A Agroecologia como nova abordagem para lidar com as desigualdades em Uganda está gerando resultados interessantes. Ao usar ferramentas de reflexão culturalmente apropriadas, mulheres e homens rurais estão fortalecendo suas práticas agroecológicas enquanto desafiam normas socioculturais. No contexto das mudanças climáticas e da pandemia da Covid-19, adotam estratégias coletivas para garantir sistemas alimentares equitativos e resilientes.
Joshua Aijuka, Robert Guloba, Denis Okello e Mary Baganizi
Desde 2018, as comunidades Acholi e Teso, respectivamente no Norte e Leste de Uganda, vêm resgatando e desenvolvendo práticas de cultivo e o uso de alimentos tradicionais e silvestres. Para desenvolverem suas estratégias de ação, analisaram suas realidades com base em ferramentas metodológicas relativamente simples que integram o método Sistemas de Aprendizagem de Ação em Gênero (Gals, na sigla em inglês). Para superar alguns dos desafios identificados, ambas as comunidades desenvolveram ações práticas tais como a domesticação de alimentos silvestres, a criação de bancos de sementes comunitários e a organização de feiras de sementes e alimentos tradicionais. Essas ações foram definidas em planos de ação comunitários, sendo consideradas parte fundamental das estratégias para a superação das desigualdades de poder entre homens e mulheres.
MULHERES NA AGRICULTURA EM UGANDA
Tradicionalmente, as mulheres no Norte de Uganda estão envolvidas em várias atividades agrícolas, desde a produção até o processamento, o transporte e a venda. A migração masculina para as cidades aumentou ainda mais a carga de trabalho das mulheres e meninas, que também são responsáveis por preparar a alimentação das famílias e por outros serviços de cuidado não remunerados.
Em comparação com os homens, a maioria das mulheres agricultoras não tem acesso a recursos adequados para o trabalho agrícola. Nos últimos cinco anos, o governo empreendeu alguns esforços para promover a tração animal e a mecanização nas unidades agrícolas. Mas pouco fez para lidar com as barreiras culturais que impedem que as mulheres sejam proprietárias de tais recursos produtivos. O poder de decisão das mulheres sobre a gestão dos sistemas de produção é também limitado. Cerca de 65% das agricultoras têm pouco controle sobre os ganhos de suas atividades produtivas.
A crise da Covid-19 aumentou ainda mais o fardo sobre as mulheres rurais na produção de alimentos, já que muitos familiares retornaram às áreas rurais buscando refúgio durante a pandemia. O acesso a recursos agrícolas vitais, como sementes, conhecimento e mercados, foi severamente prejudicado durante o período inicial de confinamento. As práticas tradicionais de armazenamento de sementes também foram afetadas, uma vez que muitas famílias foram levadas a consumir seus estoques para assegurar a alimentação. O agravamento dos problemas financeiros e o fato de os homens agora passarem mais tempo em casa do que o normal também contribuíram para o aumento dos níveis de violência doméstica.
DEFENDENDO UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA
Desde 2018, cerca de três mil famílias de Teso e Acholi têm utilizado o método Gals como abordagem de ação. Essa parte do país é conhecida por seus campos de savana e longos períodos de seca, o que torna as práticas de manejo agroecológico particularmente relevantes. Quando comparados aos agricultores da região central de Uganda, os agricultores nessas regiões geralmente têm níveis mais baixos de educação formal, dispõem de poucos recursos produtivos e possuem limitado acesso a serviços e infraestruturas. Em tempos de crise, como secas prolongadas, chuvas fortes, surtos de insetos-praga (como a recente invasão de gafanhotos) ou a atual pandemia da Covid-19, muitas famílias recorrem à venda de recursos produtivas.
Com o uso dos Gals, os agricultores começaram a refletir sobre os papéis e as responsabilidades dentro de suas famílias relacionadas ao acesso e à propriedade dos recursos, ao mesmo tempo em que desenvolviam capacidade técnica em práticas agroecológicas. Um pequeno número de comunidades participantes já estava experimentando práticas agroecológicas em pequena escala, mas todas eram novas na metodologia dos Gals.
Processos de aprendizagem entre pares (estilo agricultor a agricultor) fundamentam o método. Os chamados campeões1, homens ou mulheres, são os que aprenderam a usar as ferramentas dos Gals para então capacitar outras pessoas em sua comunidade. Os campeões masculinos foram expressamente selecionados para serem agentes de mudança entre seus colegas homens. Essa parte do processo exigiu bastante paciência. Foram identificados apenas alguns homens que tinham um relacionamento com suas esposas em que a tomada de decisão é igualitária e que estavam realmente dispostos a gradualmente buscar transformar as compreensões e atitudes de seus colegas.
Além de aprofundarem seus conhecimentos e práticas agroecológicas (principalmente em compostagem, planejamento do estabelecimento agrícola, diversificação produtiva, agrofloresta, captação e armazenamento de água da chuva, manejo da fertilidade do solo, integração lavoura-pecuária, banco de sementes comunitário e manejo integrado de insetos-praga), os membros da comunidade começaram a incorporar ferramentas dos Gals no processo. Isso lhes permitiu fortalecer a Agroecologia sem criar uma carga de trabalho adicional para as mulheres, assim como garantiu que tanto os homens como as mulheres e crianças usufruíssem dos resultados gerados pela agricultura.
A maioria das famílias identificou as mudanças climáticas, mais tangíveis na forma de secas prolongadas e chuvas intensas, como seu maior obstáculo. Buscando soluções, as comunidades desenvolveram mapas de riscos, trajetórias almejadas por suas comunidades e planos de ação definindo as soluções adequadas.
Por exemplo, as famílias elaboraram e apresentaram sua Visão de Trajeto, esquema que ilustrava as estratégias e a trajetória que deveriam percorrer para chegar a produzir e vender mais vegetais durante a estação seca. Elas identificaram a irrigação, a fabricação de compostagem e a secagem solar como as práticas adequadas e necessárias para ajudar a avançar na rota traçada. Outras famílias utilizaram uma Árvore de Desafios, por meio da qual identificaram o desmatamento como a causa da seca que enfrentavam e para apontar a agrofloresta como uma solução apropriada. No distrito de Kalaki, por exemplo, elas começaram a plantar árvores, restaurar pântanos e abrir caminhos para o gado. As ferramentas dos Gals ajudaram essas famílias a desenvolver um novo equilíbrio na divisão da responsabilidade por esse trabalho entre homens e mulheres.
TRANSFORMANDO OS PAPÉIS DENTRO DA FAMÍLIA
Essa experiência motivou os agricultores e agricultoras a adotar a Agroecologia como enfoque para a construção de soluções para o alcance de suas visões de futuro. O fortalecimento das práticas agroecológicas proporcionou a diversificação produtiva e maiores rendimentos, o que melhorou a alimentação das famílias. Também há indícios de maior resiliência, como o fato de que menos famílias estão vendendo seus recursos produtivos em tempos difíceis ou de crise.
Estamos agora testemunhando relações mais justas dentro das famílias. Em muitas delas, as atividades agrícolas e domésticas são realizadas por todos os membros da família. Desafiando as normas culturais preexistentes, as mulheres agora também possuem animais, como cabras e ovelhas. Isso levou a uma economia familiar mais justa: os homens participam das tarefas domésticas e do trabalho agrícola, e a tomada de decisões é compartilhada, o que antes não acontecia. Vários homens começaram a assumir tarefas domésticas, como cozinhar, buscar água e dar banho nas crianças, entre outras. Eles se tornaram em geral mais receptivos e solidários com as necessidades de suas esposas. Tudo isso ajudou a reduzir a carga de trabalho das mulheres.
Há mais reconhecimento da importância da seleção de sementes feita pelas mulheres: não apenas pelo rendimento e potencial de comercialização, mas também pelas qualidades de sabor e segurança alimentar doméstica que proporciona. Além disso, a metodologia dos Gals ajudou as mulheres a selecionar sementes que são mais resilientes às mudanças climáticas. Homens e mulheres procuram agora uma diversidade de sementes de qualidade para atender a suas necessidades.
Isso não quer dizer que foi fácil chegar até aqui. Uma grande dificuldade com os Gals é a lentidão do processo de mudança de atitudes e comportamentos das pessoas.
Além disso, percebemos que geralmente é mais fácil para as mulheres participar dos espaços de diálogo e reflexão proporcionados pelo método do que para os homens.
FATORES DE SUCESSO
Ao refletir sobre nossa experiência, podemos identificar vários fatores de sucesso. Em primeiro lugar, vimos que as metodologias dos Gals ajudam as famílias a participar de espaços coletivos de reflexão por meio da definição de rotas para alcançar um objetivo final.
Outra razão para o êxito dos Gals é que são conduzidos pelas pessoas diretamente envolvidas. A abordagem metodológica estimula que as pessoas analisem seus desafios e busquem soluções a partir de suas próprias perspectivas. Isso torna o método fundamentalmente diferente das abordagens impostas de cima para baixo. Da mesma forma, a disseminação dessas ferramentas por meio de esquemas de aprendizagem de agricultor a agricultor com o apoio de pessoas de referência (por exemplo, os campeões ou campeãs dos Gals) aumenta a apropriação e a sua continuidade.
Outro fator crucial para o sucesso dessa experiência é que os Gals são culturalmente adaptados. A metodologia não abre espaço para a confrontação nem julgamentos sobre as práticas culturais locais. Além disso, é baseada em esquemas ou desenhos ilustrativos relativamente simples que não exigem nenhum nível de alfabetização. Isso ajudou as pessoas a se sentirem seguras para se expressar. Embora muitos inicialmente não acreditassem que alguns diagramas e imagens simples poderiam alavancar um processo de transformação, a confiança na metodologia cresceu e mais pessoas assumiram papéis de liderança.
Uma lição importante que está emergindo com a pandemia da Covid-19 é a de que o sistema alimentar atual é extremamente vulnerável, evidenciando a necessidade de um sistema socialmente justo, localizado e mais resiliente. A integração das metodologias dos Gals e com a perspectiva agroecológica oferece um sopro de esperança para uma transformação de baixo para cima, inclusiva e conduzida pelas bases. Um processo que permite abordar de forma holística e sistemática os desafios profundamente enraizados que agravam a pobreza, a vulnerabilidade e a desigualdade em muitas comunidades ao redor do mundo, especialmente na África Subsaariana. Disseminar e fortalecer a Agroecologia com a integração dos Gals contribuirá para a nossa recuperação da crise da Covid-19, bem como aumentará nossa resiliência em tempos de incertezas que podem emergir no futuro.
Joshua Aijuka e Robert Guloba
trabalham na Associação de Manejo Participativo Ecológico da Terra (Pelum, tradução livre, sigla em inglês) em Uganda, uma rede regional que integra mais de 220 organizações da sociedade civil em 10 países da África Oriental, Central e Austral.
Denis Okello e Mary Baganizi
trabalham na Trocaire Uganda, Agência de Desenvolvimento da Igreja Católica da Irlanda
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