É comum eu ser questionada quando vinculo equidade de gênero e feminismo à Agroecologia. Seja por pareceristas durante a revisão científica de artigos por pares, ou nos círculos políticos, muitas vezes me perguntam “o que isso tem a ver com Agroecologia”? A resposta, na minha opinião, é tudo – sem discutir gênero e outras iniquidades sociais e desenvolver novas formas de organização que aborde a injustiça, a Agroecologia seria simplesmente uma forma ambientalmente amigável de agricultura, que imita sistemas naturais, aumenta a biodiversidade e reduz o uso de agrotóxicos. Mas não resolveria as iniquidades e injustiças fundamentais que estão no cerne dos sistemas alimentares dominantes.
Fui coautora do relatório do Painel de Especialistas de Alto Nível das Nações Unidas sobre Agroecologia e outras abordagens inovadoras para a promoção da segurança alimentar e nutricional. Nele, destacamos como a atenção à dinâmica do poder é uma das formas fundamentais de diferenciar a Agroecologia de outras abordagens agrícolas voltadas para promover práticas mais sustentáveis. Não se trata apenas da desigualdade de gênero, mas das muitas e muitas camadas de iniquidades sociais inerentes ao sistema alimentar. O termo interseccionalidade, cunhado pela estudiosa feminista Crenshaw, refere-se às formas sobrepostas e interativas pelas quais raça, sexualidade, classe, gênero e outras categorias identitárias atuam como fontes de poder e formas de opressão nos níveis individual, comunitário e institucional.
A Agroecologia vai além de um conjunto de práticas e abordagens para garantir benefícios ecológicos da agricultura, ao orientar a construção de um sistema alimentar justo e igualitário. Portanto, a Agroecologia não trata apenas do cultivo de alimentos, mas também das relações de poder nos sistemas alimentares. Embora a noção de Agroecologia transformadora enfatize fatores políticos e econômicos que moldam o sistema alimentar, ainda há pouca atenção às dinâmicas de poder dentro das famílias e comunidades que empregam abordagens agroecológicas. Se a Agroecologia está levando ao aumento da carga de trabalho para as mulheres em detrimento da saúde e do bem-estar delas, ou está deixando de pensar nos trabalhadores rurais e suas famílias, não está de fato sendo socialmente transformadora.
Uma perspectiva feminista para a Agroecologia é, portanto, aquela que integra a atenção às iniquidades às abordagens agroecológicas e se empenha em colocar a justiça social no centro dos esforços para mudar valores e processos. Quais são as implicações de práticas específicas para o tempo, o trabalho e o lazer das pessoas? Como são compartilhadas as decisões e tarefas sobre o que plantar, como gerir o estabelecimento familiar, como cuidar dos membros da família e o que fazer com a produção? Os benefícios da produção agroecológica são compartilhados dentro e entre famílias e comunidades? As pessoas estão sendo exploradas?
Em nosso trabalho no Malawi, em colaboração com a Solos, Alimentos e Comunidades Saudáveis (SFHC, sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos liderada por agricultores e agricultoras, examinamos como a Agroecologia pode reparar fissuras sociais criadas no sistema alimentar falido de hoje, incluindo as relações de gênero. Esforços nesse sentido não são simples e não se fazem sem luta. Mas podem proporcionar mudanças reais e significativas à medida que as famílias agricultoras usam métodos agroecológicos não só para reparar o solo, mas também para reparar e enfrentar as iniquidades nas famílias e comunidades.
Rachel Bezner Kerr
é professora da Universidade de Cornell (EUA), no Departamento de Desenvolvimento Global.
[email protected]
Referências
BEZNER KERR, Rachel; HICKEY, Catherine; LUPAFYA, Esther; DAKISHONI, Laifolo. Repairing Rifts or Reproducing Inequalities? Agroecology, Food Sovereignty, and Gender Justice in Malawi. Journal of Peasant Studies, vol. 46, no. 7, p. 1499–1518, 2019.
HIGH LEVEL PANEL OF EXPERTS ON FOOD SECURITY AND NUTRITION (HLPE). Agroecological and other innovative approaches for sustainable agriculture and food systems that enhance food security and nutrition.
[S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: http:// www.fao.org/fileadmin/user_upload/hlpe/ hlpe_documents/HLPE_Reports/HLPE-Re-port-14_EN.pdf.