Maurício Thuswohl – Carta Maior
RIO DE JANEIRO – A dois meses do 4º Encontro das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP-4), as nações continuam a não se entender quanto à adoção de um acordo global sobre os transgênicos. Reunido na semana passada em Cartagena, na Colômbia, o grupo de trabalho constituído para “definir os elementos de um Regime de Responsabilidade e Compensação por danos ocasionados por organismos vivos modificados” não conseguiu cumprir seu objetivo de elaborar uma proposta acabada que possa ser levada à apreciação dos governos de todo o mundo no encontro de cúpula que acontecerá de 12 a 19 de maio em Bonn, na Alemanha.
Criado em 2004, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade e Compensação no Âmbito do Protocolo de Cartagena já havia expirado seu mandato no fim do ano passado. Após conviver com quatro anos de impasse entre os governos no que concerne aos principais itens do documento que deveria redigir, o GT ganhou uma sobrevida de seis meses, mas ainda assim não conseguiu cumprir seu objetivo. A reunião na Colômbia foi um último esforço para se chegar a uma proposta de consenso. Isso não foi possível, mas algum avanço foi conquistado, já que o documento que será apresentado em Bonn terá somente 19 pontos em destaque (com propostas divergentes), em lugar dos 57 pontos listados antes da reunião do GT em Cartagena.
Foi feito um enxugamento nos destaques e no texto do documento, mas as divergências persistem nos principais itens que devem constar de um Regime de Responsabilidade e Compensação. Não existe acordo sobre como classificar os danos causados pelos transgênicos nem sobre como identificar os responsáveis por esses danos. Os governos também não chegaram a um consenso sobre o caráter do Regime. A maioria dos países em desenvolvimento acha que ele deve ser vinculante (com cumprimento obrigatório e descumprimento passível de sanções), enquanto a União Européia, o Japão e os Estados Unidos acham que não.
As posições divergentes fizeram com que as negociações na reunião do GT pouco evoluíssem. Diante da possibilidade de fiasco, no entanto, foi constituído um “Grupo de Amigos do Presidente”, espécie de força-tarefa diplomática encarregada de alcançar um consenso mínimo. Foi nesse grupo reduzido, que ainda se reunirá uma vez dias antes da MOP-4, que se chegou ao documento com “apenas” 19 destaques que será apresentado em Bonn.
Representante da organização Terra de Direitos e da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos, a advogada Maria Rita Reis foi à Cartagena acompanhar a reunião do GT: “As negociações foram totalmente caóticas e, até o último dia da reunião, pouco se avançou na tentativa de se aproximar as posições. Apesar da redução dos destaques, todas as propostas relevantes ainda estão na mesa e não existe definição se o Protocolo de Cartagena vai ter ou não seu Regime de Responsabilidade e Compensação”, avalia.
Danos e Responsabilidades
Além da discussão sobre o caráter vinculante ou não do Regime, outro item objeto de forte divergência é a definição de dano causado por transgênicos. Países como Japão, Argentina e Nova Zelândia, com o apoio dos EUA (que não assinam o Protocolo de Cartagena), defendem que o Regime se refira apenas aos danos causados no momento do transporte transfronteiriço dos organismos geneticamente modificados. Uma segunda proposta, defendida pela União Européia, pela Suíça e por parte dos países em desenvolvimento, expande o conceito e quer que o Regime de Responsabilidade se refira também aos danos causados à biodiversidade. Uma terceira proposta, defendida pelo Brasil e por parte dos países em desenvolvimento, expande ainda mais o conceito, incluindo no Regime os danos causados à saúde humana.
Outro ponto de impasse foi a definição de quem são os responsáveis pelos danos causados pelos transgênicos. Uma proposta, defendida pelo Japão, pelos EUA e pelo Brasil, entre outros, estipula que o responsável seja quem estiver no controle operacional da ação onde ocorreu o dano. A União Européia defende o vago conceito de que “a responsabilidade seja definida com base na culpa estabelecida”. Uma terceira proposta, defendida por parte dos países em desenvolvimento, quer que as empresas de biotecnologia criadoras dos organismos geneticamente modificados sejam responsabilizadas quando os danos ocorridos sejam decorrentes da tecnologia por elas desenvolvida e empregada.
“A proposta que responsabiliza quem estiver no controle operacional no momento do dano é injusta, pois pode acarretar, por exemplo, a responsabilização de um agricultor se o transgênico causar algum dano no campo. No caso do Brasil, apoiar essa proposta contradiz a legislação brasileira, que fala em responsabilidade solidária”, avalia Maria Rita Reis. A ambientalista defende a responsabilização por danos causados pela tecnologia: “Veja o caso do Brasil, onde o Ministério da Saúde já identificou alguns danos que podem ser causados pelo milho transgênico recentemente liberado no país. Se esses danos ocorrerem, mas não houver um regime que responsabilize quem desenvolveu a tecnologia, empresas como Monsanto ou Syngenta nunca serão responsabilizadas”, diz.
Brasil dividido
Apesar de defender algumas propostas pontuais, o governo brasileiro não tem uma posição fechada sobre como deve ser o Regime de Responsabilidade e Compensação do Protocolo de Cartagena. Com a maior delegação presente à reunião da semana passada (25 pessoas), o governo brasileiro, apesar do esforço do Itamaraty, não conseguiu harmonizar as posições divergentes de alguns ministérios. Assim como na MOP-3, realizada em Curitiba em março de 2006, a polarização da discussão se dá entre os ministérios da Agricultura e da Ciência e Tecnologia, que têm posição favorável à introdução facilitada dos transgênicos, e os ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, que defendem o princípio da precaução frente aos riscos trazidos pelos organismos geneticamente modificados.
Insatisfeitos com a indefinição do governo, algumas organizações do movimento socioambientalista enviaram uma carta aos ministros Marina Silva (Meio Ambiente) e José Gomes Temporão (Saúde) alertando para a importância da discussão: “A ausência de um regime internacional sobre responsabilidade por danos ocasionados por organismos transgênicos têm sido um dos fortes elementos a contribuir para que as transnacionais que desenvolvem e manipulam estas tecnologias ajam em desacordo com o princípio da precaução, desconsiderando totalmente os riscos inerentes à biotecnologia, como foi o caso da recente liberação comercial de duas variedades de milho transgênico no Brasil”, afirma o documento.
A carta enviada aos ministros cobra uma tomada de posição: “O governo brasileiro ainda não tornou pública sua posição e a sociedade civil não foi chamada a discutir a posição brasileira sobre o Regime de Responsabilidade. O único ministério que se pronunciou publicamente sobre o assunto foi o Ministério da Agricultura, que disse defender a adoção de um regime não vinculante e também não admitir qualquer nível de responsabilidade que possa comprometer a indústria de biotecnologia”.
O documento também se queixa da postura assumida por representantes do Ministério da Agricultura: “A posição do Ministério da Agricultura é absurda e totalmente contrária à legislação brasileira, que em matéria ambiental e de direito do consumidor estabelece que a responsabilidade é objetiva, solidária e decorre do risco inerente ao desenvolvimento de determinadas atividades econômicas”.
Assinam a carta enviada a Temporão e Marina as organizações Via Campesina, MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (Contag), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Mulheres Camponesas, Terra de Direitos, Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), entre outras.
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