Edinei de Almeida, Paulo Petersen e Fábio Júnior Pereira da Silva
“Os problemas significativos que enfrentamos não podem ser resolvidos no mesmo nível de pensamento em que estávamos quando os criamos”
Albert Einstein
A má distribuição pluviométrica, que alterna períodos muito chuvosos e longos estios, é um dos efeitos das mudanças climáticas já visíveis no Sul do Brasil, região caracterizada exatamente pelo oposto, ou seja, pela boa distribuição das chuvas durante o ano. Esse cenário ambiental emergente traz consigo o aumento significativo dos riscos inerentes à agricultura, especialmente quando é fundada em lavouras anuais, as mais vulneráveis aos extremos climáticos.
Considerável parcela da agricultura familiar no Planalto Norte de Santa Catarina caracteriza-se por manter sua economia ancorada na produção convencional de cultivos anuais, como o milho, o feijão, a cebola, a soja e o fumo. Essa configuração atual dos agroecossistemas resulta diretamente de políticas governamentais que, ao longo das últimas décadas, induziram a agricultura familiar a abandonar muito de seus traços camponeses para incorporar uma lógica técnico-econômica fundada na especialização produtiva e na forte mercantilização, com a dependência crescente das agroindústrias de insumos e de produtos.
Com esse tipo de organização dos agroecossistemas de base familiar, a economia regional vem sofrendo sucessivos baques por conta do aumento da frequência de anos climáticos considerados ruins, assim como pela “tesoura de preços”, representada pelo incremento dos custos de produção e pela baixa gradativa dos preços dos produtos agrícolas.
Como reação ao acirramento da crise crônica a que a agricultura familiar está submetida, um número crescente de famílias da região vem se engajando na construção de alternativas técnicas e econômicas que assegurem maiores rendas para as famílias e melhores condições para gerir os crescentes riscos climáticos (Petersen e Almeida, 2008).
Tomando por base dados da safra do verão 2008-2009, este artigo apresenta uma análise comparativa entre o desempenho produtivo e econômico de produtores de milho que se associaram às redes locais de inovação agroecológica e o de produtores que seguem o padrão convencional. Sob qualquer ângulo através do qual observemos os desafios atuais relacionados às mudanças climáticas e aos seus efeitos sobre a agricultura e a sociedade, os resultados obtidos explicitam o anacronismo representado pela continuidade dos incentivos governamentais à modernização da agricultura familiar com base nos padrões produtivistas da Revolução Verde.
MAIS UM VERÃO PROBLEMÁTICO
O verão 2008-2009 em Santa Catarina ficará marcado na memória nacional por conta das chuvas e enchentes torrenciais que submeteram a população do Vale do Itajaí a um drama sem precedentes pelo expressivo número de vidas humanas perdidas e pelos prejuízos materiais incalculáveis sofridos.
Também nos municípios do Planalto Norte-Catarinense, região contígua ao Vale do Itajaí, os efeitos desse verão atípico se fizeram sentir, embora numa escala de intensidade muito inferior. Os principais afetados pelas chuvas foram os produtores de cultivos anuais.
Os problemas se manifestaram já em outubro, mês em que foi registrada uma pluviometria de 350 mm – quase 25% da média total anual para a região. Como outubro coincide com o início do período de plantio, o excesso de chuvas impôs a muitas famílias a necessidade do replantio no começo de novembro, quando as chuvas diminuíram de intensidade.
Após o excesso de chuvas verifica- do em outubro, a região assistiu a um longo período de estiagem que se estendeu de meados de novembro ao final de dezembro. Esse duplo estresse ambiental (excesso e falta de água no solo) causado por extremos climáticos opostos em uma mesma safra redundou em perdas significativas das lavouras.
O Relatório de Prejuízos pela Estiagem na Safra 2008-2009, elaborado pela prefeitura municipal de Irineópolis (SC), registra quebras de safra da ordem de 50% para o milho, 60% para o feijão, 25% para a cebola, 25% para o fumo e 15% para a soja.
Em que pese a grandeza dessas cifras, elas não dão conta da magnitude do impacto das perdas sobre as já debilitadas economias das famílias agricultoras, justamente em um ano em que os custos produtivos cresceram exponencialmente. Já se tem notícia de que essas quebras de safra obrigarão várias famílias da região a venderem terras para saldar dívidas contraídas para o custeio das lavouras.
Entretanto, vale destacar que, apesar da gravidade da situação, as quebras de safra e seus efeitos não foram iguais para todas as famílias. A análise comparativa entre os produtores convencionais de milho e aqueles que vêm adotando princípios agroecológicos de manejo evidencia esse fato.
SISTEMAS MAIS ADAPTADOS AOS EXTREMOS CLIMÁTICOS
As diferenças entre produtores de milho convencionais e em transição agroecológica surgiram já na fase de replantio. Para os primeiros, o replantio significou novo desembolso financeiro para a aquisição de sementes e fertilizantes. Já para os outros, o desembolso tornou-se desnecessário, uma vez que suas lavouras são conduzidas com sementes crioulas (produzidas na propriedade ou trocadas com vizinhos) e a gestão da fertilidade do sistema produtivo se fundamenta na dinamização biológica do solo pelo manejo de biomassa vegetal associada à incorporação de pós-de-rocha.
Com a colheita, verificou-se que a produtividade física dos sistemas convencionais variou entre aproximadamente 1,2 mil e 7 mil kg/ha. Os maiores rendimentos foram registrados nas áreas de várzeas, portanto, em ambientes menos vulneráveis ao estresse hídrico devido à natureza dos solos e à posição na paisagem.
Alcançando a produtividade média de 4,5 mil kg/ha (Prefeitura Municipal de Irineópolis, 2009) e com custos de produção em torno de R$ 2 mil por hectare, os produtores convencionais de milho tiveram prejuízos médios de R$ 762,00 por hectare (considerando o valor da saca de milho a R$ 17,00). Em outras palavras: para produzir 4,5 mil quilos de milho, os produtores tiveram um custo equivalente a 7 mil quilos.
Já as perdas dos produtores de milho que manejavam seus sistemas adotando princípios agroecológicos foram de apenas 20%. A produtividade média nesses casos foi de aproximadamente 4,2 mil kg/ha, com um custo médio de R$ 200,00, o que corresponde a 744 quilos de milho. Esses dados revelam que, apesar de enfrentarem fortes adversidades climáticas, essas lavouras foram capazes de gerar um saldo econômico positivo de quase 3,5 mil kg/há (ver Gráfico 1).
Tais resultados produtivos e econômicos demonstram que os sistemas de produção de milho em transição agroecológica lidaram melhor com os estresses ambientais decorrentes do excesso e da falta de chuvas. São, portanto, sistemas mais resilientes do ponto de vista ecológico e econômico. Em avaliação realizada com grupos de agricultores-experimentadores da região, esse melhor desempenho relativo das lavouras em transição agroecológica foi atribuído a um conjunto de fatores integrados associados a serviços ambientais promovidos pela biodiversidade nos agroecossistemas.
RUMO A UMA AGRICULTURA MAIS RESILIENTE
A gestão dos riscos climáticos é uma das características centrais da sabedoria camponesa. Ao estruturar o sistema de produção, a família camponesa leva em conta seus conhecimentos sobre os padrões climáticos locais adquiridos com anos de convivência e observação dos ciclos naturais.
Em um cenário de mudanças climáticas globais, no entanto, os agricultores terão que ajustar seus mecanismos de defesa contra perdas decorrentes dos extremos climáticos. A estabilidade da distribuição pluviométrica anual no Sul do Brasil, por exemplo, terá que ser relativizada para que a agricultura na região não sofra seguidas frustrações de safra por conta de excessos ou ausência de chuvas.
A experiência vivenciada pelas famílias produtoras de milho no Planalto Norte-Catarinense aqui relatada aponta para algumas conclusões gerais sobre as condições necessárias para o aprimoramento da gestão dos riscos climáticos pela agricultura familar na região. Duas delas merecem destaque:
O replantio como estratégia
O replantio de lavouras anuais em função de perdas decorrentes de falta ou excesso de chuvas é uma das estratégias empregadas por agricultores familiares em regiões de grande imprevisibilidade climática, como o semiárido brasileiro (Almeida e outros, 2008).
Tudo indica que a crescente instabilidade pluviométrica será um dos principais sintomas das mudanças climáticas no Sul do Brasil, o que implica uma tendência ao aumento da frequência dos replantios de lavouras. No entanto, a adoção dessa prática de convivência com a alta imprevisibilidade climática só será possível se as famílias não tiverem que adquirir sementes e fertilizantes a cada plantio. Nesse sentido, a construção de maiores níveis de autonomia de acesso às sementes e à manutenção da fertilidade dos solos é uma condição indispensável para a viabilização dessa estratégia.
Porém, esse importante mecanismo de adaptação às mudanças climáticas e a conquista da autonomia por parte da agricultura familiar estão ameaçados por ações conduzidas pelos poderes públicos, que continuam a estimular o plantio de sementes comerciais melhoradas para responder produtivamente ao emprego intensivo de agroquímicos. Para piorar em muito esse quadro, as recentes liberações de variedades transgênicas para o plantio comercial acirrarão ainda mais a dependência tecnológica da agricultura familiar ao fortalecer o seu atrelamento subordinado às cadeias agroindustriais.
Por outro lado, as redes populares de resgate, multiplicação e intercâmbio de sementes crioulas que se intensificam no Sul do Brasil apontam caminhos fecundos para o acesso autônomo da agricultura familiar aos recursos da agrobiodiversidade. Além de assegurarem sementes em quantidade e qualidade apropriadas para o momento do plantio sem a necessidade de desembolsos financeiros, essas redes sociais conservam in situ um patrimônio genético essencial para o contínuo desenvolvimento de estratégias locais de adaptação.
A diversificação dos sistemas
A menor vulnerabilidade aos riscos climáticos dos sistemas agroecológicos quando comparados aos convencionais é uma evidência que já está bastante bem documentada na literatura acadêmica. Entre outros fatores, esse fato tem sido atribuído às funções ecológicas proporcionadas pela manutenção de alto nível de biodiversidade nos agroecossistemas com o emprego de múltiplas espécies e variedades que se combinam em variados arranjos no espaço e no tempo.
Para os agricultores, essa superioridade torna-se bastante evidente nos períodos em que as perturbações ambientais são mais severas, tais como o verão 20082009 no Sul do Brasil. No entanto, um aspecto que chama a atenção na experiência relatada é o fato de que os mecanismos ecológicos que conferiram maior resiliência à produção do milho se revelaram bastante eficazes já em sistemas em início de transição agroecológica, ou seja, em monoculturas que permanecem estruturalmente semelhantes aos cultivos convencionais. Diante dessa evidência, duas conclusões principais podem ser tiradas:
1) Mesmo no curto prazo, os produtores convecionais de grãos podem adquirir condições muito superiores para lidar com os riscos econômicos associados às mudanças climáticas. Esse fato questiona a noção amplamente disseminada de que, ao ingressarem em processos de transição agroecológica, os produtores convencionais necessariamente vivenciam períodos de queda na rentabilidade de suas lavouras. Experiências anteriores sistematizadas na região já haviam demonstrado que essa premissa não é verdadeira, mesmo em anos climáticos normais, quando os sistemas convencionais maximizam o seu potencial produtivo (Petersen e Almeida, 2008). Esses fatos são indicativos de que propostas de manejo agroecológico podem ser adotadas por um número massivo de famílias com resultados positivos imediatos para elas e para a economia regional.
2) Com o avanço da transição agroecológica, os riscos ambientais e econômicos tenderão a diminuir como consequência do aumento da diversidade biológica nos agroecossistemas. Práticas como o consorciamento e a rotação de culturas, a rearborização da paisagem, a integração agriculturacriações, e outras, favoreceriam em muito a reciclagem de nutrientes nos sistemas, tornando-os mais autônomos do ponto de vista técnico e econômico e mais resilientes do ponto de vista ecológico.
Mas para que essas condições ocorram e se dissemine o enfoque ecológico de gestão de riscos, torna-se necessária uma imediata revisão nas orientações das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. A continuidade do estímulo ao emprego de sementes comerciais e fertilizantes sintéticos pelos sistemas de assistência técnica e extensão rural e de financiamento público dificulta o ingresso de um número significativo de famílias em processos de transição agroecológica. Além do mais, a intensificação do uso de tratores e implementos pela agricultura familiar estimulada pelo Programa Mais Alimentos impõe enormes obstáculos a mudanças estruturais nos agroecossistemas já que esse tipo de tecnologia foi desenvolvida exatamente para ser aplicada em sistemas simplificados baseados nos monocultivos.
Edinei de Almeida
assessor técnico da ASPTA
[email protected]
Paulo Petersen
diretor executivo da ASPTA
[email protected] Fábio Jr.
Pereira da Silva
bolsista CnPq UEL/ASPTA
[email protected]
Referências Bibliográficas
ALMEIDA , P.; JANTARA, A.; PETERSEN, P. Conservando a biodiversidade em ecossistemas cultivados: ação comunitária na manutenção de variedades locais na Paraíba e Paraná. In: Bensusan, N. (org.) Seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade: como, para que e porquê. São Paulo, Peirópolis, Brasília: UnB, 2008.
PETERSEN, P.; ALMEIDA, E. Revendo o conceito de fertilidade; conversão ecológica do sistema de manejo dos solos na região do Contestado. In: Agriculturas: experiências em agroecologia. Rio de Janeiro: ASPTA, v.5, n. 3, 2008.
PREFEITURA MUNICIPAL DE IRINEÓPOLIS. Relatório de Prejuízos pela Estiagem na Safra 2008-2009. Irineópolis, 2009
Baixe o artigo completo:
Revista V6N1 – Lidando com extremos climáticos: análise comparativa entre lavouras convencionais e em transição ecológica no Planalto Norte de Santa Catarina