizações e os espaços de tomada de decisão dominados por homens, hierárquicos, verticalistas e centralizadadores, inclusive dentro dos movimentos de agricultores. Por exemplo, em 2018, a Assembleia das Mulheres questionou as eleições do Sindicato dos Pequenos Agricultores da Namíbia onde os homens predominavam. Isso resultou na eleição de mulheres para as estruturas de liderança do sindicato.
RUMO À LIDERANÇA FEMINISTA NA AGRICULTURA AFRICANA
Aprendemos muito nos últimos anos. As principais questões para nós são: como podemos criar formas diferentes e não hierárquicas de organização e liderança? Liderança para quê? Para mudar o quê? Para nós, liderança é um meio e não um fim. Tem que estar enraizada nos valores do movimento e na compreensão da mudança que temos que fazer na vida das mulheres. Isso implica desconstruir o conceito de liderança, especialmente a liderança feminista. São necessárias experiências de liderança coletiva, estruturas horizontais e maior autonomia no âmbito da aldeia e do país, para pavimentar a estrada à medida que a percorremos. Dentro da Assembleia, já estamos construindo uma práxis de ação-reflexão, de combinar estratégias e estar abertas a processos de aprendizagem. Nosso objetivo é criar espaços abertos e seguros para as mulheres. A educação popular, a leitura em grupo e a narrativa de histórias fazem parte das estratégias de construção do nosso movimento.
Aprendemos que, para construir movimentos de mulheres, temos que reconhecer que no passado e no presente, e em nossas terras e comunidades, já existem fortes mobilizações coletivas de mulheres. Para fortalecer a Agroecologia, em vez de focar na ampliação de uma prática agrícola particular, devemos fazer das vozes das mulheres o nosso ponto de partida, é preciso nos engajar em suas lutas e fomentar sua mobilização com base na horizontalidade. Isso envolve a promoção de lideranças mulheres e a garantia de que elas e suas práticas não sejam mais invisibilizadas, ignoradas ou apagadas da memória. Ao fazer isso, podemos ativar a força plena das mulheres para desafiar o agronegócio, desmantelar as estruturas patriarcais e promover uma Agroecologia feminista.
Mercia Andrews
ativista feminista radicada na África do Sul e coordenadora regional da Assembleia das Mulheres Rurais
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