O processo que originou este livro pode ser comparado a uma troca de óculos. Mas não por que precisávamos de lentes de maior grau para enxergar melhor o que antes víamos embaçado. Esses novos óculos seriam mais daqueles que utilizamos para assistir filmes 3D, pois eles possibilitam a visualização de novas luzes, sombras e, igualmente im- portante, permitem que nos vejamos como participantes da realidade.
O fato mais significativo nessa “troca de óculos” foi que ela se deu como resultado de uma decisão coletiva, conjuntamente executada pelas organizações vinculadas à Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), que empreenderam o esforço de identificação e leitura de variadas expressões da Agroecologia no estado do Rio de Janeiro. Para conduzirem esse exercício de reinterpretação do papel e do lugar da perspectiva agroecológica na agricultura fluminense, tomaram como referência um conjunto amplo e diversificado de experiências sociais em curso nas várias regiões do estado. Em sua diversidade, essas experiências são rurais e urbanas, de produção e de consumo, agrícolas e não agrícolas. São protagonizadas por atores portadores das mais variadas identidades socioculturais (agricultores(as) familiares, assentados(as), quilombolas, caiçaras, agricultores(as) urbanos(as), consumi- dores(as), etc.) e afiliações institucionais (organizações e movimentos da agricultura familiar e da reforma agrária, ONGs, cooperativas de serviço e de consumo, instituições oficiais de ensino, de pesquisa e de extensão rural).
O traço de união que agrega essa impressionante diversidade em um todo coerente não pode ser encontrado em delimitações normativas, que procuram categorizar a complexa realidade da produção de base familiar entre a “agroecológica” e a “não agroecológica”. Essa é a primeira das conclusões-chave que emergem quando a realidade é enfocada pela perspectiva tridimensional empregada pela AARJ. No lugar das classificações maniqueístas e esterilizantes que encaram o mundo em preto e branco, o enfoque agroecológico procura situar as experiências particulares em diferentes matizes do espectro das cores que correspondem a níveis diferenciados de avanço na construção da sustentabilidade socioambiental. Nesse sentido, expressa a natureza eminentemente processual das lutas sociais. A coerência entre as experiências aqui relatadas está exatamente no fato de que são, antes de tudo, expressões de lutas imersas em contextos socioeconômicos, culturais, políticos e ideológicos hostis, com raízes históricas longínquas, mas que foram mais recentemente remoldados pelo projeto da modernização conservadora e pela globalização neoliberal.
Pelo seu caráter essencialmente local, e algumas vezes social e geograficamente isolado, essas experiências permanecem pouco visíveis e não costumam ser encaradas como expressões relevantes de força transformadora. De fato, vistas individualmente, aparentam ser inofensivas ao status quo. No entanto, segundo a nossa mirada em 3D, a existência empírica dessa multiplicidade de experiências autônomas, localmente enraizadas e construídas de baixo para cima representa a manifestação efetiva de resistência aos padrões de desenvolvimento impostos de cima para baixo.
Em termos práticos, as experiências sistematizadas pela AARJ de monstram que a luta por autonomia manifesta-se em várias esferas da existência: no âmbito do manejo produtivo, na organização para a comercialização, no encurtamento dos processos que encadeiam a produção e o consumo, na revalorização de saberes e práticas culturais, na afirmação de identidades socioculturais, no empoderamento das mulheres, na construção do protagonismo juvenil, na reconstrução da cultura da paz e do cuidado em comunidades urbanas conflagradas, etc.
O reencontro com a natureza também aparece como elemento estruturante e como pano de fundo do conjunto dessas práticas emancipatórias. Por meio dessa reconciliação, a produção econômica e a reprodução social são ressituadas, material e simbolicamente, como dinâmicas de coprodução entre o humano e a natureza. Nessa concepção, a noção de desenvolvimento enfatiza processos endógenos que canalizam os saberes e o trabalho em direção aos potenciais ambientais localmente disponíveis. Dessa forma, o ideal de sustentabilidade socioambiental vai se materializando nas experiências através da construção de al- ternativas técnicas, econômicas e sócio-organizativas que conjugam produção e distribuição equitativa de riquezas, redinamização da vida cultural e conservação do meio ambiente.
Está justamente nesse arranjo da perspectiva agroecológica a chave para a compreensão das estratégias locais adotadas para desativar os mecanismos geradores de dependência impostos pela lógica da mercantilização de parcelas crescentes do mundo natural e do mundo social. Vem daí também a força social emergente capaz de contrapor com suas respostas concretas o modelo único de desenvolvimento propug- nado pelos agentes do mercado globalizado em aliança com setores hegemônicos do estado.
A grande virtude do esforço analítico realizado pela AARJ foi a de construir a percepção coletiva de que essa força social associada aos princípios agroecológicos é, no Rio de Janeiro, muito mais ampla e diversificada do que até então poderíamos supor. A partir dessa constatação, novas questões surgem no horizonte da articulação, dentre as quais:
• Como canalizar essas forças emergentes em processos trans- formadores que extrapolem a escala local sem que isso signifi- que a criação de aparelhos hierárquicos com baixa sensibilidade às diversidades?
• Como imprimir sinergia entre os grupos protagonistas dessas experiências sem retirar-lhes a autonomia que sustenta sua exis- tência e vitalidade?
• Como enfrentar o agronegócio no campo político-ideológico sem lançar mão de propostas universalizantes, e que se mostram incapazes de incorporar as estratégias e projetos inscritos nas diversificadas formas nas quais as populações locais enfrentam seus problemas e constroem suas identidades?
Questões como essas se colocam no presente momento como o principal desafio político-metodológico para que a Agroecologia que emerge das comunidades como práticas alternativas isoladas se convertam em práticas convergentes contra-hegemônicas em escalas crescentes da luta social.
Esse desafio vem sendo apresentado como objeto de reflexão da AARJ, assim como de outras articulações estaduais e regionais do campo agroecológico vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Essa reflexão se faz tanto mais necessária quanto mais evidente se tornam as limitações das tradições político-organizativas de nossos movimentos e organizações sociais, naquilo que se refere à valorização da experimentação social e das estratégias contra-hegemônicas que ela implicitamente suscita.
O aprofundamento desse debate incide também sobre a essência da proposta agroecológica como enfoque científico portador de conceitos e métodos para a leitura e a ação sobre a realidade. Estamos, pois, em um momento em que as conclusões mais profundas da “troca de óculos” precisam ser tiradas para que a ciência da Agroecologia vá ao encontro do movimento agroecológico, um movimento emergente por excelência.
Paulo Petersen
Diretor-Executivo da AS-PTA
Caminhos agroecológicos do Rio de Janeiro: caderno de experiências agroecológicas