Agroecologia, soberania alimentar e feminismo são conceitos que, juntos, apontam para uma perspectiva nova e crítica sobre alimentação e agricultura. Eles podem nos ajudar a entender o mundo para transformá-lo. Mas o que exatamente significam? E o que podemos fazer? Neste pequeno artigo, apresentamos três proposições críticas.
Marta Soler Montiel, Marta Rivera-Ferre e Irene García Roces
Soberania alimentar, Agroecologia e feminismo são frequentemente associados a lutas políticas complexas. Alguns desses termos fazem parte das nossas vidas diárias e outros estão mais distantes. Os três conceitos representam uma variedade de propostas políticas, especialmente quando tomadas em conjunto. Muitas vezes, eles se deparam com as realidades cruéis. Embora possamos almejar viver em um mundo fundado na soberania alimentar construída com base em uma Agroecologia feminista, vivemos cercados pela agricultura industrializada e por alimentos globalizados em um mundo capitalista e patriarcal. Essas são as contradições que precisamos superar.
QUÃO FEMINISTA É A SOBERANIA ALIMENTAR?
O termo soberania alimentar nasceu na Via Campesina como um conceito alternativo à globalização agroalimentar. É definido como o direito dos povos de decidir e controlar seus alimentos de maneira autônoma por meio da Agroecologia camponesa. A Agroecologia, por outro lado, é uma alternativa à Revolução Verde que recupera e se baseia no conhecimento tradicional, faz o manejo da biodiversidade com sabedoria e arte e integra aspectos sociais e ecológicos à produção de alimentos. Além disso, a Agroecologia confere autonomia a agricultores e agricultoras, justamente por ser colocada em prática por meio do uso do conhecimento e do saber fazer de quem planta, cultiva e produz alimentos.
A justiça social, tanto para quem produz alimentos como para quem os consome, sempre esteve no cerne da soberania alimentar. Poderíamos pensar, portanto, que a igualdade de gênero também está implicitamente presente, e que a soberania alimentar e, por extensão, a Agroecologia camponesa são feministas. No entanto, as mulheres da Via Campesina precisaram criar sua própria assembleia dentro da organização para lutar por participação e para garantir que o feminismo fosse assumido como uma questão que diz respeito a todos. Como o patriarcado permeia nosso mundo e norteia nosso modo de vida, corremos o risco de construir uma soberania alimentar e uma Agroecologia patriarcais. Isso porque ainda é muito comum a idealização da agricultura familiar, da cultura das comunidades rurais e indígenas e do saber culinário, sem que sejam questionadas as relações de gênero profundamente desiguais que se escondem nas famílias, unidades produtivas, comunidades e cozinhas.
Frequentemente, as mulheres permanecem sendo invisibilizadas ou consideradas ajudantes e não protagonistas da transição agroecológica. Quando as camponesas ganham destaque na Agroecologia, na produção ou na comercialização, costumam receber elogios. Mas nada se fala da sobrecarga de trabalho que sofrem para realizar o que fazem? Como conseguem negociar a divisão das tarefas domésticas para não se submeterem à exaustão ao se empenharem em participar da vida pública e econômica? Na verdade, às vezes caímos na armadilha de querer tornar visível o trabalho das mulheres e acabamos glorificando as responsabilidades femininas tradicionais sem exigir uma divisão justa do trabalho.
UMA VIDA QUE VALE A PENA VIVER
Garantir e demonstrar a viabilidade econômica da Agroecologia é uma prioridade. Hoje é muito difícil viver no campo, com meios de subsistência rurais caracterizados pela insegurança no emprego, falta de salários dignos, baixos benefícios, direitos trabalhistas mínimos e cargas de trabalho pesadas. As mulheres são desproporcionalmente sobrecarregadas nesse contexto. Além de serem ativas em iniciativas agroecológicas, muitas vezes elas têm outros trabalhos remunerados e se dedicam às atividades do cuidado. Portanto, é importante estabelecer projetos agroecológicos realistas que proporcionem uma remuneração decente e vidas dignas.
Estamos contaminados pelo machismo e reproduzimos a violência, as relações de poder desiguais e os papéis tradicionalmente atribuídos a cada gênero. Você sabe como lidar com conflitos e emoções em projetos agroecológicos? Na verdade, as relações patriarcais permanecem presentes no mundo rural e no urbano, inclusive nas iniciativas agroecológicas. Perceber e agir contra isso implica fazer com que a prioridade seja repensar constantemente como lidar com essas relações e a violência inerente a elas.
Questões que devem ser centrais para quem está construindo uma Agroecologia feminista são:
- Como construir iniciativas agroecológicas que coletivizem os trabalhos de cuidado?
- Como obter uma renda digna para o campesinato e ao mesmo tempo manter os preços acessíveis para consumidores de baixa renda?
O QUE FAZER
Propomos aqui algumas ideias sobre o que fazer, embora saibamos que tanto os diagnósticos quanto as propostas de ação e mudança devem ser construídas coletivamente.
- Valorizar todos os tipos de trabalho
Pensamos que um primeiro passo é reconhecer, explicar e enfrentar o fato de que os trabalhos e papéis que as mulheres tradicionalmente desempenham, tanto na produção agrícola como nas cozinhas, nas casas, nas famílias, nas comunidades e nos territórios, são considerados como de menor valor do que os que os homens realizam. A valorização social do trabalho da mulher deve envolver também uma distribuição igualitária de tarefas, tornando o cuidado uma responsabilidade coletiva de toda a sociedade, e não uma exclusividade das mulheres. Essa proposta implica, portanto, uma divisão justa dos trabalhos de cuidados.
- Questionar as relações de poder
Um segundo passo essencial é questionar as relações de poder dentro da família e romper com a idealização da família camponesa, a fim de confrontar e mudar as relações patriarcais.
Uma transição agroecológica feminista deve ser acompanhada por mudanças nas relações e nos papéis de homens e mulheres em seus lares, construindo novas formas de convivência. Isso, aliado à distribuição igualitária do trabalho de cuidado, permitiria às mulheres conquistar alguns dos espaços atualmente ocupados por homens.
- Resolver a falta de tempo por meio da construção de redes
Um terceiro passo é fortalecer e desenvolver redes e parcerias com indivíduos e grupos, tanto na agricultura quanto no cuidado de crianças ou outras pessoas. Isso ajudará a resolver a falta de tempo imposta pelos ritmos produtivistas às comunidades rurais. A realização de planejamentos conjuntos, a colaboração e o engajamento no trabalho coletivo podem facilitar o cuidado e a participação na vida da comunidade. Isso pode assumir várias formas: cozinhar, organizar uma dieta adaptada a cada estação, estar em um grupo de consumidores ou fazer campanhas para incorporar alimentos orgânicos nas cantinas das escolas. Isso pode economizar tempo para, por exemplo, conservar sementes, cultivar a horta, cuidar de animais ou processar alimentos, sem que isso represente aumento na jornada de trabalho.
Essas ideias são baseadas no pensamento do ecofeminismo e do feminismo descolonial, que colocam a comida no centro de nossa sociedade. Nessa abordagem, tanto o trabalho na produção agrícola quanto o trabalho doméstico e de cuidados são considerados essenciais para a vida, deslocando, portanto, a atual centralidade dos mercados. Para nós, faz todo o sentido prosseguir com essa proposta radicalmente democrática. Acreditamos que esse é o caminho mais promissor para a Agroecologia feminista e a recampesinização de que precisamos para conquistar a soberania alimentar de todos os povos.
Marta Soler Montiel, Professora de Economia Agrária na Esco-la Técnica Superior de Engenharia Agronômica na Universidade de Sevilha.
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Marta G. Rivera Ferre, Diretora da Cátedra de Agroecologia e Sistemas Alimentares da Universidade de Vic – Universidade Central da Catalunha, membra do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
Irene García Roces, Integrante do Coletivo Varagaña Gênero e Agroecologia em Astúrias e co-coordenadora do núcleo de gênero do programa de Mestrado em Agroecologia na Universidade Internacional de Andaluzia.