Maio de 2008
O estabelecimento de um regime de responsabilidade vinculante no âmbito do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança é fundamental para que o Protocolo cumpra seu objetivo de “contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana”.
Em apenas 12 anos de cultivo de organismos transgênicos no mundo, multiplicaram-se casos de danos relacionados ao movimento transfronteiriço. Para citar apenas os danos decorrentes da contaminação:
a) Em 2002, uma variedade de milho geneticamente modificado para produzir uma vacina para porcos foi encontrado crescendo em uma plantação de soja em Iowa. Todo o silo de soja teve que ser destruído e foi determinado que a empresa deveria pagar uma multa de US$250 mil, além de outros custos de US$3,5 milhões; [i]
b) Em 2007, traços da variedade de arroz geneticamente modificado LL601, da Bayer,não liberados para produção comercial, foram descobertos na produção americana em 2006 e também acabaram sendo encontrados na Europa. A contaminação veio de campos experimentais do LL601 nos Estados Unidos que tinham sido encerrados em 2001. [ii]
Da mesma forma, ainda permanecem as incertezas relacionadas aos efeitos dos organismos transgênicos na saúde humana e no meio ambiente. No Brasil, por exemplo, o milho transgênico foi aprovado sem a concordância do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde, que apontaram a existência de diversos riscos à liberação comercial. As variedades liberadas pelo Governo brasileiro foram proibidas em países da Europa como a França (2008), a Áustria, a Hungria e a Grécia (2006/07).
Por estas razões e pela necessidade de que o desenvolvimento tecnológico seja orientado pelo princípio da precaução, o regime de responsabilidade no âmbito do Protocolo de Cartagena deve ser vinculante e englobar todos os danos relacionados ao uso, manipulação e transporte do OVM, além de ser baseado na responsabilidade objetiva ou estrita como regra e contar com um mecanismo efetivo de liquidação de demandas.
Considerando o momento atual das negociações, as organizações brasileiras apresentam as seguintes considerações:
O ESTABELECIMENTO DE UM REGIME NÃO VINCULANTE É INACEITÁVEL
O Protocolo de Cartagena somente será efetivo com o estabelecimento da obrigatoriedade de reparação em caso da ocorrência de danos. Nenhum sistema legal é efetivo sem que explicite e obrigue medidas de reparação por danos.
A existência de diretrizes não garantirá a reparação em países que possuem marcos regulatórios frágeis e possibilita o aumento de pressão das transnacionais de biotecnologia para que normas não sejam adotadas.
Assim, ao invés de privilegiar o princípio da precaução, a possibilidade de adoção ou não de regras sobre responsabilidade por danos transforma-se em “oportunidade de negócios” e cria assimetrias no tratamento da questão dos danos ocasionados por Organismos Vivos Modificados.
A reparação dos danos ocasionados por OVM é direito de todos os países, comunidades e cidadãos do mundo, por isso, deve contar com um instrumento multilateral vinculante.
O regime de responsabilidade deve ser baseado na responsabilidade objetiva ou estrita
A responsabilidade pela indenização e reparação dos danos ocasionados por OVMs decorre principalmente dos riscos inerentes a este tipo de tecnologia. Assim, não importa se o agente atuou com negligência, imprudência ou imperícia: existindo um dano, deve haver reparação.
Cumpre lembrar que a legislação brasileira adota a responsabilidade por risco na legislação de biossegurança (art. 20 da Lei 11.105/05), na legislação ambiental (art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 e art. 225, § 3º da Constituição Federal), na legislação consumerista (art. 6º., VI, da Lei n. 8.078/90) e como regra geral, no Código Civil, sempre “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem.” (art. 927). O Brasil ainda reconhece a responsabilidade objetiva da Administração Pública que, neste caso, se responsabiliza pelos danos causados pela autorização de espécie transgênica que provoque impacto na saúde e/ou no meio ambiente (art. 37, § 6º da Constituição Federal).
O ônus da prova deve recair no causador do dano
O ônus de provar a inexistência de responsabilidade deve recair na pessoa que responde à demanda por reparação.
O causador do dano tem melhores condições, de, se for o caso, comprovar a exclusão de sua responsabilidade, enquanto aquele que sofreu o dano não tem acesso às informações necessárias para comprovar o nexo de causalidade. A inversão do ônus da prova é admitida no Direito Brasileiro.
O conceito de dano deve ser amplo
Devem ser considerados danos quaisquer efeitos adversos gerados ao meio ambiente, à saúde, ao uso sustentável da biodiversidade e também quaisquer prejuízos econômicos decorrentes do dano.
É fundamental que sejam considerados os danos ocasionados às práticas e costumes das comunidades indígenas e locais, uma vez que estas são essenciais à conservação da agrobiodiversidade.
Na última reunião do Grupo de Trabalho sobre responsabilidade e compensação, muitos países incluíram aspectos imprecisos na definição do dano, como por exemplo “dano grave”; “dano significativo” .
Questões específicas, como a gravidade do dano, ou sua relevância, devem ser analisadas no caso concreto, na valoração do dano. Na redação da norma geral, não deve haver expressões como estas, para que se evite restrições inadequadas ao direito de reparação e indenização.
A responsabilidade deve ser conjunta e solidária e incluir o detentor da tecnologia
O conceito de operador (operator ou explotador) deve possibilitar que sejam responsabilizados todos os agentes da cadeia produtiva.
Por isso, é inaceitável restringir o conceito de operador à “aquele que está no controle operacional do OVM no momento da ocorrência do dano”, proposta apresentada pelo Governo Brasileiro na última reunião do Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade e Compensação.
Este conceito restrito pode levar a situações extremamente injustas, como por exemplo, a responsabilização do agricultor em caso de danos decorrentes dos riscos da tecnologia em si e inviabilizar a responsabilização do detentor da tecnologia, além de ser o maior beneficiário da utilização da tecnologia.
A postura adotada pelo Brasil contraria a própria legislação nacional. O art. 20 da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança) determina que os “responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa”.
O Código de Defesa do Consumidor define “fornecedor” como “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”. A regra geral da legislação consumerista é de responsabilidade objetiva (art. 6º, VI), respondendo solidariamente todos os responsáveis pelo dano (arts. 12, 18 e 25, §1º).
A legislação ambiental, por sua vez, considera como ‘poluidor’, e portanto, como responsável, indistintamente, toda ‘pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental’ (art. 3º, inciso IV).
Assim, a posição do Governo Brasileiro sobre este assunto é totalmente incoerente com a legislação nacional e as necessidades de um regime de responsabilidade efetivo.
Liquidação de Demandas
O demandante deve ter a faculdade de apresentar a demanda ou a execução do valor da reparação ante ao lugar que considerar mais conveniente: o lugar da ocorrência do dano ou o domicilio/residência do causador do dano.
Além disso, devem ser previstas disposições especiais sobre o direito de apresentar demandas, que garantam o princípio do acesso amplo à Justiça.
AAO – Associação de Agricultura Orgânica
AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa
CPT – Comissão Pastoral da Terra
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Fórum Nacional de Entidades Civil de Defesa do Consumidor – FNEDOC
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Movimento dos Pequenos Agricultores
Movimento de Mulheres Camponesas
Terra de Direitos
[i] http://www.sciam.com/article.cfm?id=fear-of-pharming. Fear of Pharming. Controversy swirls at the crossroads of agriculture and medicine.
[ii] http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2006:306:0017:0020:EN:PDF