Eduardo Magalhães Ribeiro, Flávia Maria Galizoni, Alini Bicalho Noronha, Ricardo Pereira Reis e Rafael Eduardo Chiodi
MODERNIZAÇÃO
A partir da década de 1970, empresas, fazendeiros e grileiros se apropriaram de milhares de hectares de terras nos cerrados do Brasil Central. O movimento foi liderado por agências públicas, que viam naquelas terras planas e fracas uma oportunidade para expandir o agronegócio e criar nova base tecnológica para a agropecuária brasileira. A ocupação da “fronteira agrícola” dos cerrados – como se dizia na época – se completou já na década de 1980. Transformou regiões como o sul de Goiás e o Triângulo Mineiro em grandes produtoras de grãos, mas ao mesmo tempo criou gigantescos problemas sociais e ambientais em regiões como o Oeste baiano, o Vale do Jequitinhonha e os gerais – chapadões de vegetação arbustiva, muitas veredas e solo arenoso – do alto Médio são Francisco, em Minas Gerais.
Essa porção do rio são Francisco começou a ser povoada no século XVIII. Os agricultores geralistas criaram na região um regime agrário peculiar, usando os recursos das áreas de mata seca , gerais e brejos para produzir com abundância mesmo nos anos de poucas chuvas. A natureza dos gerais era exuberante, e o conhecimento adaptado ao lugar permitia que o lavrador se sustentasse plantando na mata, na vazante e nos brejos, ao mesmo tempo em que coletava frutos e criava animais na solta das chapadas. Na região, se formou uma sociedade capaz de produzir quase tudo o que consumia e que durante décadas exportou para a Bahia e demais estados do Nordeste os produtos que desciam nos vapores e marcaram para sempre a história do rio. Os cientistas que percorreram o são Francisco se impressionaram com a quantidade e a diversidade de recursos naturais dos gerais. Saint-Hilaire e Spix, depois Gardner, Richard Burton e Teodoro Sampaio descreveram a riqueza das chapadas, a fertilidade dos brejos e o estoque de recursos disponível para alimentação, saúde e criação.
Esses e os outros autores que visitaram a região previram um futuro magnífico, que viria com o progresso técnico e o investimento orientado. Nos anos 1970, o futuro chegou com o dinheiro da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o tripé veneno/trator/adubo da Revolução Verde. Começou então uma guerra aos gerais, derrubando mata para formar pastos, fazer carvão ou plantar eucaliptos. As veredas foram sistematizadas, destocadas e plantadas.
A reação dos gerais ao progresso não demorou. As chapadas arenosas são muito suscetíveis à erosão. Depois de desmatadas, liberaram a areia que foi carreada para entupir os cursos d’água. As veredas drenadas produziram por poucos anos. Na maioria dos casos a fertilidade declinava ao mesmo tempo em que a fonte de água minguava. Os cursos de água também eram sangrados pela irrigação e criação de gado em grande escala das fazendas da mata seca. Córregos, nascentes e veredas desapareceram.
As comunidades tradicionais da região perderam grande parte das chapadas, antes usadas para pastoreio e coleta em comum. Essas áreas foram compradas por firmas, desapropriadas por agências públicas ou tomadas por grileiros. Limitados às terras baixas de cultura e aos brejos, os agricultores intensificaram a produção nas áreas reduzidas, que foram empastadas e passaram a sustentar os rebanhos. As lavouras ficaram restritas aos brejos, mudaram para dentro das veredas. A criação de gado e o plantio de inverno nas veredas aceleraram o esgotamento da água e dos recursos que restaram aos agricultores. Impedidos de coletar nos gerais e soltar gado nos campos privatizados por firmas, geralistas foram transformados em veredeiros.
Assim, aos problemas sociais derivados da tomada de terras – emigração, conflitos fundiários, trabalho escravo nas carvoeiras e queda da produção dos agricultores – somaram- se os problemas ambientais, particularmente o de oferta de água, que agora marca a região.
NOVA RESTRIÇÃO
No fim da década de 1980, acabou o entusiasmo com a modernização agrícola da região. Sem os créditos da Sudene, os custos da produção se elevaram. O reflorestamento em chapadões de areia se revelou um péssimo negócio e as várzeas drenadas secaram e inviabilizaram o plantio intensivo. As firmas reduziram seu movimento, muitas delas abandonaram as chapadas griladas, mas outras mantiveram sem atividade as terras que haviam tomado.
Foi então, com recursos naturais já muito limitados e empurrados para dentro das veredas, que os agricultores geralistas passaram a enfrentar nova restrição: agências ambientais estaduais e federais começaram a criar áreas de conservação e controlar cada vez mais os espaços de produção.
Essas agências se interessaram pela região por conta de uma série de fatores: baixa densidade demográfica, áreas ainda extensas de veredas e chapadas, um significativo estoque de recursos naturais ameaçados e a necessidade de prover o são Francisco e suas barragens a jusante com água, uma vez que na região estão situadas nascentes que alimentam alguns dos principais tributários do rio. Os parques começaram a ser demarcados na década de 1980 e cresceram em número ao longo das duas décadas seguintes, quando firmas instaladas nos gerais abandonaram as áreas já abertas.
Dessa forma, o espaço de produção dos geralistas, que já fora reduzido pela tomada de terras, foi cerceado agora pelas restrições ao uso de recursos, pela intensificação da fiscalização e pelas unidades de conservação que formaram um mosaico de parques nacionais e estaduais. Assim, foi criada uma dupla pressão sobre as unidades familiares de produção: de um lado, as firmas que, independente de estarem ativas ou desativadas, continuam controlando grandes áreas de antigas chapadas comuns; de outro, as unidades de conservação que se expandiram e endureceram a vigilância. Os sistemas tradicionais de produção ficaram, como dizem, acuados entre a vereda e a chapada.
RIO DOS COCHOS
Essa foi a situação vivida pelos agricultores do rio dos Cochos.
Os Cochos, o riacho, como dizem os moradores do lugar, é o curso de água que drena uma área de gerais ao longo de 30 quilômetros para desaguar no rio ipueiras, tributário do são Francisco nos municípios de Januária, Cônego Marinho e Bonito de Minas. Zona de características ambientais, fundiárias, hídricas e sociais relativamente homogêneas, faz parte do semiárido, alternando campos, veredas e cerrados com fragmentos de matas secas. Nas beiras do rio dos Cochos predominam unidades familiares de produção, organizadas em comunidades rurais e que emendam suas áreas de terra comuns em chapadas.
Mas no rio dos Cochos há algo original: uma rara iniciativa local e autônoma de conservação de recursos hídricos e naturais. Quando o riacho começou a secar na década de 1990, não pôde mais ser usada a água de regra que irrigava os baixios de terras de cultura. Na ocasião, a abertura de poços tubulares se disseminou pela região. Então, um grupo de agricultores começou a se movimentar, criou uma organização, a associação dos Usuários da sub-bacia do rio dos Cochos (Assusbac), que recebeu apoio da Cáritas Brasileira, da Emater e da Misereor e mobiliza as 300 famílias do lugar para revitalizar seu riacho e fazer a água voltar a correr.
Em quase dez anos de atividade no rio dos Cochos, a Assusbac já experimentou muitos caminhos. Promoveu encontros e cursos para formar lideranças, assim como investiu na sensibilização de agricultores e jovens por meio de parceria com agências de extensão, universidades e escolas da sub-bacia. Tomou iniciativas de conservação, como barraginhas, plantio e cercamento de mata ciliar, e promoveu a formação de viveiros de espécies nativas. Ao mesmo tempo, tem buscado alternativas para adaptar a produção ao meio, aos recursos e à disponibilidade de água, ao estimular a criação de pequenos animais e a diversificação produtiva. Formou ainda uma rede de apicultores e meliponicultores, implantou e gere um entre- posto de beneficiamento de frutos extraídos dos gerais, além de procurar novos mercados e opções para comercialização. Apesar de todas as iniciativas, certamente aquela que mais habilita a Assusbac é a capacidade de diálogo que soube construir: a organização se capacitou para negociar os interesses dos agricultores, para representá-los junto aos órgãos públicos, para formular reivindicações. Como dizem os dirigentes da associação, o maior ganho foi ter perdido a vergonha de ser agricultor.
Mas a trajetória do grupo tem mostrado que compatibilizar produção e conservação não é tarefa fácil. Existem dificuldades internas, porque as iniciativas de conservação esbarram nos costumes, nas técnicas de produção, na dedicação arraigada à pecuária, nos hábitos alimentares e na própria identidade do agricultor. Existem também dificuldades externas: o conservadorismo dos órgãos ambientais, as disputas entre instituições públicas, a falta de fé nas iniciativas locais – principalmente quando conduzidas por agricultores geralistas.
O grande desafio colocado para esses agricultores é gerir recursos hídricos sem perder as características da cultura local. Como precisam produzir, devem adotar sistemas de produção que conservem água, assim como se dedicar a atividades que sejam atraentes a esses mercados incipientes, buscando produtos de reduzido impacto, como o agroextrativismo ou o artesanato. Aparentemente, bastaria capacitar agricultores em sistemas agroflorestais, ou optar por coletar frutos dos gerais para ganhar mais do que ganham plantando lavouras, ou lidar com apicultura para diminuir a pressão da criação sobre o meio.
Mas não se trata apenas de solucionar um problema técnico de gestão das águas para resolver a contradição entre produção e conservação. O problema da gestão, na verdade, faz parte de um emaranhado que envolve política, cultura e mercados. E essa trama não se resolve só com técnicas de oferta de água, inovações produtivas ou abertura de novos mercados.
DESAFIOS
A técnica às vezes vai na contramão dos esforços pela conservação das águas. Mesmo com a redução da vazão do rio, a demanda por água para consumo humano e produção continuou crescendo, entrando em choque com as ações conservacionistas. Assim, se forma um círculo vicioso: quando a água do rio diminui, é aberto um poço tubular sobre o próprio corpo d ’água ou se faz barragem. Ao longo do tem- po vão acontecendo outras intervenções, sempre paliativas. Quando o poço tubular seca, por exemplo, o lugar é abas- tecido com caminhão-pipa ou se constrói cisterna de placa para armazenar água de chuva. Essas técnicas fornecem a licença moral para que o riacho continue a ser sangrado durante os meses em que corre e desmobilizam as iniciativas de conservação propostas pelas Assusbac. E o pior é que não garantem o abastecimento. Para se ter uma ideia, enquanto o consumo médio de água per capita da população brasileira é de 136,16 litros/dia, no rio dos Cochos essa média fica em 31,20 litros/dia durante a seca, muito próxima dos 30 litros/dia observada na África subsaariana.
A cultura material da região às vezes também se transforma num obstáculo para a conservação. A criação de gado conflita com a lavoura na unidade produtiva, pois as melhores terras têm que ser repartidas entre pastos e plantios. Conflita também com a coleta de frutos e essências nativos, porque os pastos serão formados sobre áreas produtoras de pequi, cagaita, panã, coquinho azedo e até de buriti. Além disso, demanda muita água, a ponto de disputá-la com atividades intensivas em consumo, como horticultura e industrialização doméstica de produtos agrícolas. Conflita ainda mais com a conservação, por se alojar em chapadas, áreas de recarga dos mananciais.
Apesar disso, a pecuária é profundamente entranhada nos costumes do rio dos Cochos e se torna atraente por ter baixo custo e pelo fato de seus produtos poderem ser negociados com muita facilidade. E como algumas firmas se foram ou desistiram de reflorestar os gerais, parte dos chapadões voltaram a se transformar em soltas. Os ganhos que os agricultores adquirem – vindos de programas públicos, negócios ou até da comercialização de produtos do cerrado – se transformam em gado e em mais pressão sobre os recursos naturais. Cria-se, assim, uma situação complexa, pois mesmo com escassez crescente de água a pecuária se expande.
Há, por fim, dificuldades com as próprias atividades consideradas sustentáveis. Como são grandes as limitações para produção agrícola tradicional, a Assusbac vem insistindo na opção pelo extrativismo, num esforço para combinar costumes locais, manejo de recursos comuns e oportunidades nos mercados. O extrativismo faz parte da cultura material e alimentar da população dos gerais, que usa derivados do buriti e do pequi, e frutos como cajuzinho, panã, maracujá nativo, coquinho azedo, murici, araçá e pinha do mato. Além disso, dezenas de plantas são usadas para fins medicinais: barbatimão, pacari, grão-de- galo, cidreira, alecrim, sucupira, jatobá, entre outras.
Embora pareça muito viável a proposta do extrativismo sustentável, sua execução não tem sido uma operação simples, uma vez que esbarra em sérias restrições culturais à comercialização dos produtos do extrativismo. Como os agricultores despendem relativamente muito menos trabalho na extração que na lavoura, não costumam associar a atividade à identidade de trabalhador. No extrativismo, o lavrador vende aquilo que não plantou, e isso o desqualifica aos seus próprios olhos. Na região, o extrativismo também é associado à penúria e, portanto, viver da venda desses produtos significa assumir socialmente a dificuldade para sustentar a família. Por isso, mais que equipamentos, infraestrutura e qualificação de pessoal, os dirigentes da Assusbac percebem que é preciso haver uma mudança cultural para tornar viável o extrativismo. E isso não é fácil de conseguir, pois requer mudanças de mentalidade, campanhas de valorização dos produtos do extrativismo, o fortalecimento da identidade territorial e a reconstrução da relação da população com os recursos naturais. É, portanto, um árduo trabalho de formação das velhas e novas gerações.
Além disso, persiste o problema do acesso regular aos mercados. A feira livre é às vezes um bom mercado para escoar esses produtos, mas fica saturada em função do grande número de vendedores na época de safra. Existem outras oportunidades: bares, escolas, indústrias e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal. As dificuldades, nesse caso, são relacionadas à regularidade e à escala, que só serão solucionadas quando o extrativismo deixar de ser um comércio irregular e se converter em algo que os produtores acreditam. Para isso é necessária a mudança cultural que ainda não aconteceu.
Por fim, um balanço crítico permite perceber que, apesar das muitas dificuldades, os agricultores que formam a Assusbac desbravaram um novo caminho. Evidentemente um caminho que ainda precisa ser pavimentado. Mas, se não resolveram ainda as dificuldades de gestão comunitária das águas e dos recursos naturais, pelo menos já revelaram que é possível ser construída uma gerência próxima, integrada e participativa. Na atual gerência, mais que nas outras, as dificuldades ganham um grande destaque. Isso ocorre em parte porque os agricultores não dispõem de uma massa de recursos e da estrutura de poder e propaganda que cacifam as agências ambientais. Mas não se deve deixar de considerar também a dimensão sutil da proximidade e do amor que os geralistas dedicam às suas águas pequenas da vereda e da nascente, mobilizando o povo do lugar, que insiste em vê-las sempre transparentes. E é daí que podem surgir novas experiências, novos aprendizados e novas possibilidades.
Eduardo Magalhães Ribeiro
pesquisador do CNPq, bolsista PPM/Fapemig, professor do ICA/UFMG e do DAE/UFLA e membro do NPPJ
[email protected]
Flávia Maria Galizoni
antropóloga, professora do ICA/UFMG e membro do NPPJ
[email protected]
Alini Bicalho Noronha
engenheira agrônoma, MSC, técnica da Emater/MG, membro do NPPJ
Ricardo Pereira Reis
pesquisador do CNPq, professor titular da UFLA e membro do NPPJ
Rafael Eduardo Chiodi
engenheiro Florestal, MSC e membro do NPPJ
Referências Bibliográficas:
RIBEIRO, E.M. et al. Histórias dos gerais. Belo Horizonte: editora UFMG, 2010.
GALIZONI, F. M. et al. agricultura familiar, água e estratégias produtivas no rio dos Cochos, campos gerais de Minas. In: Congresso da sociedade Brasileira de economia e sociologia Rural, XLVI, 2008. Acre. Anais… acre: sociedade Brasileira de economia e sociologia Rural. Disponível em: <http://www.sober.org.br>. Acesso em: 2 de set. 2010.
Baixe o artigo completo:
Revista V7N3 – Conservar ou produzir: dilemas do uso das águas nos gerais sanfranciscanos