O vírus da Covid-19 abalou as convicções de muitas pessoas que pensavam que a comida processada e globalizada é segura e confiável. Essas pessoas não sabem mais em que pensar. Algumas passaram a plantar hortas e a comprar localmente, práticas que são importantes para a soberania alimentar local. No entanto, em toda a Europa e América do Norte, muitas dessas iniciativas continuam baseadas em um paradigma neoliberal de mercado. Precisamos desesperadamente focar nossa ação em eliminar o poder corporativo dos sistemas alimentares e apoiar mudanças sistêmicas de longo prazo.
Iniciativas de abastecimento alimentar locais são cruciais para a construção de sistemas alimentares mais justos e sustentáveis. Elas apoiam economias e governança locais, colocam consumidores em contato com produtores e com o ambiente natural, revitalizam o sentimento de comunidade, deixam claras as origens dos alimentos, evitam a produção de alimentos ultraprocessados e os monopólios das redes de supermercados. Hortas caseiras também podem fornecer alimentos saudáveis e acessíveis, oportunidades para aprender e conectar as pessoas com a natureza e a comida. Porém, as iniciativas alimentares locais e as hortas contribuiriam mais a fundo na promoção de mudanças sociais se também enfrentassem desigualdades estruturais e a exclusão social.
Em primeiro lugar, porque nem todo mundo tem acesso à comida, muito menos comida saudável, produzida localmente e de forma sustentável. E nem todos têm terra, know-how ou tempo para fa-zer hortas. Iniciativas individuais de horticultura teriam mais impacto se fossem conjugadas a esforços coletivos para garantir o acesso à terra, capacitar pessoas ou construir novos sistemas de intercâmbio local, por exemplo, para aqueles que não têm tempo para cultivar ou dinheiro para comprar produtos locais saudáveis.
Em segundo lugar, embora comunidades fortes sejam importantes para o desenvolvimento de sistemas alimentares territorializados, elas podem se consolidar como espaços fechados, gerando o risco de promover novas formas de exclusão e conflito. É preciso haver um trabalho direcionado para a construção de redes baseadas em solidariedade que favoreçam a aliança com pessoas de outras comunidades ou de diferentes origens.
Em terceiro lugar, as iniciativas locais muitas vezes são despolitizadas, ao focar exclusivamente no aspecto técnico dos sistemas de produção alimentar. Porém, cidadãos e cidadãs também podem se mobilizar para influenciar a governança dos sistemas alimentares, trabalhando em parceria com governos (locais), enfrentando desigualdades estruturais em iniciativas alimentares (por exemplo, antirracismo), ou engajando-se em mobilizações que desafiem políticas e práticas de produção, processamento e distribuição de alimentos impostas pelas corporações do agronegócio.
Em quarto lugar, essas iniciativas locais nos países do Norte global em geral não conseguem enfrentar a relação colonizada estabelecida entre corporações, consumidores, grupos de elite e governos com os produtores de alimentos e comunidades dos países Sul global. A única maneira de derrubar esse modelo é por meio de processos de aprendizagem coletiva e global e pela ação transnacional capazes de revelar e desconstruir essas relações colonialistas que estruturam os sistemas alimentares dominantes.
Nadando contra a corrente, os movimentos sociais no Norte global estão ampliando as dimensões políticas das iniciativas alimentares locais. Estão promovendo modelos econômicos baseados na economia feminista e no decrescimento que vão muito além da lógica econômica capitalista focada exclusivamente no lucro. Precisamos continuar a mudar o foco de nossos esforços: do individual para coletivo; do excludente para o inclusivo; do técnico para o político. Só assim será possível destruir o poder das corporações do agronegócio. Esse trabalho é fundamental para a construção de um sistema alimentar mais empático, sustentável e justo.
Colin Anderson, Jessica Milgroom e Michel Pimbert
trabalham no Centro de Agroecologia, Água e Resiliência da Universidade de Coventry, Reino Unido, onde fazem parte do grupo Agroecology Now.
Jessica também é cofundadora da Cultivate!.
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