Regina Rodrigues de Oliveira, Maria Izabel Vieira Botelho e Irene Maria Cardoso
O nome Zona da Mata mineira já não condiz com o atual estado da paisagem da região. Parte importante das exuberantes florestas que recobriam os mares de morros foi convertida em carvão e madeira para alimentar os fogões à lenha, a construção civil e, principalmente, a siderurgia (DEAN, 1996). Além disso, o uso agrícola do solo se fez historicamente de forma insustentável, com a supressão da vegetação natural, sistemáticas queimadas e o emprego de métodos de plantio inadequados. A superexploração dos recursos florestais se acentuou com a modernização da agricultura, o que tornou os sistemas produtivos econômica e ambientalmente mais vulneráveis, alterando o estilo de vida dos agricultores, principalmente daqueles que possuem pequenas propriedades.
Como já alertava Josué de Castro na década de 1940, a degradação ambiental que ele identificava em várias regiões do Brasil contribuía decisivamente para a geração dos fenômenos da fome e da desnutrição em nossa sociedade (CASTRO, 2001) – e não poderia ser diferente na Zona da Mata mineira.
Entretanto, a região está assistindo à reversão desse processo, uma vez que tem ocorrido uma espécie de redesenho de suas paisagens, com a aplicação dos princípios da Agroecologia em estabelecimentos e comunidades da agricultura familiar. Essa transformação da paisagem vem se materializando por meio de ações de parceria entre diversos atores. O Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), alguns Sindicatos de Trabalhado- res Rurais da região, como os de Acaiaca, de Divino e de Araponga, e pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) têm reunido esforços no sentido de constituir redes de inovação agroecológica visando à incorporação de práticas agrícolas mais sustentáveis nos agroecossistemas da região.
Dentre as inovações introduzidas, destacam-se os sistemas agroflorestais (SAFs) com café e outras formas de manejo dos recursos naturais que permitem conciliar a produção agrícola e a conservação ambiental. Esses sistemas econômico-ecológicos são estruturados a partir do consórcio de plantas herbáceas, arbustos e árvores nos cafezais. Além das funções positivas que cumprem no equilíbrio ecológico dos sistemas de produção, favorecendo a produtividade e a sanidade dos cafezais, muitas das plantas associadas ao café são alimentícias. Por essa razão, a estratégia agroflorestal não só permite reduzir substancial- mente os custos produtivos, como também incrementa o rendimento das áreas cafeeiras, aumentando o volume e a diversidade de itens destinados tanto à alimentação das famílias quanto à comercialização.
MUDANÇAS NA PAISAGEM E NA ALIMENTAÇÃO
A sequência das imagens acima ilustra as alterações na paisagem decorrentes da adoção dos manejos agroecológicos em uma propriedade familiar do município de Araponga. Na foto à esquerda, vemos um ambiente em desequilíbrio ecológico, que oferece poucas alternativas para a alimentação. Já a imagem da página seguinte apresenta a mesma área após alguns anos de manejo agroflorestal, revelando um ambiente em equilíbrio, no qual vegetam diversas espécies alimentares, entre plantas espontâneas e frutíferas introduzidas. Observa-se, assim, que sistemas manejados segundo princípios agroecológicos moldam paisagens nas quais a diversidade é perceptível.
Para aferir mais detalhes das mudanças na paisagem associadas à promoção da Agroecologia na região, foi realizada uma pesquisa específica no município de Divino (OLIVEIRA, 2013). Duas perguntas-chave foram apresentadas aos agricultores e agricultoras: 1) Quais as alterações ocorridas nas paisagens a partir das experiências agroecológicas conduzidas pelos(as) agricultores(as)?; e 2) Como essas mudanças interferiram no consumo de alimentos (dos pontos de vista quantitativo e qualitativo)?
Alguns depoimentos de agricultores(as) relembraram como a monocultura do café afetou negativamente o consumo alimentar das famílias. O sr. Élcio, de 55 anos, por exemplo, relatou que, ao deixar de cultivar o milho e o feijão, houve uma redução da diversidade de alimentos que consumia, pois nem sempre possuíam dinheiro para adquirir esses gêneros nos mercados. Além disso, quando compravam nos merca- dos convencionais, perdiam o controle sobre a qualidade dos alimentos que estavam consumindo. Na mesma direção, Paulo (48) lembra: O café mudou o nosso jeito de vida e roubou tudo de nós. O café você colhe uma vez por ano. Você tira o da despesa e o resto você vende e não vê mais.
Hoje, porém, esse quadro de restrições vem sendo revertido. As modificações nas paisagens desencadeadas a partir do trabalho de promoção da Agroecologia se deram de forma gradativa e, mais recentemente, refletem o acúmulo do conhecimento construí- do nos diversos espaços de formação, principalmente nos intercâmbios de conhecimentos entre agricultores(as) e entre estes e técnicos(as) do CTA-ZM, estudantes e professores(as) da UFV. Para os(as) agricultores(as) entrevista- dos(as), os intercâmbios foram importantes, pois, ao mesmo tempo em que possibilitaram a valorização individual dos(as) participantes, enalteceram a cultura alimentar local, que vinha se perdendo ao longo dos anos. Por essa razão, proporcionaram significativas mudanças não só nas paisagens, mas também nos pratos das famílias. Afinal, quando a paisagem diversifica, o prato fica colorido!
UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO PELO REENCONTRO COM A NATUREZA
A história de seu Pedro (61) e dona Hortência (56) ilustra como a perspectiva agroecológica tem mudado a vida de famílias agricultoras na região. Ambos viveram infâncias com muitas privações financeiras. Por não conseguir sustentar os filhos, a mãe do seu Pedro teve que deixá-lo com outra família, para a qual ele trabalhava em troca de uma cama para dormir e alguma comida. Já dona Hortência criava alimentos com os recursos disponíveis: da banana verde, fez mingau; enquanto o umbigo de bananeira, um conhecido alimento para os animais, transformou-se em uma iguaria apreciada por todos.
Em 1982, o casal já era proprietário da terra em que vive, adquirida com o próprio trabalho. Seu Pedro foi vítima de intoxicação por agrotóxico aplicado em cafezais por orientação do Instituto Brasileiro do Café (IBC). Perdeu um rim e quase veio a falecer. Para salvar o marido, dona Hortência começou a estudar práticas alternativas de promoção da saúde, o que fez com que a trajetória de vida da família tomasse outro rumo. Foi nesse caminho que conheceu a proposta da agricultura alternativa, como a Agroecologia era conhecida na época. Hoje, a família vive bem. Como afirma a dona Hortência, podem comer o que querem e têm sua renda gera- da pela combinação da venda de grande diversidade de produtos (café, frutas, ovos, doces, etc.) com o trabalho que exerce como terapeuta alternativa.
RECONSTRUÇÃO DE PAISAGENS E DA SOBERANIA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
Trajetórias similares à de dona Hortência e seu Pedro ocorreram nas demais famílias entrevistadas na pesquisa. Em algumas propriedades, além das frutíferas introduzidas nos cafezais, identificamos outras espécies alimentares consorciadas, tais como a mandioca, a batata-doce, o palmito, o milho, o feijão, a fava, a taioba e varia- das plantas espontâneas.
Entre os(as) entrevistados(as), encontramos agricultores(as) que já utilizavam os sistemas agroflorestais e outras práticas agroecológicas há mais de vinte anos. Nesses casos, os sistemas de produção mostravam-se mais robustos e com grande diversidade de árvores e alimentos. Outras famílias, no entanto, iniciaram a transição agroecológica somente a partir de 2008, com o início das atividades de intercâmbio.
A pesquisa permitiu identificar ainda que a falta de acesso à terra compromete a segurança e a soberania alimentar e nutricional, como já afirmado por alguns autores a partir de pesquisas em outras regiões (LEÃO; RECINE, 2011). No entanto, muitos relatos apontam que, no passado, mesmo trabalhando como empregados ou meeiros, os(as) agricultores(as) vivenciaram uma situação de insegurança alimentar, pois não tinham autonomia para definir nada sobre a produção. Tais depoimentos nos levaram a concluir que não basta ter acesso à terra, é necessário ter a sua titularidade, como é o caso de todos os(as) agricultores(as) entrevistados(as) que hoje gozam de liberdade para se envolver em dinâmicas de promoção da Agroecologia.
Por fim, pode-se dizer que a experiência aqui descrita é bastante ilustrativa de como a participação de agricultores(as) em redes de inovação agroecológica possibilita transformações significativas nos sistemas de produção e de consumo alimentar. Essas transformações estão claramente expressas na paisagem ambiental da Zona da Mata mineira, bem como na composição dos pratos das famílias da região. O colorido dos pratos reflete a diversidade alimentar produzida nas paisagens e revela a construção de crescentes níveis de autonomia para decidir o que plantar e o que consumir, ou seja, maiores níveis de soberania e segurança alimentar e nutricional.
Regina Rodrigues de Oliveira
Nutricionista, Mestre em Extensão Rural e integrante do CTA-ZM
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Maria Izabel Vieira Botelho
Professora do Departamento de Economia Rural da UFV
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Irene Maria Cardoso
Professora do Departamento de Solos da UFV
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Referências bibliográficas:
CASTRO, J. Geografia da Fome. 14ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001.
DEAN,W. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LEÃO, M.M.; RECINE, E. O direito humano à alimentação adequada. In: TADDEI, J. A.; LANG, R.M. F.; LON- GO SILVA, G.; TOLONI, M.H.A. Nutrição em Saúde Pública. São Paulo: Rubio, 2011. p. 471-488.
OLIVEIRA, R.R. Meios de vida e produção de alimentos: quando a paisagem diversifica, o prato fica colorido. 2013. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.
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Revista V11N3 – Quando a paisagem diversifica, o prato fica colorido