A inserção da agricultura familiar no que se convencionou chamar de agronegocinho, por sua pequena escala, é um fenômeno recente no semiárido brasileiro, ainda que em franca expansão. Entretanto, embora esse modelo de produção possa apresentar taxas de rendimentos consideráveis, seus efeitos nocivos sobre o modo de vida das famílias agricultoras já começam a ser perceptíveis. Entre eles: maior dependência em relação aos mercados, em função da especialização da produção; maior necessidade de compra de insumos externos, pela ausência de biodiversidade para autorregulagem do sistema; maior degradação ambiental, pelo emprego de agroquímicos; menor capacidade de autoabastecimento; aumento da sobrecarga de trabalho, sobretudo para as mulheres, que com a especialização também perderam seus espaços de autonomia (a horta e as pequenas criações do arredor de casa, por exemplo); e menor autoestima.
Diante desse cenário, e como atividade preparatória para o Encontro Paraibano de Agroecologia (EPA), previsto para novembro deste ano, 25 representantes das organizações que compõem a Articulação do Semi-Árido da Paraíba (ASA-PB) se reuniram durante três dias em Campina Grande para a Oficina de Sistematização sobre Impactos da Transição Agroecológica e do Agronegocinho na Agricultura Familiar da Paraíba. O objetivo era criar de forma coletiva uma metodologia que permitisse retratar os contrastes entre as diversas experiências de transição agroecológica e do agronegocinho conduzidas pela agricultura familiar em cada microrregião do estado.
Percebemos hoje que, para discutir e propor estratégias de fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica, não basta retratar apenas os sistemas em transição agroecológica, já que cada vez mais a especialização e o chamado agronegocinho fazem parte da paisagem do semiárido (Paulo Petersen, AS-PTA)
Após um primeiro momento de discussão e elaboração da metodologia, no dia seguinte foi a vez do exercício prático. Foram formados cinco grupos que visitaram diferentes propriedades no Cariri e Brejo. Os participantes conheceram propriedades em que havia grande diversificação de culturas e criações, com maior ou menor grau de integração entre os subsistemas, assim como unidades especializadas na avicultura, no cultivo de laranja ou de coco, com maior ou menor emprego de insumos externos e agroquímicos.
Apesar do pouco tempo para realizar as visitas, a avaliação geral dos grupos foi de que o exercício conseguiu fornecer um bom retrato da realidade dos casos sistematizados. A maneira de conduzir as entrevistas permitiu levantar aspectos tanto objetivos – como desempenho econômico, distribuição do espaço, quantidade de horas dedicadas ao trabalho, número de pessoas envolvidas nas atividades, etc – quanto subjetivos, como o impacto do trabalho na sociabilidade, na autonomia, no grau de participação das mulheres e jovens das famílias. Além disso, a metodologia proporcionou uma leitura mais ampla da trajetória das famílias, fundamental para compreender – e não para julgar – as motivações que levaram cada uma a optar por um determinado modelo de agricultura.
Assim, as apresentações dos grupos mostraram que, mesmo numa única visita, é possível identificar os principais potenciais e riscos de cada propriedade. De modo geral, a fragilidade dos sistemas que optaram por se especializar e ingressar no ramo do agronegocinho ficou patente. A família que investiu tudo na avicultura, por exemplo, desfazendo-se de plantios e outras criações, depende exclusivamente dessa atividade. Portanto, caso a empresa para a qual fornece suas aves se retire, como já aconteceu em outras ocasiões, a sobrevivência da família estará altamente comprometida. Além disso, há momentos em que chegam a ter que trabalhar mais de 15 horas por dia, o que representou o total isolamento da família, que perdeu seus laços sociais, característicos da lógica camponesa de solidariedade e reciprocidade. Já a família que cultiva mais de 120 espécies vegetais em grande integração com a criação de animais não apresentou o rendimento financeiro da propriedade avicultora, mas seus custos de produção foram muito menores e a segurança alimentar da família, de valor inestimável, está garantida.
Entretanto, também foram identificados alguns pontos que devem ser aprimorados na metodologia.
Devemos dedicar mais tempo para preparar e sensibilizar as famílias que serão visitadas quanto aos objetivos e implicações dessas sistematizações para um estudo aprofundado da agricultura familiar. Dessa forma, é possível conseguir estabelecer uma relação de mais confiança e compromisso com essas famílias. O ideal seria num segundo momento retornar às propriedades para partilhar as discussões e conclusões que resultaram desses momentos. (Nelson Ferreira, STR de Lagoa Seca)
Cida, do Ceop, também sinalizou a dificuldade ainda presente para abordar a questão de gênero nesses momentos. Até quando a propriedade estava sob a responsabilidade de uma mulher, foi necessário insistir para que ela mesma, e não o marido, descrevesse a propriedade. Isso é um absurdo, porque as mulheres foram as primeiras experimentadoras e são fundamentais para a sustentabilidade dos sistemas familiares de forma geral.
Como encaminhamento ficou decidido que cada microrregião deverá sistematizar duas experiências para facilitar a visualização dos contrastes: uma que retrate um sistema em transição agroecológica e outra que represente o setor do agronegocinho. Além disso, deve-se buscar fazer um mapeamento mais geral dos sistemas agroecológicos e das diferentes expressões do agronegocinho no estado, onde eles têm maior incidência, quais as motivações e fragilidades dos sistemas familiares que os adotaram, quais os setores de cultivo ou criação mais presentes, etc.
O ideal é que cada microrregião leve para o debate do EPA um diagnóstico da agricultura familiar. Os dados não têm que ser precisos, sobretudo em termos de valores das rendas obtidas por cada atividade. O importante é conseguir demonstrar qual dos dois tipos de sistema oferece maior autonomia às famílias, qual permite um melhor equilíbrio nas relações de gênero e geração, qual favorece a criação de redes sociais de solidariedade e reciprocidade. Enfim, o que queremos mostrar é que o modelo que defendemos, a agricultura de base agroecológica, é o que se traduz em melhor qualidade de vida para as famílias agricultoras, além de ser o que provoca menos danos ao meio ambiente. (Paulo Petersen, AS-PTA)
A sistematização de experiências é um componente essencial das linhas de trabalho da AS-PTA, que tem procurado contribuir para a formulação de abordagens metodológicas inovadoras para o desenvolvimento local. Fundamentando-se na crítica aos processos convencionais de transferência de tecnologias que geram passividade e dependência cultural, essas abordagens orientam-se para a dinamização de redes locais de inovação agroecológica que envolvem a ativa participação de agricultores e agricultoras, bem como a contribuição de instituições científico-acadêmicas.
Para saber mais: