Jean Marc Von der Weid
Coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA
Os serviços de ATER se consolidaram no Brasil a partir dos anos sessenta/setenta quando prevalecia no mundo a concepção de desenvolvimento rural que ficou conhecida como “revolução verde”. Como se sabe, a revolução verde preconizava uma agricultura baseada na máxima artificialização dos sistemas produtivos com o uso de sementes de alto rendimento e de alta resposta ao emprego de adubos químicos. Estes sistemas eram mais eficientes quando empregados em monoculturas que favoreciam a mecanização da lavoura com economias no emprego de mão de obra. Entretanto, estas variedades melhoradas se mostraram mais suscetíveis aos ataques de pragas, fungos e doenças e para controlar as perdas para esses ataques desenvolveram-se uma ampla variedade de agrotóxicos (chamados “defensivos agrícolas”). Para limitar a concorrência entre as plantas adventícias e as culturas foram desenvolvidos herbicidas capazes de eliminá-las.
No período do regime militar o Estado brasileiro utilizou a pesquisa agrícola e a extensão rural, junto com créditos altamente subsidiados para induzir o processo de “modernização”, chamada de “dolorosa” pelo atual diretor geral da FAO em livro que marcou época na análise do desenvolvimento rural brasileiro. A orientação da extensão rural no período citado era trabalhar com a grande propriedade rural e o resultado de 20 anos de esforços foi um grande sucesso no estabelecimento do que hoje é intitulado agronegócio brasileiro.
A democratização do país em meados dos anos oitenta provocou uma reorientação geral dos serviços de ATER, que passou a privilegiar a assistência à agricultura familiar. Naturalmente, a orientação técnica e metodológica utilizada nesta nova etapa ficou marcada pelos paradigmas da revolução verde que continuava sendo o pensamento dominante nas concepções do desenvolvimento rural. É bom lembrar que o sistema de ensino das ciências agrárias estava totalmente dominado por esta mesma concepção e, portanto, seria impossível a formulação de alternativas tecnológicas e metodológicas neste contexto institucional e intelectual.
Desde o início dos anos oitenta iniciou-se um movimento de cientistas, técnicos e estudantes de ciências agrárias, bem como de um pequeno grupo de agricultores questionando os paradigmas da revolução verde e propondo um modelo de produção que ficou conhecido como “agricultura alternativa”. Este modelo se caracterizava por buscar produzir sem o uso dos insumos químicos e foi fortemente marcado, nos seus primórdios, pelos conceitos da agricultura orgânica que já avançava nos países desenvolvidos. Na agricultura orgânica prevalecia, nesta fase inicial, a preocupação com a qualidade “orgânica” (leia-se, não contaminada por produtos químicos) dos produtos que eram dirigidos a um mercado de consumidores com maior poder aquisitivo e mais informados sobre a importância de uma alimentação mais saudável.
O movimento pela agricultura alternativa chegou a dominar a FAEAB e da FEAB que organizaram nos anos oitenta os quatro Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa em Curitiba, Rio de Janeiro, Cuiabá e Porto Alegre reunindo milhares de estudantes e profissionais das ciências agrárias e um número crescente de agricultores. O movimento pela agricultura alternativa foi assumido cada vez mais por organizações da sociedade civil, ONGs de promoção do desenvolvimento rural que se multiplicaram nos anos oitenta e noventa.
Mais voltados para a agricultura familiar estas ONGs apartaram-se das concepções da agricultura orgânica e descobriram o conceito de agroecologia que colocava uma ênfase maior na qualidade dos processos produtivos do que na qualidade dos produtos dirigidos a um mercado de nicho que necessariamente era incapaz de absorver um número crescente de produtores escapando dos sistemas da revolução verde. Esta tendência se preocupava mais em reduzir a dependência dos agricultores familiares do mercado de insumos químicos e sementes melhoradas e dos financiamentos bancários ao mesmo tempo em que aumentava a produção total das propriedades (mais do que aumentar o rendimento específico de cada cultura, muito embora isto também tenha sido alcançado em muitos casos).
A agroecologia se caracteriza pelo manejo integrado dos recursos naturais renováveis como solos, água e agrobiodiversidade bem como busca assimilar funcionalmente a biodiversidade natural dos ecossistemas nos sistemas produtivos. São sistemas de alta diversidade de culturas e criações e com uso discreto da mecanização animal ou mecânica. Ao longo dos anos noventa e no presente século as experiências com agroecologia se multiplicaram e demonstraram a sua eficiência para aumentar a segurança alimentar e a renda dos agricultores familiares, diminuírem os riscos frente às oscilações climáticas, aos riscos financeiros dos créditos bancários e aos riscos das oscilações dos preços de mercado.
A Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável, mais conhecida como Eco 92 ou Rio 92 trouxe à baila o conceito de sustentabilidade. Embora o conteúdo deste conceito seja objeto de disputas políticas e acadêmicas, com todas as tendências do desenvolvimento econômico querendo qualificarem-se como sustentáveis, não se pode deixar de constatar que o sistema da revolução verde adotado pelo agronegócio no Brasil e no mundo é manifestamente insustentável. A recente avaliação da pesquisa agrícola internacional pelo IAASTD (International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development), da qual participaram centenas de cientistas de todo o mundo só fez consagrar esta avaliação crítica da chamada agricultura industrial e a sustentabilidade dos sistemas de base agroecológica.
O sistema brasileiro de ATER passou por um período de esvaziamento a partir do governo Collor, quando foi dissolvida a EMBRATER. Esta empresa nacional exercia um papel fundamental na coordenação, orientação e financiamento da extensão rural estatal. Dependendo dos governos estaduais que viviam uma fase de penúria financeira as emater encolheram até o final do governo Fernando Henrique quando o governo federal voltou a financiar projetos de ATER, inclusive das entidades da sociedade civil.
O governo FH iniciou uma política voltada para a agricultura familiar através da criação do Pronaf e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Foi também neste governo que foi estabelecido um processo de consultas à sociedade através da criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável mas foi o governo Lula que ampliou tanto a participação na formulação das políticas como a própria abrangência destas últimas.
A expansão do crédito Pronaf para chegar ao número de 2 milhões de contratos por ano, com um volume de 16 bilhões de reais cobrou um grande esforço da extensão rural, em particular das Emater que assumiram quase a totalidade da elaboração destes projetos de financiamento da agricultura familiar.
A orientação da ATER no governo Lula está expressa pela Política Nacional de ATER (PNATER), elaborada em 2003, antes mesmo da criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural da Agricultura Familiar (CONDRAF) e do seu Comitê de ATER através de ampla consulta às organizações dos agricultores e aos diferentes tipos de agentes de ATER, públicos e privados. A PNATER consagrou a agroecologia como o modelo produtivo a ser implantado pelos serviços de extensão rural mas a implementação da política passou por muitos percalços, como veremos mais adiante.
O governo Lula expandiu de forma significativa os financiamentos para a ATER tanto estatal como não governamental. No auge do apoio às entidades da sociedade civil, em 2006, quase a metade dos recursos disponibilizados foram dirigidos às ONGs. Isto significou uma verdadeira prioridade para este agente de ATER, já que a ATER estatal tinha e tem dimensões mais de cinco vezes superiores. É verdade que a ATER estatal dispunha e dispõe de recursos dos orçamentos dos governos estaduais, enquanto a ATER não governamental vem vendo os recursos da cooperação internacional minguarem ano a ano, passando a depender quase que totalmente dos financiamentos do governo federal.
A relativa superioridade no acesso aos recursos de ATER do governo federal por parte das ONGs talvez possa ser explicada pelo fato de que estas entidades estavam mais focadas nas prioridades do PNATER, com mais experiência do que as Emater na prática da promoção do desenvolvimento agroecológico. No entanto, a partir do início do segundo governo Lula as dificuldades no uso dos recursos públicos federais tornaram-se insuperáveis. O sistema de convênios não permitia o pagamento de profissionais permanentes das instituições nem despesas de investimentos e infraestrutura, limitando-se a cobrir os custos operacionais. Isto não era um problema para as emater pois os salários e custos básicos eram cobertos pelos orçamentos estaduais mas para as ONGs estas limitações foram fatais. Além disso, as exigências burocráticas de gestão dos recursos, baseadas na Lei 8666 cobraram custos de administração muito além do que os convênios pagavam. O resultado foi uma imensa crise das ONGs de ATER sendo que muitas entidades fecharam e outras perderam quadros valiosos e encolheram suas atividades. No final do segundo governo Lula a participação das ONGs nos convênios de ATER encolheu para perto de 20% do que estas entidades receberam no auge do apoio federal. A questão do Marco Legal das ONGs passou a ser o centro de uma agenda de negociação com o governo mas a nova lei do Terceiro Setor e o respectivo decreto de regulamentação não resolveram o problema, sendo que as interpretações divergentes do que era ou não permitido financiar nunca deram tranqüilidade aos gestores dos programas de ATER. Na dúvida sobre o que o TCU admitiria o jurídico do MDA adotou uma postura de extrema prudência e isto gerou uma quase total paralisia no acesso aos recursos de ATER por parte das ONGs.
A iniciativa do DATER de propor uma lei de ATER surpreendeu ao conseguir a aprovação no Congresso Nacional. O projeto de lei não foi discutido com a sociedade mas o DATER concordou em encaminhar ao relator as propostas de emendas feitas pela Articulação Nacional de Agroecologia que resgatavam a prioridade para a agroecologia e definiam o papel do CONDRAF na elaboração do Programa Nacional de ATER (PRONATER) através de conferências a cada quatro anos. A nova lei permitiu evitar os problemas do Marco Legal identificados acima já que os financiamentos dos projetos de ATER passaram a ser feitos através de contratos e não de convênios. No entanto, o modo como as chamadas para projetos passaram a ser definidas levaram ao que muitas organizações da ANA consideram um total engessamento das metodologias participativas e uma virtual impossibilidade de se garantir a prioridade para a agroecologia expressa na Lei.
O resultado dos oito anos de ATER no governo Lula mostrou as dificuldades de se promover a conversão dos sistema de assistência técnica para a agroecologia. O balanço do período mostra o crescimento da dependência dos agricultores familiares em relação ao uso de insumos químicos e sementes de empresas através de uma também crescente dependência do crédito pronaf. É notório que a ATER, na sua ação majoritária, ajudou a promover este modo insustentável de produção. As razões deste fato são múltiplas: a formação dos agentes de ATER foi toda voltada para o modelo da revolução verde e não seriam os cursos de 40 horas promovidos pelo DATER que poderiam alterar esta realidade; o sistema bancário também empurrou para o uso dos insumos químicos já que estas eram as práticas que os gerentes de banco conheciam e consideravam seguras; finalmente, não se pode deixar de apontar para o fato de que muitos agricultores acreditaram neste modelo e demandaram aos agentes de ATER projetos de crédito com esta orientação. O fato é que nunca houve tamanha adesão ao “agronegocinho” entre os agricultores familiares nem tanto endividamento e inadimplência.
Cenários:
O cenário em que será aplicado próximo programa nacional de ATER é bastante preocupante. Podemos esperar por quatro anos de instabilidade dos preços agrícolas ao nível internacional e isto não deixará de afetar a economia agrícola nacional. As pressões sobre os custos de produção que já vem se manifestando nos últimos anos deverão se intensificar coma alta dos preços do petróleo e gás bem como das matérias primas para a produção de fertilizantes. A degradação dos solos e esgotamento das fontes de água bem como a perda da agrobiodiversidade e da biodiversidade de forma geral cobrarão quer maior uso de insumos químicos quer a perda de rendimentos das culturas no sistema da revolução verde. A competição entre produtos alimentares e agrocombustíveis não deixará de se intensificar, com tendência a perda de espaço dos primeiros. Com todos estes fatores negativos podemos esperar um aumento dos custos da alimentação com piora dos níveis de nutrição ou com aumento dos custos públicos para o Bolsa Família.
Outro fator preocupante no cenário provável deste Governo Dilma é a opção pela erradicação da pobreza, em particular no campo. A preocupação em si é bem vinda mas a abordagem adotada para enfrentar o problema é incorreta. Em primeiro lugar, não se pode tratar da extrema pobreza sem continuar um esforço para dinamizar a agricultura familiar como um todo. Além de se despir um santo para vestir outro o resultado pode ser ainda pior pois a prática mostra que o enfrentamento do problema da extrema pobreza requer comunidades que estejam em avanço econômico para que se possa buscar inserir os mais pobres nesta dinâmica de progresso. Ou seja, haverá necessidade de muito mais recursos de ATER do que foi liberado no governo Lula, para não falar do pouco que vem sendo liberado neste governo Dilma. Além de maiores investimentos em ATER o enfrentamento da extrema pobreza passa por uma questão essencial que é a do acesso a recursos produtivos, em particular a terra. Acelerar a reforma agrária será mais importante para enfrentar a extrema pobreza do que a ampliação da ATER embora esta última seja um importante suporte para a primeira.
As condições macro econômicas na agricultura favorecem a expansão da produção agroecológica, sobretudo de alimentos pois estes sistemas são poupadores de insumos químicos cujos custos estão em explosão. Além de assegurar a sustentabilidade da produção agrícola a longo prazo a agroecologia pode responder a curto prazo à necessidade de aumentar a produção alimentar a preços mais toleráveis.
Gargalos e dificuldades encontradas:
As dificuldades para se executar uma política de ATER tal como definida no PNATER (ou seja, buscando a sustentabilidade pela expansão dos sistemas de base agroecológica) estão concentradas no principal instrumento operacional da política, as chamadas para projetos de ATER. As chamadas definem a localização dos projetos, o tamanho e tipo do público, a demanda, as atividades a ser realizadas (e, portanto, a metodologia de ATER) e a duração do projeto. As entidades de ATER que acessaram estes financiamentos têm encontrado inúmeras dificuldades operacionais tais como:
• a falta de DAPs em parte significativa do público, em particular os mais pobres,
• o tamanho do público alvo que obriga as entidades a uma expansão acelerada de seu quadro técnico sem tempo para um processo de formação,
• a inexistência de um adiantamento de recursos no início da execução dos projetos, o que deixa as entidades não governamentais trabalhando no vermelho até o recebimento da primeira parcela,
• atrasos no processamento da comprovação das atividades por parte do governo, o que retarda os pagamentos,
• dificuldades de execução do cronograma extremamente carregado de atividades.
Todas estas questões têm que ser resolvidas em negociações com o DATER mas o formato das chamadas coloca problemas que são de ordem conceitual e metodológica e que impedem a existência de uma ATER voltada para a promoção da transição agroecológica. São estas questões maiores que devemos tratar na conferência de ATER.
a) Definição do público assistido
As chamadas têm definido públicos de dimensões bastante elevadas, quase sempre superiores a mil agricultores. Estas dimensões pressupõem que as entidades de ATER já trabalhem com públicos amplos ou que seja possível iniciar um trabalho com um público “novo” incluindo grandes massas de agricultores. A prática da promoção da transição agroecológica indica que as entidades começam seu trabalho com um público restrito, de dezenas e não centenas de agricultores e que este público vai se expandindo à medida que os resultados vão sendo demonstrados para o público mais amplo. Do ponto de vista da resolução do problema da geração de conhecimentos agroecológicos específicos para a diversidade da agricultura familiar de um território esta forma é a única com eficiência demonstrada pela prática. Ela permite atingir públicos cada vez mais amplos, com milhares de agricultores assistidos.
No início destes processos de promoção da transição agroecológica a relação entre o número de técnicos e de agricultores assistidos varia entre 1/10 e 1/20 mas ao fim de, por exemplo, 10 anos, esta relação passa para 1/500 e até mais. Obviamente, o custo da ATER medido por esta relação muda significativamente para melhor.
A definição do tamanho do público nas chamadas impede, um processo de expansão paulatina e obriga a grandes saltos no número de agricultores assistidos a não ser que as entidades permaneçam com um público fixo daqueles que já estão integrados aos processos de transição agroecologica antes do lançamento das chamadas. Neste caso, o público que não está incluído nestes processos anteriores ficará dependendo da criação de novas entidades de ATER ou da expansão das existentes para assumir novos públicos com processos inteiramente diferentes dos previamente utilizados e com novos técnicos, criando na prática uma entidade dentro da entidade.
Outro problema enfrentado pelo tipo de chamadas propostas até agora é a segmentação do público em um mesmo território. Em princípio podemos ter chamadas para agricultores familiares, para mulheres, para quilombolas, para jovens, para os mais pobres, etc. em um mesmo local. Embora todos estes públicos tenham especificidades que exigem tratamento especial eles participam de processos de desenvolvimento que são integrados nas famílias e nas comunidades e não podem ser tratados isoladamente.
É particularmente grave a proposta de se tratar os mais pobres isolando-os das dinâmicas de desenvolvimento de um território, que envolvem outros agricultores em melhor condição socioeconômica. É comprovadamente mais eficiente atrair os mais pobres para integrar estas dinâmicas do que criar uma dinâmica específica para eles. É claro que será preciso uma atenção especial para este público mais pobre mas não de forma isolada dos demais.
b- Definição da metodologia de ATER
As chamadas de ATER definem a metodologia a ser empregada através da pré-definição das atividades a serem desenvolvidas. O DATER adotou, através desta definição das atividades, uma metodologia convencional que privilegia a assistência técnica individual a cada agricultor. Este método, adotado pelo Banco Mundial e chamado de “Training and Visit” (treinamento e visita), fica evidente pela escolha das atividades nas chamadas. Os projetos devem começar por realizar um diagnóstico dos sistemas produtivos de cada agricultor assistido. Segue-se a este diagnóstico um conjunto de cursos que derivam, logicamente, dos problemas identificados nos mesmos. A partir destes cursos a atividade essencial é a visita técnica a cada agricultor, três vezes em um ano.
Os diagnósticos são também definidos pelo DATER, que montou uma planilha de dados a serem obtidos junto aos agricultores. A planilha em questão dá a impressão de que o DATER não sabe o que quer com o diagnóstico pois é enorme e dispersa a quantidade de informações demandadas. Como o tempo previsto pelo DATER para a realização dos diagnósticos (um período, tarde ou manhã, ou seja, entorno de quatro horas) é bastante reduzido não parece possível fazer mais do que reunir os dados demandados, o que não garante o exercício de análise dos mesmos junto com o agricultor. Como o diagnóstico orienta a escolha dos temas a serem trabalhados nos cursos exigidos pelo DATER os técnicos terão que selecionar um número reduzido dos problemas identificados (mas não diagnosticados) e agrupar os agricultores no número de cursos previsto nas chamadas. É preciso ter claro que um diagnóstico é algo mais do que a identificação de problemas. Um diagnóstico identifica um ou mais problemas em um agroecossistema e busca as causas imediatas e últimas dos mesmos. A análise das causas é que orienta o tipo de soluções a serem buscadas, de comum acordo entre os técnicos e os agricultores assistidos. Sem isto, os cursos apresentarão respostas técnicas genéricas para problemas que podem ter causas distintas segundo o agroecossistema de cada agricultor. Estas respostas técnicas serão, inevitavelmente, definidas pelos técnicos e elas terão que ser simples e pontuais pois o tempo previsto para os cursos não é mais do que um dia.
Uma vez realizados os cursos os técnicos deverão visitar os agricultores três vezes em um ano para ajudar na aplicação das propostas contidas nos cursos. Estas visitas técnicas têm duração prevista nas chamadas de uma hora o que não permite tratar de quaisquer outras questões de interesse dos agricultores.
Como se vê, o método imposto pelo DATER implica no retorno às práticas difusionistas onde o papel essencial no processo é dos técnicos e o dos agricultores é o de aplicar as propostas que os primeiros apresentam nos cursos. O método pode ser eficiente (tenho dúvidas quanto a isto) para uma ATER voltada para sistemas convencionais, pois os mesmos são bastante simplificados (monoculturas, uso de um número reduzido de insumos químicos, etc.) e os problemas tendem a se reduzir aos ajustes no uso das técnicas da revolução verde.
Para um processo de ATER voltado para a transição agroecológica este método é totalmente inadequado. Nos diagnósticos de agroecossistemas utilizados pela ATER agroecológica os problemas são analisados de forma integrada e as soluções previstas não são generalizáveis nem pontuais. Os diagnósticos não são individuais, mas territoriais, sendo que o tamanho deste “território” varia da comunidade ao município até um território propriamente dito. Eles permitem estabelecer uma tipologia de agroecossistemas e subconjuntos de agricultores com problemas e causas semelhantes. Os agricultores deverão identificar-se com um destes subconjuntos para iniciar um processo de experimentação coletiva de uma ou mais soluções que terão que ser adaptadas por cada um deles às suas situações particulares.
O papel dos técnicos neste processo é o de identificar propostas técnicas oriundas das práticas tradicionais ou inovadoras dos agricultores ou do arsenal oferecido pelo conhecimento científico e submetê-las à escolha dos agricultores de cada grupo de experimentadores. Cabe a eles, mas também aos agricultores mais avançados nos processos de experimentação manter uma dinâmica de trocas de experiências nos grupos de agricultores de forma a que os avanços e problemas encontrados sejam socializados coletivamente e sirvam para retroalimentar os experimentos de cada um. Nestes processos as dinâmicas de experimentação são credoras dos aportes técnicos tanto dos agricultores como dos técnicos de ATER e as organizações dos agricultores têm um papel dinamizador do conjunto das atividades de intercâmbios, cursos e visitas a experiências mais avançadas. Nada disto pode ser realizado com o formato atual das chamadas de ATER.
Para superar este engessamento metodológico imposto pelo DATER a solução seria entregar às entidades que competem em cada chamada a definição dos métodos e, portanto, das atividades que vão ser desenvolvidas, remunerando não só o trabalho dos técnicos como dos agricultores e de suas organizações. O DATER teria, neste caso, a possibilidade de avaliar a qualidade das propostas para decidir qual a entidade vencedora da chamada. No momento presente o único critério de desempate é o histórico de cada entidade e o currículo dos técnicos envolvidos. Nesta alternativa as entidades formulariam um plano de atividades a ser aprovado pelo DATER e a remuneração se faria contra a comprovação da realização das mesmas.
Neste formato, os proponentes não necessitarão atingir todos os agricultores identificados na chamada desde o início do projeto mas sim ao longo da sua execução. Isto coloca um problema na remuneração das entidades pois o pagamento é feito pelo número de agricultores participantes de cada atividade. Com já foi dito antes, nos processos de promoção do desenvolvimento agroecológico a relação entre o número de técnicos e o número de agricultores assistidos começa bem abaixo dos 1/100 indicados (em média) nas chamadas, mas termina bem acima deste número. Como as entidades não podem pagar seus técnicos com a remuneração oferecida no início do processo será necessário alterar a lei de ATER para permitir que se façam adiantamentos suficientes dos recursos previstos nas chamadas.
c- Identificação das demandas de ATER
No presente formato das chamadas os “temas” são identificados através de consultas feitas a indivíduos ou entidades de um dado território e selecionados pelo DATER. Parece uma incoerência que o DATER exija diagnósticos amplos e detalhados de cada agricultor para identificar os problemas quando os temas já estão definidos pelas chamadas. Das duas uma, ou os temas terão que ser tão abrangentes que exijam um diagnóstico posterior para precisar as demandas ou os diagnósticos terão que ser referenciados aos temas pré-definidos.
A nosso ver não há necessidade de se pré-definir as demandas e as mesmas deverão surgir dos diagnósticos territoriais (e não individuais). Para serem coerentes com as prioridades definidas pelo PNATER as chamadas deverão simplesmente indicar que os projetos buscarão promover o desenvolvimento agroecológico dos agricultores do território identificado. Neste sentido, não há lógica em se identificar uma demanda para a transição agroecológica, pois esta não é uma “cadeia produtiva” mas um processo a ser utilizado em todas as chamadas.
d- Tempo de duração dos projetos
No presente formato das chamadas os projetos têm duração de um ano. O DATER indica que os mesmos podem ser renovados ano a ano mas isto implica que serão realizadas novas chamadas a cada ano. Este sistema é irracional do ponto de vista de um planejamento de longo prazo de um processo de promoção do desenvolvimento agroecológico. Os projetos deveriam ter a duração máxima permitida pela lei de Responsabilidade Fiscal, isto é, o tempo de duração do mandato do governo, ou quatro anos. Com um novo governo poderão ser realizadas novas chamadas para os mesmos públicos para que se possa dar continuidade aos processos iniciados desde que os mesmos sejam avaliados positivamente. As entidades executoras dos projetos de ATER deveriam ajustar seu plano de atividades a cada ano, submetendo os mesmos ao DATER.
e- Precificação das atividades de ATER
A justificativa do DATER para pré-definir todas as atividades a serem realizadas é a necessidade de quantificar o pagamento dos serviços de ATER. Como compatibilizar esta necessidade com a flexibilização das metodologias e das atividades em cada projeto? Há duas maneiras para se contornar este problema. Uma seria de se negociar com o DATER uma precificação específica para projetos de desenvolvimento agroecológico. Neste caso poderíamos ter situações delicadas pois os custos por agricultor assistido variarão de projeto a projeto. Outra alternativa seria o DATER definir o valor por agricultor assistido pelo método que achar melhor mas deixar que os proponentes definam suas atividades da forma que acharem mais eficiente, desde que aceitem serem remunerados pelos valores definidos nas chamadas. Pela experiência da AS-PTA não temos dúvidas de que, ao longo de um projeto de quatro anos, os custos por agricultor assistido dentro das metodologias de promoção do desenvolvimento agroecológico serão inferiores aos custos atualmente adotados pelo DATER, sempre que se considere o conjunto do período e não o custo a cada ano.
Necessidade de quadros técnicos preparados no uso das abordagens agroecológicas, tanto ao nível técnico como metodológico
A forma de financiamento proposta pelo DATER não dá espaço nem recursos para a formação dos técnicos contratados para a execução dos projetos nem do aperfeiçoamento dos que já compõe a instituição. Espaços como o das Redes de ATER que tem servido como motor da socialização das experiências metodológicas e tecnológicas das várias instituições ficam condenados no formato dos projetos pois não só não há recursos previsto mas, sobretudo, os técnicos não tem tempo nem para respirar.
No formato que estamos propondo nos itens acima apresentados será possível incorporar novos técnicos aos projetos na medida em que os processos de desenvolvimento agroecológico vão avançando e se complexificando. A precificação das atividades de ATER terá que incorporar os tempos necessários para a formação destes novos técnicos bem como para as atividades de pesquisa. O planejamento e avaliação das atividades, não só dos técnicos das entidades como também dos agricultores e suas organizações parceiras nos projetos também devem ser incorporados nos custos da ATER.
Baixe o texto:
Texto de Referência do Campo Agroecológico para a Conferência Nacional de Ater