As sementes crioulas, sugestivamente chamadas na Paraíba de Sementes da Paixão, são aquelas melhoradas e conservadas pelas famílias agricultoras ao longo de séculos, adaptadas às suas condições de solo e clima, às suas práticas de manejo e preferências culturais. Historicamente, as comunidades agrícolas têm sido responsáveis pela conservação de uma riquíssima diversidade de espécies e variedades, adaptadas aos mais diferentes usos e necessidades. Essa diversidade faz parte da estratégia produtiva desses agricultores: elas fornecem alternativas de alimentos, forragem, fibras e remédios ao longo do ano, entre outras vantagens, enriquecendo a dieta e diversificando as possibilidades de obtenção de renda. Essa riqueza também está relacionada aos diferentes usos (alimentação, forragem, comércio, preparação de comidas típicas etc.) e características de interesse (duração do ciclo, resistência à seca ou à umidade excessiva etc.). Assim como a diversidade de espécies, a diversidade genética dentro de uma mesma espécie é de enorme importância para diminuir a vulnerabilidade dos agricultores: se numa lavoura existirem diversas variedades de feijão, por exemplo, dificilmente uma doença, praga ou extremo climático dizimará todas.
Apesar dessa enorme importância, ao longo das últimas décadas a legislação e as políticas públicas caminharam no sentido de colocar essa riqueza em risco. Até bem pouco tempo, as sementes crioulas sequer eram reconhecidas pela legislação brasileira: eram consideradas “grãos”, e não sementes, e ficavam excluídas de todas as políticas. Com a aprovação da nova Lei de Sementes (10.711), em 2003, as sementes crioulas passaram a ser oficialmente reconhecidas e ficou vedada sua exclusão de programas de financiamento ou de programas públicos de distribuição ou troca de sementes destinados a agricultores familiares. Essa mudança permitiu avanços importantes no trabalho de resgate, conservação e uso de sementes crioulas em muitas regiões do Brasil, mas algumas dificuldades permanecem.
Um dos fatores que estão na raiz desse problema é a dificuldade que têm os órgãos governamentais, bem como as instituições de pesquisa e ensino, de reconhecer a qualidade do material genético melhorado e manejado pelos agricultores familiares. A ideia de que as sementes de variedades crioulas são “grãos”, que têm baixa germinação e que não são produtivas permanece arraigada entre os formuladores de políticas públicas, apesar das inúmeras demonstrações em contrário vindas de comunidades rurais de todas as regiões do Brasil.
Para comprovar cientificamente a importância das variedades crioulas para a agricultura familiar do semiárido, a Rede de Sementes da Articulação do Semiárido Paraibano (ASA-PB), buscou apoio da Embrapa Tabuleiros Costeiros. Com recursos do CNPq, foram realizados, por três anos, ensaios de competição entre três sementes de variedades “comerciais” (duas das quais distribuídas pelo governo na região) e outras cerca de 20 variedades crioulas escolhidas pelos agricultores vinculados à rede. Esses ensaios comprovaram a qualidade – e em vários casos a superioridade – das sementes crioulas para os ambientes onde foram cultivadas (leia mais sobre a pesquisa no Boletim 587 da AS-PTA).
Demonstrada a qualidade das sementes crioulas, resta o desafio de influenciar a formulação e execução de políticas públicas, para que elas promovam a conservação da agrobiodiversidade em benefício da agricultura familiar.
Um dos grandes exemplos de política a ser revista é o Programa Brasil Sem Miséria que, em vez de apoiar o trabalho das organizações locais para a conservação e multiplicação de sementes crioulas para distribuição aos agricultores da região semiárida em situação de vulnerabilidade, tem promovido a distribuição de apenas uma ou duas variedades de sementes comerciais desenvolvidas pela Embrapa – o que perpetua a relação de dependência desses agricultores às sementes vindas “de fora”, não produz bons resultados na produção e acaba contribuindo para o desaparecimento das variedades locais.
No sentido oposto, uma política inovadora operacionalizada pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento / Ministério da Agricultura), o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, tem, desde 2003, comprado semente crioulas de agricultores familiares para doação a Bancos de Sementes Comunitários, possibilitando o acesso a sementes de qualidade e adaptadas às respectivas regiões de cultivo, numa estratégia de fortalecimento dos estoques dos Bancos Comunitários e da promoção da autonomia dos agricultores em relação a este insumo.
Justamente com o objetivo de debater essas questões e avançar no diálogo entre os órgãos de governo, instituições de pesquisa, organizações de agricultores familiares e sociedade civil, foi realizada na última semana, no interior da Paraíba, uma Oficina de Trabalho intitulada “Interação de políticas públicas com iniciativas de gestão comunitária de sementes locais protagonizadas por redes da sociedade civil no semiárido brasileiro”.
A primeira parte desse encontro aconteceu no escritório da AS-PTA, no município de Esperança (PB), na manhã de 26 de julho, quando representantes de diversos estados articulados pela ASA Brasil (Articulação no Semiárido Brasileiro), do Polo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema, do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), da AS-PTA e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apresentaram a pesquisadores da Embrapa, representantes da Conab e da Secretaria da Agricultura Familiar da PB os princípios e o funcionamento da gestão comunitária de sementes locais por redes da sociedade civil no semiárido. As interfaces positivas e negativas dessas experiências com as políticas públicas também foram debatidas.
Antônio Barbosa, da ASA Brasil e coordenador do P1+2, , ressaltou o papel de sua organização na sistematização de práticas dos agricultores: “As cisternas já existiam, nosso desafio foi sistematizá-las e transformá-las em política pública. O P1+2 vem nessa mesma caminhada. Beber tem a ver com plantar e criar, e plantar e criar têm a ver com sementes. E há práticas históricas dos agricultores com sementes que precisam ser fortalecidas e valorizadas. A ASA Brasil já disponibilizou, no âmbito do P1+2, R$ 252 mil para apoiar a infraestrutura de 126 bancos de sementes comunitários, com a compra de equipamentos como balança, silos, entre outros, além de capacitações sobre a gestão comunitária das casas e bancos de sementes. Está também negociando com a Conab o apoio à criação de mais 1.300 outros Bancos”. Barbosa alertou ainda para a necessidade de uma ação emergencial, neste momento de seca, para apoiar os Bancos de Sementes que já existem, mas que possa ser ampliada para comunidades que ainda não têm a prática de resgatar e guardar sementes coletivamente.
Nelson Ferreira, do Polo da Borborema, destacou a importância dos mercados para a conservação das sementes: “todas as feiras livres têm uma relação com a agricultura familiar e têm fornecedores de sementes, do gosto e do domínio dos agricultores”.
Adilma Pereira, assentada da reforma agrária em Remígio – PB, criticou a distribuição de sementes efetuada pelo Programa Brasil Sem Miséria: “Se esse programa continuar, as pessoas vão criar dependência e perder a capacidade de selecionar e guardar suas sementes, e só depois vão perceber o prejuízo da perda da diversidade de sementes locais. No futuro, se variar muito, vão ter três variedades pra plantar”. E lançou o desafio: “A pesquisa mostrou que nossas sementes são boas, e são elas que nós queremos. Gostaria então de entender por que o governo não quer apoiar nosso trabalho”.
Euzébio Cavalcanti, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Remígio – PB, observou que a semente, que nasceu com a agricultura, deixou de ser livre quando entrou o mercado – mas que, apesar de todas as políticas que foram implementadas para acabar com as sementes crioulas, elas estão aí, foram escondidas e conservadas pelos seus guardiões. “A política – inclusive a política de Ater (Assistência Técnica e Extensão Rural) – deve ser repensada. Os gestores ficam muito presos ao que diz a lei. Mas a política deve ser pensada a partir da lata onde o agricultor guarda a semente, e não a partir da lei”.
Gizelda Beserra, uma das coordenadoras do Polo da Borborema, lembrou como o trabalho realizado em parceria com a Conab contribuiu para os agricultores diversificarem seus roçados, além de garantir a venda direta, evitando que os agricultores entreguem seus produtos a atravessadores. “O governo precisa reconhecer nossa capacidade de desenvolver esse trabalho, e nós devemos também reconhecer as boas experiências com o governo”, afirmou.
Silvio Porto, Diretor de Política Agrícola e Informações da Conab, advertiu para o risco de a lógica do PAA migrar da perspectiva coletiva para a individual, o que é favorecido pelo mecanismo de Chamada Pública que foi experimentado no final de 2011 para a compra pública de sementes da agricultura familiar. Para ele essa questão é de grande relevância e deve ser debatida no âmbito do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Silvio reforçou o interesse da Conab em continuar atuando no tema das sementes na perspectiva do fortalecimento do trabalho em rede, utilizando a política como ferramenta para fortalecer as estratégias que já existem.
O pesquisador Altair Toledo Machado, da Embrapa Cerrados, observou que o tema das sementes é difícil de ser tratado com os pesquisadores, pois envolve a questão da propriedade intelectual. Ele sugere a criação de uma rede de pesquisa participativa em agrobiodiversidade, argumentando que a pesquisa deve ser descentralizada, realizada com os agricultores. Diante do risco da perda de variedades e de conhecimentos associados, Altair defendeu também a criação de um programa de pesquisa em agrobiodiversidade.
Fechando essa primeira rodada de discussão, Waldyr Stumpf, Diretor-Executivo de Transferência de Tecnologia da Embrapa, relatou como está sendo planejado o trabalho da Embrapa no âmbito do Programa Brasil Sem Miséria para os anos 2013 e 2014: junto com o serviço de Assistência Técnica, estão sendo mapeadas as demandas das comunidades rurais indicadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que estão localizadas em 14 territórios. De acordo com as demandas identificadas, serão instaladas em cada um desses territórios 10 Unidades de Aprendizagem. Segundo Waldyr, há aí um espaço para se trabalhar com sementes locais. Haverá também três programas transversais, um ligado à água, que pode abranger a questão agroecológica, um sobre alimentos biofortificados através de melhoramento genético convencional, para combater deficiências nutricionais, e um sobre biofertilizantes.
Waldyr declarou que, além de todas essas ações, a participação da Embrapa no fornecimento de sementes para distribuição no Programa Brasil Sem Miséria também será mantida. Entretanto, ele defendeu a criação de um projeto em parceria com a sociedade civil para apoiar o trabalho com sementes que já vem sendo realizado. Ele ressaltou que o Brasil Sem Miséria busca atender 4 milhões de famílias e que é preciso pensar em como incorporar esse público nesse processo. “É um desafio ter sementes para atender esse contingente”, disse ele.
Na tarde do dia 26 de julho todos os participantes do encontro deslocaram-se para Assentamento Queimadas, na localidade de Lagoa do Jogo, município de Remígio – PB, onde agricultores familiares apresentaram o trabalho realizado no Banco de Sementes Comunitário desde 2003 e como os agricultores associados ao Banco conquistaram sua autonomia, não precisando mais se preocupar em comprar sementes na feira na hora de plantar. “Quando o Banco foi criado, foram trazidas sementes e conhecimentos de vários lugares”, relataram. Ressaltaram também a diversidade de sementes que existe nos bancos familiares, que também são estimulados, bem como os métodos naturais para o armazenamento das sementes (com cinza, pimenta do reino e casca de laranja), que no passado eram desacreditados e agora tiveram sua eficácia comprovada pela pesquisa realizada em parceria com a Universidade Federal da Paraíba (Campus Bananeiras).
Os agricultores também chamaram atenção para a qualidade de suas sementes. “Temos uma variedade de feijão que produz bem mesmo se não chover. Já a semente do governo cresce bem, mas na hora de colher não dá vagem”, declarou seu Paulo, presidente do Banco de Sementes Comunitário da Comunidade de Lagoa do Jogo. E indagaram: “Por que as políticas não chegam em um local e debatem com a comunidade, para saber quais sementes têm se dado bem naquele local? Porque da maneira como é feita essa distribuição, com uma variedade de fora, não funciona.”
Alguns agricultores relataram que beneficiários do Bolsa Família foram obrigados a receber as sementes do Programa Brasil Sem Miséria para ter acesso ao Seguro Safra, mas que não as plantaram. Alguns sindicatos também receberam as sementes do governo, mas não as distribuíram, pois não concordavam com a política. “A semente ficou lá, sendo consumida pelo gorgulho num pé de parede. Era preciso avaliar o quanto o governo gastou com essa política e que foi dinheiro jogado no lixo”, protestou Euzébio Cavalcanti. A agricultora Rosimari Alves, uma das Coordenadoras do Coletivo Regional Cariri e Seridó, reforçou: “Nós não usamos essa semente nem para dar aos animais, porque ela é tingida com agrotóxicos, então fica ali se estragando”.
A Oficina teve continuidade no dia 27 de julho no município de Lago Seca – PB, com o objetivo de aprofundar a discussão e elaborar propostas de medidas concretas para ampliar a escala das dinâmicas comunitárias de gestão de sementes locais.
Em primeiro lugar, foram sintetizados os princípios técnicos (relativos à diversidade, qualidade, quantidade, especificidade), sociais/organizativos (solidariedade, reciprocidade, parceria, ação em rede, papel dos guardiões), culturais (identidade, paixão, patrimônio), políticos (resistência, autonomia, livre uso, luta, empoderamento) e econômicos (segurança e soberania alimentar, mercados) que deveriam reger as políticas sobre sementes para a agricultura familiar, de acordo com o trabalho que já vem sendo realizado pelas organizações da sociedade civil. Falou-se também no papel da pesquisa para este campo, que envolve o reconhecimento oficial das sementes crioulas, a função pedagógica (e de conhecimento sobre a diversidade), a participação e a descentralização.
Sugeriu-se buscar envolver também o Incra nessa discussão, que não participou do encontro devido à muito recente mudança em sua presidência. Chamou-se a atenção para a proposição de mudanças nos planos de trabalho de Ater e de Ates , que dizem ter o eixo agroecológico, mas que ainda são fragmentados e individualizados.
Recomendou-se ainda identificar as dinâmicas que atendem aos princípios acima descritos, priorizar o seu fortalecimento através das políticas públicas como o PAA e buscar articulá-las com vistas à formação de uma rede nacional capaz de elaborar e propor a criação de um programa nacional de sementes.
A integração da ação de comercialização coordenada pela Conab com a pesquisa da Embrapa também foi apontada como estratégica, assim como a negociação, junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), para que viabilize a publicação de editais do CNPq para pesquisas com sementes crioulas.
Por fim, como encaminhamento concreto, foi proposta a criação de um grupo executivo, com representantes da Conab, da Embrapa, da ASA, da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia), se possível também do Incra, entre outras organizações, que deverá começar a se reunir em breve para avançar na formulação de propostas concretas de adequação e criação de políticas e instrumentos voltadas para o fortalecimento das estratégias comunitárias de gestão dos recursos da agrobiodiversidade.
Flávia Londres
Consultora da AS-PTA