A crise sanitária da Covid-19 exacerbou outras crises na região do Sahel, na África. Pouco antes do início da pandemia, uma abordagem inovadora para aumentar a resiliência de comunidades rurais por meio da Agroecologia estava começando a dar frutos em Burkina Faso, Gana, Mali e Senegal. No centro dessa estratégia estão as mulheres, pioneiras em práticas agroecológicas orientadas a fortalecer os níveis de segurança alimentar e nutricional de suas famílias e comunidades. A partir dessas iniciativas, homens e mulheres passaram a estabelecer novas relações, com maior paridade econômica e de poder, uma condição para a construção de maior resiliência da agricultura camponesa.
Tsuamba Bourgou e Peter Gubbels
Burkina Faso e outros países do Sahel enfrentam uma série de crises combinadas. Mais de 12 milhões de pequenos agricultores e suas famílias nas áreas secas da região estão cronicamente vulneráveis à insegurança alimentar e nutricional. Isso se deve a uma conjunção de fatores tais como a degradação de ecossistemas frágeis, o crescimento populacional e a baixa capacidade de adaptação dos sistemas produtivos locais a extremos climáticos, como grandes períodos de seca. Diante dessa situação, um número crescente de famílias toma medidas desesperadas. Vendem suas colheitas para pagar empréstimos contraídos com agiotas, consomem seus estoques de sementes, reduzem o número de refeições diárias ou vendem partes de seus patrimônios. Todas essas medidas as torna ainda mais vulneráveis.
Além disso, milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas para escapar da violência extrema imposta por grupos armados, como os jihadistas. Com isso, passam a viver em circunstâncias terríveis, muitas vezes sem um teto para morar, enfrentando a escassez de água, alimentos e cuidados médicos. A pandemia da Covid-19 agrava a crise, principalmente para as mulheres. Depois de ataques terroristas, muitos serviços rurais, como escolas, hospitais e delegacias de polícia, foram fechados, serviços extremamente necessários durante a pandemia. O fechamento forçado de mercados e a imposição de isolamento social também tiveram forte impacto nas comunidades rurais.
Nas regiões onde trabalhamos, essas restrições prejudicaram as atividades de geração de renda para as mulheres, como a venda de hortigranjeiros e produtos artesanais ou a manutenção de pequenos negócios. Também afetou a capacidade dos grupos de mulheres de realizar atividades coletivas, como a produção vegetal para a venda na estação seca (fevereiro a maio), a continuidade de seus grupos de poupança coletiva e crédito solidário e a participação em capacitações e outros espaços de formação.
A AGROECOLOGIA COMO RESPOSTA
Antes da pandemia da Covid-19, um número crescente de mulheres no Sahel já havia começado a experimentar práticas agroecológicas, incluindo técnicas de conservação do solo e da água, sistemas agroflorestais, consorciamento com leguminosas, uso de sementes locais de ciclo curto e produção de vegetais na estação seca. Elas se interessaram nessas práticas porque reconheceram nelas potencial para aumentar a fertilidade do solo, a produtividade dos cultivos, a conservação dos recursos naturais e, como consequência, a melhoria na alimentação e das rendas de suas famílias, bem como a diminuição de riscos aos extremos climáticos.
Em Burkina Faso, mulheres de mais de 80 comunidades na região Leste, perto de Fada N’Gourma, começaram a fazer uso dessas práticas com o apoio de uma ONG local chamada Associação Nutrir sem Destruir (ANSD, na sigla em inglês) e da rede Groundswell Africa do Oeste. Elas aprofundaram seus conhecimentos sobre práticas agroecológicas que atendiam às suas necessidades, como proteção de arbustos e plantio na estação seca, o que lhes proporcionava alimentos saudáveis durante todo o ano.
Como explica a Sra. Bilana Ouoba, entre 60 e 70 anos, habitante da aldeia Kokouogou, isso implicou superar alguns obstáculos culturais:
Na nossa forma tradicional de agricultura, sempre existiu a visão de que é preciso ser louco para deixar as árvores sufocarem os cultivos. Então, eu costumava cortar todas as árvores e arbustos e até varrer todos os galhos e colocar fogo em tudo. Quando ouvimos falar sobre uma estratégia de agricultura que permite que as árvores cresçam [Manejo Camponês da Regeneração Natural, em tradução livre], isso causou muita controvérsia em nossa comunidade. Mas comecei a fazer alguns testes e proteger pequenas árvores que cresciam no meu terreno. Também melhorei o solo. Agora colho as vagens das árvores piliostigma. Tornou-se uma importante fonte de renda e alimentação saudável para mim. Hoje, essa é uma prática comum entre as mulheres da aldeia.
As mulheres também passaram a participar de grupos comunitários de poupança e crédito solidário. Isso não apenas permitiu que tivessem acesso a recursos vitais, mas também reforçou sua liderança, solidariedade e autoconfiança. Além disso, as mulheres negociaram com os líderes das aldeias e com a administração do município para garantir o acesso à terra e à água para o plantio na estação seca. Os líderes da aldeia também concordaram em apoiar as mulheres das famílias mais pobres no acesso às sementes, por meio de um sistema popular de crédito baseado no armazenamento cooperativo de grãos (localmente conhecido como garantia) e fundos rotativos para a aquisição de aves, cabras ou ovelhas. Uma das muitas coisas que podemos aprender com essas mulheres é que melhorar os meios de vida requer não apenas conhecimento técnico e acesso a recursos produtivos, mas também fortalecimento das capacidades organizacionais e de liderança.
Isso ficou muito evidente no caso do Grupo de Mulheres Lanpugini da aldeia de Bassieri, em Burkina Faso, que reúne de 44 integrantes, das quais apenas duas são alfabetizadas. A principal atividade do grupo é a produção de vegetais para a venda. Mas desde 2011 também administram seu próprio fundo rotativo, com um mecanismo específico de solidariedade para mulheres em situações de urgência. Nos encontros semanais do grupo, as mulheres têm a oportunidade de falar e ouvir umas às outras, discutir suas preocupações (inclusive sobre agricultura) e compartilhar outras ideias sobre como melhorar suas condições de vida.
Hoje se tornou algo comum que as mulheres dessa área se unam para captar e administrar fundos para a agricultura e a criação de animais. Depois de algum tempo, elas começaram a discutir as relações de gênero. A criação de seu próprio coletivo fortaleceu o espírito de liderança e as capacidades organizacionais das mulheres. Também lhes permitiu ter uma voz mais ativa na tomada de decisões – tanto dentro de suas famílias como na comunidade.
NOVAS FUNÇÕES E RESPONSABILIDADES
Essas experiências no Sahel são significativas porque homens e mulheres da região estão cada vez mais convencidos de que a participação das mulheres na promoção das práticas agroecológicas é essencial, no sentido da implementação de soluções criativas, sustentáveis e produtivas para melhorar as condições de vida das famílias. No entanto, o envolvimento das mulheres nessas iniciativas pode facilmente resultar em aumento considerável de suas já pesadas cargas de trabalho. As tarefas domésticas, o trabalho agrícola e o cuidado das crianças que elas tradicionalmente assumem são muitas vezes chamados de tripla jornada de trabalho. Além disso, apesar de seu protagonismo nessas iniciativas de inovação agroecológica, muitas mulheres permanecem economicamente marginalizadas e vulneráveis – às vezes assumindo cargas de trabalho ainda maiores. Embora a Agroecologia seja enaltecida por sua ênfase nos valores humanos e sociais, como dignidade, equidade, inclusão e justiça, ainda há muito a ser aprendido pelas assessorias nesse campo de atuação de forma que apoiem a construção de relações de poder mais equitativas dentro das famílias e das comunidades. Nesse sentido, esta experiência é inspiradora.
TRANSFORMANDO AS RELAÇÕES DE PODER
Por vários anos, temos acompanhado comunidades em Burkina Faso, Gana, Mali e Senegal em seus esforços para combinar Agroecologia com equidade entre mulheres e homens. Enquanto as comunidades ensinavam umas às outras as práticas agroecológicas mais relevantes, buscavam reformar o sistema de governança comunitário e municipal, fortalecendo o papel das mulheres no processo, incluindo as das famílias mais vulneráveis.
Foram criados Comitês de Desenvolvimento da Comunidade em que mulheres figuravam como lideranças. Esses comitês orientam o planejamento, a implementação e o monitoramento da atividades de promoção da Agroecologia. Já no âmbito municipal, ou Comuna, o prefeito e os conselheiros eleitos, ao observarem os benefícios da Agroecologia por meio de visitas de campo e discussões com os moradores, concordaram em incluir sua promoção em seus orçamentos e Planos de Desenvolvimento. Esses planos agora também preveem atividades específicas para fortalecer a participação das mulheres.
Essa série de iniciativas já está dando frutos. Por exemplo, tornou-se comum que os homens ajudem ou substituam suas esposas no plantio de canteiros e na rega das lavouras quando necessário, como em casos de doença ou gravidez. Outro indicador é que, em muitas comunidades, os homens contribuíram com seus próprios recursos para cercar os locais de hortas comerciais reservados às mulheres. Além disso, enquanto em famílias numerosas as avós costumam cuidar dos filhos quando as mulheres estão fora de casa trabalhando nos cultivos ou fazendo vendas, em famílias menores agora pode ser visto com mais frequência os homens assumirem essas tarefas de cuidado. Finalmente, em alguns casos, os homens mais velhos e as autoridades tradicionais das aldeias concordaram em conceder acesso seguro à terra para grupos de mulheres que se dedicam a hortas comerciais ou a plantios coletivos. Essas são mudanças socioculturais importantes para as famílias rurais no Sahel.
LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA
Vimos que é essencial que as mulheres sejam capazes de abordar diretamente as relações de gênero e a divisão de recursos e responsabilidades dentro da família. É muito importante que as conquistas – em termos de autoconfiança, organização, solidariedade, liderança e ganhos econômicos por meio de seus grupos de mulheres e atividades produtivas – não impliquem que as mulheres fiquem mais sobrecarregadas ou que o cuidado dos filhos seja comprometido. Como vimos, mudanças na divisão de funções e tarefas são necessárias e possíveis.
No contexto social e cultural do Sahel, os benefícios de curto prazo da Agroecologia para atender às necessidades específicas das mulheres podem eventualmente trazer mudanças mais amplas. Aumentos na renda, na segurança alimentar e nutricional, na autoconfiança, nas capacidades organizacionais e no bem-estar econômico lançam as bases para instigar mudanças nas relações de gênero e na posição das mulheres em suas famílias e comunidades com relação à tomada de decisão. É importante considerar que esse tipo de mudança pode enfrentar resistências. O processo pode ser acelerado por meio do apoio de organizações da sociedade civil, por exemplo, com a facilitação de diálogos e por meio da capacitação local. Percebemos que, como agentes externos, podemos desempenhar um papel de facilitador, mas no final são as próprias mulheres que devem conduzir essas negociações dentro de suas famílias e comunidades. Temos muita convicção de que essas experiências irão iluminar o caminho mais promissor para uma renegociação real e equitativa de papéis e responsabilidades entre homens e mulheres no contexto da Agroecologia no Sahel.
Tsuamba Bourgou,
coordenador regional da Groundswell África Ocidental
[email protected]
Peter Gubbels,
diretor de pesquisa-ação e de incidência política da Groundswell International