As contradições entre a masculinidade altamente racional, mercantilizada e competitiva dos alimentos industriais e a preocupação feminista com a vida tornaram- se cada vez mais evidentes no Equador durante a pandemia da Covid-19. Enquanto isso, um número crescente de famílias se inspira no programa Cozinha Emergente, criado por um conjunto de movimentos sociais que utiliza a cozinha como espaço de encontro e reconstituição da possibilidade de se produzir e consumir comida para a vida.
Eliana Estrella, Marcelo Aizaga e Stephen Sherwood
Com o tempo, nós e outras pessoas envolvidas em movimentos sociais muito ativos no Equador passamos a entender que os alimentos não são apenas um pacote de nutrientes ou uma mercadoria, mas sim um elemento essencial para criar e manter relações. Em outras palavras, o alimento gera afeto. Após 75 anos de industrialização de alimentos e de seus impactos nefastos bem documentados, nós e nossos parceiros do Coletivo Agroecológico – uma rede de atores envolvidos na agricultura e na alimentação saudável, sustentável e socialmente justa (o que chamamos de comida para a vida) – buscamos a feminização radical dos alimentos. E o que isso significa?
A FEMINIZAÇÃO DA COMIDA
Como explica a pesquisadora bióloga feminista Donna Haraway, a história mostra o perigo de uma política de identidade reducionista (ou seja, reduzir o mundo da experiência humana a lutas de poder relacionadas a sexo, raça ou classe social), que fundamenta grande parte do discurso do feminismo sem valorizar a importância da diferença, definida pelas preferências, criatividade e talento de cada pessoa. Por exemplo, ativistas da Agroecologia comumente caracterizam os problemas da modernização agrícola e da industrialização dos alimentos como o produto de um sistema distante e parte de uma batalha histórica entre uma classe camponesa marginalizada e os consumidores de elite urbanos. Essa forma de ver o problema é em parte verdadeira. Por outro lado, pode criar a sensação de frustração e desesperança na busca por alternativas já que as soluções possíveis seriam inacessíveis às pessoas comuns.
Inspirados por Haraway, percebemos que podemos ser agentes de uma mudança mais imediata e concreta de onde temos maior acesso e influência: dentro de casa, no bairro e na comunidade. Por isso, insistimos com aqueles que estão ansiosos por mudanças que comecem com uma reflexão sobre sua própria atividade, enquanto pessoa que come e, portanto, está envolvida na constituição e na estruturação do atual estado de coisas – para o bem ou para o mal.
De acordo com Haraway, quando nós fazemos um chamado em nome de uma certa identidade podemos acabar reforçando a mesma história de violência e segregação, a qual os ativistas querem combater. Em vez disso, Haraway faz um apelo à união e à intersubjetividade: à afinidade, entendida como o estado das relações de alguém com outras pessoas, bem como entre as pessoas e o meio ambiente, neste caso, o grau de bem-estar sociobiológico gerado na e por meio da prática agroalimentar de cada um. Não é que a política de identidade seja errada, Haraway explica. A questão é que, ao perpetuar uma divisão entre nós e eles, as pessoas diferentes podem vir a negligenciar sua semelhança e interdependência com outras. Em outras palavras: ao traçar linhas em torno de grupos de pessoas, perdemos o acesso a aliados em potencial e suas experiências, percepções e recursos.
Os movimentos populares alimentares no Equador, dos quais fazemos parte, há muito abraçaram a afinidade dos alimentos. No contexto da Covid-19, enfrentamos novos conflitos com a indústria de alimentos e seus aliados estatais e corporativos, mas também em nossas próprias famílias, bairros e comunidades. Resumimos aqui alguns elementos da controvérsia em torno à alimentação que emergiram em função da pandemia no Equador. Apresentaremos em seguida a Cozinha Emergente – uma resposta de milhares de famílias de diferentes estilos de vida, mas que compartilham um interesse comum em formas mais saudáveis, socialmente mais justas e sustentáveis de viver e de ser por meio da alimentação.
A RESPOSTA OFICIAL À COVID-19
Com a eclosão de casos do novo coronavríus em Guayaquil, o Equador entrou em um regime de restrições de mobilidade e medidas de proteção pessoal, incluindo distanciamento social, uso obrigatório de máscaras e uma quarentena sem precedentes. A partir de 13 de março, as pessoas só podiam circular em público uma vez por semana para obter alimentos ou atendimento médico. Foi imposto um toque de recolher das 14h às 5h da manhã nos dias de semana e durante o dia todo nos fins de semana.
Essas medidas não levaram em consideração a importância de assegurar um nível mínimo de alimentação familiar, de cuidados de saúde e de fortalecimento do sistema imunológico, fundamentais para a resistência às doenças. O Comitê Nacional de Operações de Emergência inicialmente limitou o fornecimento de alimentos às empresas privadas. Embora forneçam quase 70% dos alimentos frescos do Equador, os agricultores familiares não tinham os documentos necessários para vender seus produtos ao público. Apesar do risco de contágio em espaços fechados, o governo forçou a interrupção de mercados de rua, bem como de todos os mercados e feiras agroecológicas.
A baixa capacidade das famílias de cuidar de sua própria nutrição, alimentação e corpo foi negligenciada. Em vez disso, as políticas incentivaram continuamente o consumo de alimentos ultraprocessados, supostamente seguros, comprados em supermercados, menosprezando a crescente preocupação com uma pandemia ainda pior ligada à alimentação industrial: o sobrepeso e a obesidade, fatores associados ao aumento do risco de letalidade da infeccção por Covid-19. Em suma, a resposta oficial do Estado à crise alimentar provocada pelo confinamento absoluto foi: confiem em nós, pois nós vamos nos encarregar de fornecer o que vocês precisam.
Diante de um governo que negligenciava as relações diretas produtor-consumidor, as famílias e os bairros precisavam encontrar suas próprias soluções. E isso não foi fácil. Apresentamos na sequência dois exemplos de desafios para ter acesso a alimentos frescos e saudáveis, mesmo nas áreas rurais fora da cidade, por meio das histórias de Erlinda e Paul.
DEPENDÊNCIA E VULNERABILIDADE EM ZONAS PERIURBANAS: A HISTÓRIA DE ERLINDA E PAUL
As pessoas consideram normal que haja dependência alimentar nas cidades. Mas ficam surpresas ao saber que isso se tornou um problema comum nas áreas rurais. A propriedade agrícola de Erlinda fica perto de Quito, capital do Equador. Embora viva em uma comunidade cercada por áreas rurais, hoje a maioria de seus vizinhos deixou para trás a produção de alimentos para ir trabalhar na indústria de exportação de flores, na construção, como domésticas ou em maquiladoras de roupas.
Erlinda explica que essa situação criou uma grande dependência em meio a sua vizinhança:
O que mais gosto na minha propriedade é a diversidade de raízes, tubérculos e grãos andinos que cultivo, assim como meu banco de sementes. Eu também cultivo vegetais para consumo próprio. Quando fomos forçados a entrar em quarentena, os vizinhos que não estavam envolvidos no plantio acabaram com sua despensa vazia. Eles começaram a entrar em pânico e vieram me procurar por comida…
Paul, por sua vez, é um francês idoso que vive há mais de trinta anos nos Andes. Por preferir o ar puro do campo, ele escolheu viver em uma comunidade periurbana do povo indígena Kitukara. Como tem mais de 55 anos, a política do governo não permitia que ele saísse de casa. No início, ele não se preocupou:
Tínhamos luz, água potável, internet boa e muito espaço. Achei que poderia comprar tudo o que precisava [na comunidade]…
No entanto, após a primeira semana, Paul percebeu rapidamente que as prateleiras dos mercados locais não tinham mais alimentos frescos.
Não havia vegetais, nem frutas, nem ovos. Havia apenas macarrão, enlatados e comida não saudável. Naquele momento, percebi que, apesar de morar em uma comunidade de língua indígena, as pessoas não produziam mais nada [de alimentos]. Éramos tão vulneráveis quanto as pessoas [na cidade] cercadas de concreto.
Em ambos os casos, os vizinhos escolheram viver na zona rural, mas ganhavam a vida na cidade. As pessoas pararam de cultivar batatas e milho, de criar porquinhos-da-índia e galinhas e de plantar e cozinhar suas próprias ervas e vegetais. Nesse processo, essas comunidades perderam o contato com suas sementes, animais e costumes. A vida deles era no campo em todos os sentidos, menos fisicamente. Em termos de abastecimento alimentar, tornaram-se dependentes do mercado e da vontade dos outros. Diante do recrudescimento da crise, era preciso fazer algo para ajudar as pessoas a começar a reconstruir sua soberania alimentar.
A COZINHA EMERGENTE: O DESPERTAR DE PESSOAS QUE COMEM
Em resposta aos desafios alimentares enfrentados pelos moradores urbanos e rurais, o Coletivo Agroecológico e o Movimento de Economia Social e Solidária do Equador (Messe) uniram forças para resolver os problemas de produção, distribuição e compras de alimentos. Em particular, fizeram uso de uma série de plataformas de comunicação desenvolvidas ao longo dos últimos dez anos por meio de sua campanha conjunta para o consumo responsável: QueRicoEs! (QueSaborosoÉ!, em tradução livre).
O Coletivo Agroecológico e o Messe consideram fundamental a produção e a troca de alimentos para o fortalecimento da identidade, para a promoção da saúde e do bem-estar social das pessoas e para a conservação do meio ambiente. Defendemos a ideia de que, ao comer bem, em todos os sentidos, tanto os produtores como os consumidores podem cuidar coletivamente da saúde, da cultura e da natureza, avançando, dessa forma, em sua busca por soberania alimentar. Assim, o objetivo do QueRicoEs! não é apenas alcançar uma prática alimentar ética e responsável, mas também estabelecer as relações necessárias para que a produção de alimentos seja saudável para as pessoas e para a natureza.
No contexto da Covid-19, isso levou a uma série de respostas eficazes da sociedade civil, incluindo protocolos práticos de biossegurança, informações sobre o acesso a equipamentos de proteção individual e a serviços de diagnóstico remoto ou em laboratórios. Parceiros dos diferentes movimentos alimentares compartilharam sementes, equipamentos de irrigação e veículos que tinham autorização para circular em determinados dias. Criaram canais de comunicação para famílias em busca de maneiras específicas de acesso e de preparo de alimentos frescos e saudáveis. Também foram organizadas consultas gratuitas pela internet sobre horticultura urbana, nutrição para se proteger de doenças e culinária saudável, fermentação e armazenamento de alimentos.
Como parte desses esforços, começamos a experimentar uma série de debates públicos ao vivo na rádio e nas redes sociais, dando origem à Cozinha Emergente. O programa semanal consiste em conversas abertas entre pessoas que buscam alimentos saudáveis, como agricultores, donas de casa, cozinheiros profissionais e donos de mercados. A título de ilustração, gostaríamos de compartilhar uma conversa que aconteceu entre Michelle O. Fried, nutricionista e autora de livros bem populares de receitas, e Ibeth, uma dona de casa de Quito:
Ibeth: “Olá, boa tarde. Você poderia me dizer o nome dessa coisa?” [Ibeth então mostrou o balcão de sua cozinha sobre o qual repousava um objeto misterioso com aparência alienígena que a havia deixado perplexa.]
Michelle: “É bom experimentar algo novo e delicioso. É couve-rábano. É um repolho compacto, quase sem folhas. Mas suas pequenas folhas superiores também são muito saborosas. Onde você conseguiu isso?” Ibeth: “Encomendei uma cesta orgânica e recebi este produto. Mas eu não sei como prepará-lo.” Michelle: “Uma forma pouco comum de prepará-lo, mas que eu adoro, é ralar o bulbo cru e adicionar vinagrete com um pouco de óleo de gergelim torrado.”
Durante o programa, as pessoas compartilham suas experiências com pratos feitos com outros vegetais saborosos, pouco utilizados e inusitados, como agrião, maxixe-do-reino, chuchu, rúcula e cenoura branca. Michelle explica que esses vegetais pouco conhecidos e altamente nutritivos dos Andes, bem como de outras partes do mundo, têm sido cada vez mais substituídos por alimentos ultraprocessados, o que por sua vez compromete a saúde de famílias, bem como suas culturas alimentares. Nas palavras de Michelle, a resposta começa na cozinha: “A cozinha é onde a família é cuidada e protegida contra doenças”.
Apesar das preocupações e urgências trazidas pela pandemia e o confinamento social, os participantes do programa Cozinha Emergente perceberam que este é um momento para superar medos, expor o paladar a novos gostos e sabores e utilizar a experiência alimentar como um meio de lidar com a situação.
A AFINIDADE DA COMIDA PARA A VIDA
Como uma pessoa do público colocou durante o programa Cozinha Emergente: “Nosso objetivo após a pandemia não é voltar ao normal!” Buscamos algo mais.
Coerente com a cosmovisão andina, o feminismo radical entende a afinidade e o afeto de forma holística, contribuindo para o bem-estar de todas as pessoas, independentemente de sexo, raça ou nível de renda. Aplicada à agricultura e à alimentação, essa perspectiva busca contemplar as relações sociobiológicas decorrentes das interações entre seres humanos e entre estes e o meio ambiente.
Com a chegada da Covid-19, fomos impactados pela grande tragédia e tristeza de tantas de nossas famílias e vizinhanças acometidas pela doença e pelas mortes. Mas também encontramos a possibilidade de uma refeição preparada com o carinho e o cuidado para com a nossa coexistência. Ao proporcionar uma plataforma para as pessoas compartilharem uma afinidade pela culinária e pela alimentação saudável, sustentável e cultural e socialmente fortalecedora, a Cozinha Emergente contribui para a incorporação de uma prática que nutre a vida por meio da comida, em todas as suas maravilhosas expressões e diversidades.
Eliana Estrella, Marcelo Aizaga e Stephen Sherwood
Membros ativos na campanha QueRicoEs! do Messe e do Coletivo Agroecológico do Equador.
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