A vida de Lígória Felipe dos Santos sempre a empurrou para fora do campo, mas é com persistência e com imenso orgulho de poder trabalhar a terra que vem insistindo em se manter como agricultora.
Ligória nasceu no sítio Benefício, em Esperança, numa família de 7 irmãos. Aos 7 anos, foram obrigados a deixar as terras onde moravam e quando ela completou 16 anos, foram obrigados a irem para cidade. Casou-se muito cedo. Aos 19 anos conheceu o primeiro marido e foram viver em São Paulo. Dessa relação nasceu seu primeiro filho, Kleber, que hoje tem 26 anos, é casado e mora em João Pessoa.
Esse primeiro casamento não deu certo. Voltou à Paraíba para reconstruir sua vida. No final dos anos 1990, Ligória conheceu Itamar, seu segundo marido, e com ele teve Letícia e Gabriel. Temos uma relação de altos e baixos, avalia Ligória.
Logo quando se casou com Itamar, foi morar em Esperança, numa casa de dois cômodos. E na minha sala tinha um pé de pimentão, conta Ligória. Foi sempre assim, sempre tive uma paixão, e um poleiro e um balde. Depois de muita batalha, o casal conseguiu uma casa emprestada na comunidade de Timbaúba, também em Esperança. Lá a gente morou três anos, conta Ligória. Teve um ano que lucramos muita batatinha, fava, milho, jerimum. Só de feijão foram 37 sacos, só da boca da máquina. Batemos mais do que a dona da propriedade, relembra. Tudo o que a gente lucrava, dava para metade para dona. Eu só não dava as galinhas e ovos, explica.
Mas depois que lucramos, Itamar bebeu uma cachaça grande. Foi quando ele tentou me matar pela primeira vez. Falei com ele que estava fazendo igual ao meu pai, que bebia também. Foi quando ele atirou nele mesmo com uma espingarda. Colocou o pé no gatilho e acertou o pescoço. Aí não teve jeito. A mulher dona da casa pediu para a gente sair. E Itamar chegou a falar para polícia que havia sido eu que tinha atirado. Mas eu tinha a dona da casa como testemunha. Depois disso, ele passou a beber com mais frequência, passou a surtar.
Mudaram-se para Lagoa de Pedra e lá, Itamar foi cuidar do gado do patrão por R$ 50,00 a semana e mais dois quilos de carne. Lá eu também podia criar galinhas, conta. Mas só podia criar até 10. Sempre com jeitinho, conseguia criar mais. Quando eu deitava uma galinha para mim, eu deitava uma para o patrão. E assim consegui encher o terreiro novamente.
Mas a tranquilidade durou pouco. Itamar começou a beber novamente. Ele começou a amarrar os bichos do homem de qualquer jeito, deixava os bichos com fome, conta. Matou os cachorros do dono e antes do dele pedir a casa, eu ajeitei para sair. Aí voltamos para a rua de novo. Vendi as galinhas e os perus na feira e paguei dois meses de aluguel adiantado. Os animais pequenos, levei para criar no quintal, mas as vizinhas reclamaram e acabei ficando só com as sementes, que pedi para minha tia que morava no Benefício criar pra mim.
Mas era sempre assim, quando dava o inverno, eu me desesperava para voltar, conta Ligória. Minha tia arrumou então uma terra no sítio Lajedão. Lá plantamos uma cinquenta de roçado e plantamos erva-doce de meia. Nesse ano, lucramos 11 sacos de feijão. O inverno estava meio fraco. Com o dinheiro do bolsa-família, mais as galinhas que tinha deixado de semente, consegui encher meu terreiro novamente.
Foi nessa época que conheci o trabalho do Sindicato de Esperança e participei de uma reunião sobre Fundo Rotativo de Tela. Até fui contemplada, mas o dono do terreno não deixou organizar o terreiro.
Eu tinha muita galinha, pintos, porcos. Até que o dono foi pulverizar a erva-doce. Quando eles foram preparar o pulverizador, usaram o mesmo quarto que guardava a ração dos animais e ela foi contaminada com o veneno. Perdi muito bicho. Não pude falar porque a casa era do homem, o veneno era do homem. Mas não aguentei, vim aqui falar com minha avó. Ela autorizou que eu viesse morar aqui. Fui para a prefeitura para tentar conseguir uma casa. Só fiquei com os calos e com a dívida de R$ 50,00 da procuração. O processo sumiu dentro da prefeitura.
Conversei então com meu pai. E já que eu tinha ajudado ele a construir a casa dele, ele resolveu me ajudar com R$ 400,00 para construir a minha casa. Juntei com o dinheiro da venda de uma garrota e de umas ovelhas que tinha e dei entrada nas prestações do material para levantar minha casa. Depois meu pai se arrependeu, começou a brigar comigo. Voltou a beber e Itamar começou a beber junto.
Conversei com o vizinho que me deu uma carga d´água para terminar de construir minha casa. Bêbado, Itamar cortou os baldes. Chega que naquela época eu não falava nada, aguentava calada. Eu morava no Lajedão ainda e vinha todos os dias à pé pra trazer o lanche e o almoço. Às vezes acabava o dinheiro e fazia ovos com cuscuz bem reforçado. Tinha que pagar o servente, porque o Itamar nem ajudava. Meu pai era cheio de razão a favor dele e contra mim.
No final de 2011 viemos morar nessa casa, depois de ganhar as portas da minha tia. Ainda nem terminou a casa direito, nem temos a porta do banheiro. No primeiro ano, fizemos um roçado de feijão, macaxeira e milho. Plantei capim para dar aos bichos. É com o dinheiro do bolsa-família que comprava palma para os bichos e dividia o valor da pampinha em duas vezes. Dos R$ 100,00 que ganhava, R$ 50,00 era para casa e R$ 50,00 pagava a primeira prestação da palma.
Ainda devo a prestação da casa, ainda falta terminar a cozinha. Mas já consegui minha cisterna, continuo aumentando minhas galinhas, meus bichinhos. Sigo plantando no inverno. Consegui plantar batatinha, agora agroecológica. O feijão quando lucro, guardo 30 quilos no banco de sementes do Sindicato. Tenho aqui em casa o feijão de plantar. Tenho umas cinco qualidades de feijão. Tenho fava, milho. No inverno tenho bastante verdura, tenho sementes de alface, cenoura, coentro, cebola, couve, tenho de tudo no meu arredor de casa. Aqui são três meses de fartura verde. Quando tem água nos barreiros perto, a gente vai aguando.
Meu pai é herdeiro dessa terra, mas minha avó ainda é viva. Ela tem 90 anos de idade. Aqui são 25 hectares de terra para ser dividida por 13 herdeiros. Na terra, além da avó que mora na casa grande, têm mais 16 casas habitadas. Eu fui a última a entrar na terra. Cada herdeiro tem o direito de 2 hectares de terra, meu pai não trabalha em nada, hoje ele só mora aqui. Eu que planto em quase um hectare, mas não sei o meu futuro. Tenho que dividir a parte do meu pai com mais 6 irmãos.
Aqui em casa sou eu que vou para as reuniões. Eu que consigo o trator, em que pago para cortar a terra. Pago R$ 100,00 para cortar e R$ 40,00 para plantar. Para xaxar sou eu e Itamar mesmo. Gosto de participar de intercâmbios e em cada lugar que vou trago sementes e mudas.
Um dia fui para uma visita de intercâmbio na casa de dona Catarina, em Lagoa Seca, e lá me perguntaram se poderiam fazer uma oficina de construção do fogão ecológico aqui. Fiquei animada e tão preocupada de arrumar um canto. Eu não tenho cozinha em casa ainda. Eu tinha batido uns tijolos para aproveitar a sobra da massa da cisterna. Aí cavei as sapatas da cozinha, ficou torta, mas deu. Itamar foi me ajudar, aí eu critiquei e ele se zangou. Acabou o tijolo. Peguei emprestado com o vizinho. Aí faltou os caibros e não tinha mais dinheiro. Eu surtei. Itamar saiu com uma foice e uma serra e ele pegou umas ripas de marmeleiro e linhas de sabiá na mata. E a oficina marcada. Quando aconteceu a oficina, a massa ainda estava fresca. A cozinha já me deu muitos cafés da manhã e almoço. Tinha meu fogão de lenha, mas dava muita fumaça. O bujão passou a durar 4 a 5 meses.
Quando fiz a cozinha, arrumei uma carroça para vender bolo. Falei com assistente social: Carla preciso de ajuda, preciso de um carrinho de mão para meu menino vender produtos de limpeza. Era para ela me dar a carroça. Eu tinha muita jurema cortada, pai me deu R$50,00 para comprar farinha, danei a fazer bolo. E Gabriel danou andar por ai. No primeiro dia voltou com bolso cheio de dinheiro e com 5 encomendas de bolo baeta. Comprei fiado o leite e consegui fazer os bolos.
Valdete do Sindicato disse: vamos ajeitar um canto para você vender na feira. Falei com seu Assis, o presidente do Sindicato. Eu tinha muita mandioca, ralei para fazer beiju. Plantei coentro no roçado, alface. Levava ovo, galinha viva e torrada, doce de mamão.
Estou na feira desde o final do ano passado. Vendo de tudo um pouco: alecrim, capim santo, espriteira, erva cidreira, manjericão, arruda. Vende chá, folha e muda. Levo suco da fruta, do maracujá que tenho aqui. Levo bolo, doce. Faço picado, levo galinha viva ou torrada. Meu banco é de mangaio, brinca. Levo umas coisinhas, apuro uns R$30,00 tirando as despesas.
Quanto não tinha o que levar, eu pegava a fruta com a vizinha, se não tinha o ovo, pegava emprestado com outro vizinho e pagava com o doce ou com o bolo. Trocava bolo por ovos, doce por mamão, brinca. Na feira eu troco verdura por comida. Por exemplo, se algum colega compra R$ 9,00 de picado, eu pegava o valor em verduras. Quando eu não vendo tudo, vendo a fatia do bolo mais barata dentro do carro da feira. Vendo o suco mais barato pras amigas. Sempre compro vasilha para que as mulheres possam levar o picado para casa, e ainda sobrar dou para a vizinha, para o meu pai. Ai ela manda pra mim inhame, goiaba pelo Gabriel. E assim vou levando.
Eu era uma pessoa muito sofrida. Não tinha voz ativa, vamos supor, pra eu dizer assim vou pra um canto e ir, porque eu tinha medo dele porque ele bebia. E dele beber e chegar naquele canto e fazer até bagunça ou me chamar e eu ficar com vergonha. Então ali eu ia sofrendo aos pouquinhos, cada vez que ele bebia, nem toda vez ele chegava em casa quieto, às vezes ele começava a conversar besteira e às vezes eu falava, reclamava algumas coisas que estavam erradas e ele até chegava à surtar. Quebrar prato, jogar comida fora, botar comida e jogar fora. Então eu ia sofrendo, sofrendo, a única coisa que podia fazer era pedir força à Deus. Porque quando ele bebia que ele surtava, ele dizia que matava a gente e se matava.
Até que fui à marcha em Solânea, eu vi aquilo ali, as amigas falavam pra aquelas mulheres, contando seus testemunhos que tinha acontecido com elas, que elas tinham enfrentado, que elas tinham coragem de falar. Eu falei pra mim mesma: Por que eu não posso fazer a mesma coisa?
Então passou-se uma semana depois e Itamar bebeu uma cana muito grande novamente. Minha moça arrumou um namorado mais velho, de 25 anos, através de amizade de bebida, conta. Quando soube eu não estava aqui, ele veio e tinha conversado com o pai. Saíam os dois juntos para beber. Falava para Letícia, isso não vai dar certo. Foi quando fui falar com a mãe dele que se era para namorar, tinha que ser bom, sem beber. Itamar achou ruim e chegou com um facão pra mim.
Um dia Itamar descobriu que o namorado tinha mexido com a filha. Ficou muito bravo. Falou que se ela continuasse namorando que iria matar ela e iria se matar. Foi quando me apavorei e chamei a polícia. Quando fui falar com o delegado, ele ainda reclamou da minha atitude. Itamar pegou Maria da Penha por ter ameaçado a filha menor de idade. Mas a própria irmã arrumou um advogado na Prefeitura e o liberou com 8 dias.
Itamar voltou pra casa, pediu perdão pra mim, pra filha. Mas durou pouco, até ele beber novamente. Mas agora aqui em casa é diferente. Decidi que não chamo mais a polícia, mas que resolverei eu mesma do meu jeito. Essa semana mesmo quebrei o cabo do rodo, agora não fico mais calada.