Eduardo Magalhães Ribeiro, Eduardo Barbosa Ayres, Flávia Maria Galizoni, Ana Flávia Almeida, Thiago de Paula Assis, Thiago Borges Moreira, Vanessa Fonseca e Alice Assis Carvalho
O ENGENHO
A denominação varia de acordo com o autor e o lugar: agroindústria rural, pequena indústria familiar ou indústria familiar rural, mas serve sempre para definir a mesma arte engenhosa de agregar valor à produção dos agricultores. Além de valor, esses processos criam outros resultados menos comentados: estão entre as fontes mais importantes para gerar renda, contribuem para a segurança e a soberania alimentar, fortalecem os laços da cultura e do pertencimento a um território.
Esse tipo de produção está disseminado por todo o Brasil, mas cada localidade gera produtos com características bem marcantes. Por exemplo, a farinha que na Bahia é tão fina que se compara ao polvilho tem pouca semelhança com a farinha maciça que é base para tantos bons pratos do Pará; enquanto o melado denso do planalto de São Paulo guarda com o mel-de-cana da bacia do rio São Francisco só o parentesco distante que é sugerido pelo gosto. Apesar de criados com os mesmos insumos e processos muito semelhantes, eles se diferenciam para que o gosto do lugar se afirme com força no produto final.
Entretanto, em qualquer lugar que seja, a produção se baseia em alguns pilares. Primeiro, num conhecimento mate- rial enciclopédico e tradicional sobre produtos e processos específicos, passado de um agricultor para outro, sempre a cada dia enriquecido, renovado e adaptado. Segundo, numa profunda ligação dos produtos com os hábitos alimentares, os preceitos de saúde e a cultura do território. Terceiro, num cruzamento entre conhecimento e gosto que faz do produtor um consumidor requintado, sendo por isso mesmo muito exigente consigo e cativo das preferências do lugar. Por fim, essa produção se aferra a nichos territoriais de mercados tão exclusivos que costumam impedir que se produza em escala industrial, mas ao mesmo tempo servem como mecanismo de proteção contra a concorrência de produtos similares que passam por processamento industrial.
O Vale do Jequitinhonha, situado no nordeste de Minas Gerais, é marcado pela pequena unidade familiar que tem sido denomina- da como tradicional. Graças à forte base rural da cultura material que vem do início do século XVIII, é uma região de reconhecida excelência na produção artesanal de derivados de mandioca, milho, cana-de-açúcar e leite. Essas atividades têm abastecido a população produtora e ocupado espaços em mercados locais, principalmente nas feiras livres municipais.
Nessa região de cerrado e caatinga, com período de estiagem bem marcado entre abril e novembro, as famílias rurais investem o tempo do longo período de seca no beneficiamento de produtos da agricultura, da pecuária e do extrativismo.
Essas atividades têm propiciado aumento da renda familiar, conservado alimentos perecíveis por longos períodos e absorvido força de trabalho – principalmente mulheres e jovens – que não encontra muitas opções de ocupação na região durante a estação seca.
Este artigo analisa algumas características da indústria doméstica da região. Ele resulta de pesquisas conduzidas em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) e os Territórios Rurais do Alto e do Médio Jequitinhonha. As informações aqui contidas foram levantadas nos Censos Agropecuários, nas feiras livres e junto a grupos de produtores, especialistas da indústria doméstica rural, de vários municípios da porção mineira do Vale do Jequitinhonha.
A ARTE
A indústria doméstica rural do Jequitinhonha, ao contrário do que o termo sugere, não é realmente uma indústria. Os processos produtivos são muito específicos e definidos, antes de mais nada, pelo tipo de recursos que existem no lugar. Por outro lado, o produtor conhece, comanda e executa todas as etapas da produção, o que faz com que se diferencie muito da produção fabril. Por fim, uma boa parte da produção é para autoconsumo. Assim, a agroindústria doméstica se caracteriza por criar um produto artesanal, que tem inserção em mercados locais, resulta da combinação entre arte e manufatura e revela a sofisticação da cultura material.
No Jequitinhonha, alguns desses produtos são destinados para o autoconsumo, enquanto outros são priorizados para a venda. Mais de um terço da produção regional de farinha de mandioca, rapadura, farinha de milho e fubá vai para abastecer as próprias famílias. Já o polvilho e o mel, por exemplo, são produzidos para vender, mas também complementam a alimentação familiar. Embora tenha participação menos expressiva nas refeições principais, o polvilho ocupa sempre posição destacada na produção de quitandas, e o mel não só está na mesa dos agricultores, como também é usado na produção de doces e remédios caseiros.
Além disso, esses produtos ocupam espaços importantes nas feiras livres – aproximadamente um terço dos pontos de venda –, que absorvem entre 40 e 80% do total da produção de farinha de mandioca, farinha de milho, rapadura, queijo e requeijão. Essa presença também não é regular, pois em alguns municípios a proporção é maior que em outros. Entretanto, além de informar sobre as fontes de renda da família rural que beneficia, esse canal de venda revela outro aspecto importante: no contato frequente do produtor com o consumidor, a negociação também envolve o padrão territorial de gosto e qualidade.
A qualidade – ou capricho, como dizem os agricultores – tem sua origem associada a dois critérios: de um lado, o padrão costumeiro de apresentação do produto; de outro, a exigência do consumidor. O padrão costumeiro de apresentação tem suas raízes na formação da cultura material do território, vem da combinação de influências do sudoeste baiano e do próprio Alto Jequitinhonha mineiro. Essas matrizes apresentam diferenças sutis: o Alto Jequitinhonha tem, por exemplo, uma presença discretamente maior dos derivados de cana e milho; já o Médio e o Baixo Jequitinhonha têm um pendor mais baiano, um gosto maior para processar os derivados de mandioca. Mas, além disso, a apresentação dos produtos propriamente dita assume formas que variam do sutil ao muito explícito, mudando de cor, composição, paladar, ponto de cozimento e textura do alimento.
No entanto, essa definição de padrões de qualidade também sofre uma in- fluência constante e repetida no contato semanal do gosto do consumidor e do próprio produtor. Esses produtores-especialistas têm uma relação muito próxima, pessoal e interativa com seus consumidores, conhecem quase todos nas feiras, quando apresentam seus comentários pessoais sobre o produto. Assim, consolida-se um padrão alimentar local de qualidade. Como o agricultor na maioria das vezes é ao mesmo tempo produtor e negociante da sua produção nos mercados locais, e essa condição só pode ser mantida se for conservada a qualidade, isso o leva a informar o freguês quando o produto não está totalmente bom ou de acordo com o padrão estabelecido.
Mas esses produtores não deixam de ser consumidores. Por isso, sua definição de qualidade depende do lugar e do gosto do freguês, mas também de seus critérios próprios de apreciação, que geralmente são muito semelhantes aos de seus compradores. Assim, como os produtos artesanais são ao mesmo tempo para autoconsumo, eles também devem passar pelo controle familiar de qualidade. A reputação de todos os produtos, da rapadura à farinha de mandioca, do mel ao fubá, é estabelecida pelo paladar. Identifica-se o bom produto com a boca, provando. A goma é aprovada quando apresenta gosto azedo e textura fina, tem que dissolver na boca. A farinha tem que ficar úmida no mesmo momento em que entra em contato com a língua; se a secura persistir, a farinha não presta. A qualidade da rapadura se conhece pelo doce, que deve no começo lembrar a cana e no final, o mel, mas não pode nunca trazer ao final um travo de sal. Esses agricultores são provadores de sofisticação equivalente àquela do sommelier em relação aos vinhos, pois, afinal, eles são parte importante dessa união engenhosa de soberania com segurança alimentar.
Por isso, para esses especialistas, a qualidade é um aspecto sempre mais importante que a quantidade. Mas é difícil para muitos técnicos de extensão rural e planejadores de desenvolvimento territorial compreender isso: eles pensam em produtividade e escala e raramente percebem que os produtores dependem dessa qualidade cultivada no espaço doméstico para conservar as posições que conquistaram nesses mercados tão pequenos, mas ao mesmo tempo tão exigentes que enfrentam todos os sábados. Dependem de manter a qualidade porque seus consumidores são visíveis e concretos na feira livre, exigindo o produto num padrão costumeiro e numa especificação bastante definida. Dessa maneira, a ênfase que as agências de mediação costumam colocar na produtividade esbarra nessa armadilha montada pela cultura material, que estipula que apresentação, qualidade, tipo e gosto se sobrepõem à quantidade, concebendo a agroindústria doméstica como parte da soberania alimentar, precisamente o contrário de um padrão fordista de alimentação.
A CULTURA
Dado o estágio de maturação dos programas públicos, das iniciativas de economia solidária e de aprimoramento dos mercados institucionais, o processo de produção desses bens fica marcado por uma tensão contínua entre a busca por mais produtividade e a manutenção do padrão cultural e costumeiro de qualidade. Essa tensão influi na escolha do equipamento, na seleção das variedades agrícolas e do tipo de terra, assim como na disponibilidade da força de trabalho familiar. Esta, afinal, será determinante, pois é exatamente essa capacidade muito específica de agregar valor que fornece o diferencial entre uma farinha de fábrica e outra de farinheira, a rapadura industrial e a rapadura de engenho. Ao final, o melhor processo será aquele que permitir combinar a maior qualidade com o menor dispêndio de tempo de trabalho.
Mas o desenho do produto é definido realmente nesses mercados limitados e soberanos. Os espaços de aceitação da farinha de mandioca de Medina e da rapadura de Novo Cruzeiro, por exemplo, são restritos, tanto em termos de número de pontos de venda quanto de delimitação geográfica: cabem nas feiras livres e nas casas de comércio desses municípios. A restrição de mercados, combinada ao rigor da estacionalidade da produção, cria uma dificuldade estrutural para produzir durante todo o ano. Há também uma bruta limitação na possibilidade de uso e investimento nos equipamentos produtivos: como investir dinheiro e trabalho na produção de farinha que ocupa – em tempo parcial – apenas seis meses do ano? Como esticar a estação produtiva se a consequência será o produto fugir do padrão de qualidade, prejudicar a alimentação da família e perder seu espaço na feira livre?
Esses produtores enfrentam ainda uma dupla dificuldade de comercialização. De um lado, não podem produzir tudo o que o seu potencial permite, uma vez que levar o rendimento ao extremo quase que fatalmente criaria estagnação nas vendas em função da dimensão reduzida dos mercados. De outro, há uma forte sazonalidade nas vendas e na produção, que se concentra no período das secas. Por isso a grande variação nos preços de produtos beneficiados ao longo do ano, que mudam, como dizem, entre seca-e-s’água. No município de Araçuaí, em agosto de 2010, em plena estação produtiva, a rapadura de 2,5 kg estava cotada a R$ 4,50. Cinco meses antes, em março de 2010, a mesma rapadura valia R$ 8,00. A pesquisa em algumas feiras revelou a escassez às vezes absoluta de produtos beneficiados no tempo das chuvas. E, se a variação acentuada de preço indica sazonalidade, aponta também a fidelidade do consumidor ao produto e seu caráter essencial na dieta local.
Como o produto é estacional, é preciso estocar para vender na entressafra. Entretanto, as condições de armazenagem são limitadas, o que faz com que o produto perca qualidade e a freguesia da feira livre reclame. Além do mais, como a produção do agricultor é diversificada, no tempo das chuvas a família produz mantimentos e se dedica a outras atividades, em vez de enfrentar o risco de fugir aos padrões de qualidade, o que desagradaria os produtores e afastaria seus fregueses costumeiros. Os especialistas preferem perder o dinheiro do tempo das águas a perder o cliente que aprecia a alta qualidade do seu produto. E, para manter essa relação, ele fará todo esforço possível para adaptar variedades precoces à produção, porque, nesse caso, precocidade será muito mais importante que produtividade.
Assim, o produto da agroindústria doméstica é de caráter artesanal, produção sazonal e de pequena escala. Isso cria uma impossibilidade para o produtor se dedicar mais e qualificar melhor seu produto. É um dilema que aparece com frequência nos fóruns de debate territorial, e nem sempre os programas públicos e os técnicos de extensão acertam a mão, pois costumam insistir na necessidade de imprimir um caráter industrial na agroindústria doméstica. As sugestões de mudanças acabam sendo na direção do aumento da produtividade física e das escalas, algo que contraria os produtores e principalmente os consumidores que eles encontram todos os sábados nas alegres e coloridas feiras do Jequitinhonha. Afinal, elevar a produtividade de uma grande variedade de produtos pode implicar mais demanda por trabalho, um maior custo na fertilização das terras e aumento dos gastos com transporte. Entretanto, o mais importante é ressaltar que uma maior produtividade não assegura necessariamente melhores mercados.
Os programas de melhoramento tecnológico da indústria doméstica deveriam cuidar antes de tudo de seu caráter artesanal. O que absolutamente não significa que inovações não devam ser propostas, embora devessem sempre se pautar por: a) melhoramentos que reduzam a penosidade do trabalho; b) conhecimento etnopedológico e de usos das terras; c) estudos de variedades adaptadas aos usos locais da terra; d) possibilidades de elevação dos rendimentos físicos sem modificar as condições da produção e os padrões microlocais de qualidade; e, sobretudo, e) criar facilidades de acesso às feiras livres, que são o fundamento mesmo da existência desses produtos.
Eduardo Magalhães Ribeiro
professor ICA/UFMG, pesquisador CNPq bolsista PPM/Fapemig do Núcleo PPJ
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Eduardo Barbosa Ayres
bolsista EXP-CNPq do Núcleo PPJ
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Flávia Maria Galizoni
professora ICA/UFMG do Núcleo PPJ
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Ana Flávia Almeida
bolsista IC/CNPq/UFMG do Núcleo PPJ
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Thiago de Paula Assis
professor da UFLA do Núcleo PPJ
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Thiago Borges Moreira
bolsista EXP-CNPq do Núcleo PPJ
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Vanessa Fonseca
bolsista IC/CNPq/UFMG do Núcleo PPJ
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Alice Assis Carvalho
bolsista Capes do Núcleo PPJ
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Revista V8N3 – O engenho na mesa: indústria doméstica e soberania alimentar no Jequitinhonha mineiro