Na perspectiva dos povos Maia, que constituem a maioria da população da Guatemala, a Agroecologia pode ser entendida como um sistema de vida: um sistema que protege diferentes variedades de sementes e diversas práticas agrícolas nas quais todos os elementos vitais da natureza convergem e se sincronizam em harmonia. Avô Vento, Avó Água, Avô Fogo, Avó Lua, Avô Sol, Mãe Terra e Pai Celestial formam a família que dá vida ao planeta. A sincronia entre esses elementos e as pessoas promove uma forma de agricultura na qual todos estão conectados. Um elemento não pode viver sem o outro; cada um cumpre muitas funções que são sustentadas por outros elementos. Dessa forma, a Mãe Natureza gera produtos que nutrem não só os corpos vivos, mas também o espírito da vida.
Juana Patricia Sanic, Manuela Elizabeth Telón, David Humberto Paredes e Felix Atonio Archila
As mulheres sempre desempenharam um papel importante na agricultura e na proteção dessa delicada harmonia com a natureza. Em uma história tradicional Maia de como a agricultura foi domesticada (ver Quadro na página 38), as mulheres aparecem como sendo as primeiras a plantar e colher seus próprios alimentos.
A ASCENSÃO DA AGRICULTURA MODERNA
Até a década de 1940, as amêndoas de cacau eram usadas como dinheiro na Guatemala. Elas eram consideradas altamente valiosas e também eram oferecidas aos deuses por seu sabor requintado e outras propriedades. Da mesma forma, as práticas de trueque (escambo) eram muito comuns. As famílias trocavam constantemente seus produtos agrícolas. Por exemplo, o milho era trocado por ervas ou o feijão por ovos.
Ao longo do século passado, porém, tudo mudou. Infelizmente, com a imposição do modelo econômico atual, a partir da década de 1940, a agricultura foi incorporada ao sistema de mercado e seu papel na sociedade passou a ser meramente comercial. Alimentos, antes produzidos para o preparo de comidas saudáveis, agora são produzidos predominantemente para gerar lucro através do comércio. A partir das décadas de 1950 e 1960, surgiram as empresas agroindustriais. Elas se consideravam donas do país, invadindo e se apoderando de terras de comunidades indígenas e camponesas para realizar a agricultura de grande escala.
A partir de 1960, a Guatemala passou por 36 anos tenebrosos de guerra civil, cujo centro era a luta pelo controle da política, do poder econômico e da posse da terra. Muitas comunidades camponesas e indígenas foram torturadas e massacradas e tiveram suas casas e aldeias incendiadas. O governo, o exército e as forças de segurança aplicaram a política de Terra Arrasada, que consistia na remoção dos plantios, das casas e das pessoas. Os documentos de propriedade dos povos indígenas e comunidades camponesas foram apagados para preparar o caminho para a expropriação e privatização de terras.
A EXPLORAÇÃO DE MULHERES CAMPONESAS E INDÍGENAS
Durante mais de três décadas de guerra, milhares de mulheres morreram após serem estupradas por soldados, tendo sofrido vários tipos de tortura. Seus seios eram cortados para que não pudessem amamentar seus filhos, bebês foram extraídos de seus úteros. As camponesas e indígenas eram vistas como inimigas a exterminar, pois representavam a conexão com a vida e com a terra por meio de seus conhecimentos, suas práticas e sua capacidade de gerar e alimentar uma nova vida, que posteriormente poderia se tornar uma pessoa a se rebelar contra os que estão no poder.
Famílias indígenas e camponesas ficaram sem terra e sem as condições mínimas para levar uma vida digna. Tiveram que procurar proprietários de terras dispostos a fornecer moradia em troca de trabalho. Uma oferta muito atraente aos proprietários que poderiam contar com mão de obra não remunerada.
Basicamente, as comunidades camponesas e indígenas foram levadas à escravidão para sobreviver. Novamente, as mulheres foram as que mais sofreram. Proprietários de terras exploraram sua situação de vulnerabilidade para forçá-las a ter relações sexuais. A recusa significava que as famílias corriam o risco de ser despejadas, despojadas de suas casas ou de ter que trabalhar mais ou fazer tarefas mais pesadas. Os proprietários de terras não viam as mulheres como seres humanos, mas como objetos sexuais.
Embora os abusos extremos tenham ficado para trás, a violência contra as mulheres rurais não desapareceu. Os direitos humanos, especialmente os das mulheres camponesas e indígenas, seguem sendo constantemente violados por grupos da elite e grandes corporações na Guatemala. Os governos municipais, estaduais e nacionais se curvam às demandas das empresas, pois são elas que financiam suas campanhas políticas, ajudando a manter um sistema de exploração, submissão e desigualdade no país.
PROMOÇÃO DA AGROECOLOGIA GERA MAIS EQUIDADE
No período de que nos falam nossos avôs e avós Maia, a agricultura era uma prática cultural da qual mulheres, homens, jovens, velhos e crianças participavam sem qualquer discriminação. Um dos objetivos mais importantes da Rede Nacional pela Defesa da Soberania Alimentar na Guatemala (Redsag) é resgatar essa prática e defender os direitos das mulheres. Romper com o sistema racista e patriarcal que sustenta a sociedade guatemalteca é um grande desafio. No entanto, estamos nos esforçando para isso, restaurando o equilíbrio entre mulheres, homens, fauna, flora e os elementos que conformam a visão de mundo Maia, a qual nos ensina que nossa identidade é nossa história e nossa história é nossa identidade.
Anos de patriarcado e guerra civil aumentaram as desigualdades. A Agroecologia, no entanto, é enraizada na crença de que todos podem semear, trabalhar a terra, colher e cozinhar produtos de suas próprias áreas de cultivo. Acreditamos que, ao fomentar o fazer agroecológico, alcançaremos uma distribuição mais justa da pesada carga de trabalho doméstico. Às vezes, as mulheres nas comunidades participam das reuniões, enquanto os homens cuidam da família. Há homens que aprenderam a cozinhar e que estão assumindo esse trabalho com mais frequência do que antes. Essas são mudanças importantes. Aos poucos vamos conscientizando as pessoas para transformar a realidade. A Redsag aumenta a sensibilização por meio de capacitações em escolas, igrejas, com a mídia e por meio de ações de incidência política. É uma tarefa árdua, mas necessária; estamos também trabalhando para a adoção nacional de políticas públicas que protejam os direitos das mulheres.
Também estamos capacitando mulheres como agrofeministas, com foco na preservação e na promoção do conhecimento cultural, tradicional e ancestral, unindo nossas vozes em defesa dos bens naturais.
Estamos organizando bancos de sementes crioulas e nativas em todos os territórios do país. Nosso objetivo é desenvolver capacidades no domínio da Agroecologia e da economia comunitária para homens e mulheres, incentivando os homens a ceder espaços pelos quais as mulheres continuam a lutar.
Na visão de mundo Maia, existe o entendimento de que homens e mulheres possuem os mesmos direitos. Eles são complementares na manutenção da harmonia de um sistema de vida que está em equilíbrio com todos os sistemas de vida que nos rodeiam. Somente revitalizando e protegendo o conhecimento e a prática ancestral de nossos avôs e avós seremos capazes de respeitar tudo ao nosso redor e nos conectar às nossas próprias formas tradicionais de interagir com o saber espiritual do planeta.
Juana Patricia Sanic, Manuela Elizabeth Telón, David Humberto Paredes, Felix Atonio Archila
As e os autores trabalham na Rede Nacional pela Defesa da Soberania Alimentar na Guatemala (Redsag).
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