Compreender como se dá a gestão dos agroecossistemas familiares e as estratégias para tornar as propriedades mais flexíveis – com a diminuição da mão-de-obra no campo –, mais autônomas – a partir de uma menor dependência por insumos externos –, e mais resilientes – do ponto de vista ecológico, ao se recuperar mais rapidamente de uma estiagem prolongada. Esse é um dos objetivos do Projeto Sistemas Agrícolas Familiares Resilientes a Eventos Ambientais extremos no Contexto do Semiárido Brasileiro: alternativas para enfrentamento aos processos de desertificação e mudanças climáticas, desenvolvido numa parceria entre a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e o Instituto Nacional do Semiárido (INSA).
Desde 2013, a pesquisa acompanha a vida e o trabalho de 100 famílias distribuídas nos territórios de Sertão do São Francisco (BA), Ibiapaba (CE), Alto Rio Pardo (MG), Cariri/Seridó e Borborema (PB), Sertão do Araripe (PE), Vale do Guaribas (PI), Sertão do Apodi (RN), Alto Sertão (SE) e Médio Sertão (AL). Até agora, já foram sistematizados dados de 40 famílias e os primeiros resultados da pesquisa já foram socializados no último mês de janeiro, em Campina Grande (PB), durante o Seminário Internacional Construção da Resiliência Agroecológica em Regiões Semiáridas (leia mais sobre os avanços da pesquisa apresentados no Seminário aqui).
Depois da mobilização das organizações envolvidas, do levantamento do histórico das famílias e da análise econômica, uma nova fase do projeto é a avaliação socioecológica, por meio do estudo da biomassa, que inclui aspectos como a fertilidade do solo e a conservação dos recursos. O objetivo agora é compreender de que forma as famílias se apropriam dos bens ecológicos, como solo, água, radiação, e saber também como elas mediam esses elementos para a geração de riquezas essenciais à reprodução dos agroecossistemas.
Gestão do Conhecimento – Mensurar esses saberes do povo do Semiárido não seria possível sem a atuação de dez bolsistas-pesquisadores/as, vinculados a organizações que compõem a ASA. São esses/as pesquisadores/as que fazem a ponte entre o trabalho de campo e a análise dos dados de pesquisa. A cada etapa do projeto, os/as bolsistas passam por oficinas de formação específica nas temáticas para, posteriormente, partir para as entrevistas com as famílias. Para isso, trabalham com instrumentais próprios que possibilitam um diálogo mais próximo da realidade das famílias. Um dos primeiros passos realizados no estudo de caso é a construção da linha do tempo do agroecossistema familiar, com o desenho da propriedade para poder se conhecer e, depois, partilhar esses processos.
“Há toda uma preparação dos bolsistas antes de chegar na comunidade. Por outro lado, há uma abertura das famílias, que em geral já estão sensibilizadas pelas organizações da ASA e trazem a dimensão das políticas públicas a que têm acesso. A segunda questão é em relação aos dados quantitativos: na maioria das vezes a informação do agricultor não está no papel, mas está na memória. E essa informação de memória tem muita qualidade”, avalia Iva Melo, pesquisadora-bolsista pelo CDJBC, em Sergipe.
O próximo passo, assim, é gerir esse conhecimento. E é aí que entra a participação do Instituto Federal da Paraíba (IFPB). O Núcleo de Estudos em Agricultura Ecológica do Sertão Paraibano, no Campus Sousa, vem colaborando com o projeto tanto na formação dos bolsistas quanto na perspectiva da gestão da informação, a partir da compreensão da dinâmica dos agroecossistemas nos territórios. Isso é possibilitado por meio de um software livre chamado Redmine, cujo servidor está baseado no instituto federal.
“O uso dessa plataforma, popularmente chamado de Gerenciador de Projetos, chega nessa pesquisa pela necessidade de organização do conhecimento produzido. O projeto trabalha com um grande fluxo de informações e o programa ajuda na sistematização”, diz o Prof. Chico Nogueira, coordenador do Núcleo.
Riquezas e saberes do campo – A pesquisa aponta que, do ponto de vista da economia, os sistemas agrícolas familiares tendem a gerar renda total do que é produzido no conjunto da propriedade, diferenciando-se da lógica empresarial que maximiza o lucro por unidade de capital investido. Além disso, o trabalho da família é o elemento central do processo de geração de riqueza do sistema camponês. Essa riqueza tanto é contabilizada pelos bens e serviços que vão para o mercado como também entra nas relações de reciprocidade, a exemplo das trocas de sementes e dos mutirões comunitários.
Ainda de acordo com o projeto, outro aspecto econômico importante que se dá na agricultura familiar camponesa é a valorização dos espaços coletivos para comercialização, como as associações, cooperativas, feiras e redes, por permitirem a realização de uma melhor negociação e, consequentemente, maior geração de renda.
“O grande diferencial do projeto é considerar o agroecossistema familiar em transição agroecológica em toda a sua complexidade. No quesito do trabalho, por exemplo, o cuidado com os filhos, o cuidado com a casa e a participação social também são tempo produtivo. A questão econômica também envolve não só a comercialização, mas o consumo da família, o que fica de estoque e o que é usado pra manter a produção. Isso também é considerado uma riqueza”, explica Gabriel Fernandes, agrônomo da AS-PTA, organização que compõe a Articulação Semiárido no estado da Paraíba.
Outro desafio é o acompanhamento dos impactos dos programas de democratização do acesso à água, desenvolvidos pela ASA, na vida das agricultoras e dos agricultores que convivem com o Semiárido.
“Nesse estudo, identificamos que as tecnologias de acesso à água contribuem para que as famílias que praticam agricultura familiar em transição agroecológica fiquem mais resistentes às mudanças climáticas. São mais resilientes que as famílias que praticam agricultura convencional”, traz Gabriel.
Ainda para ele, uma das principais contribuições da ASA para a pesquisa é o acúmulo da rede no trabalho com as famílias, o “como fazer”. Assim, a experiência da AS-PTA desde a década de 1990 na construção de diagnósticos ambientais é a contribuição que a organização traz para a pesquisa, no aspecto do processo metodológico.
Uma das famílias cuja experiência está sendo analisada é a de Seu Francisco Delmondes, agricultor da comunidade de Laginha, em Ouricuri, Sertão do Araripe (PE). Ali, ele mora com a esposa, D. Maria Aparecida, e quatro de seus sete filhos. Apesar do período prolongado de estiagem, todos trabalham no plantio de milho, feijão e algodão, desde 2011, devido à água acumulada pela cisterna-calçadão, conquistada em 2011. Ao redor de casa, a família ainda mantém um pomar, com manga, laranja, coco e acerola, além de criação de aves como galinha, peru, pato e guiné. “É importante participar da pesquisa para saber como o conhecimento se dá no campo e também repassar isso para outras famílias”, argumenta o agricultor.
Mariana Reis* – jornalista da Asacom
Com a colaboração de Victor Maciel, coordenador-pesquisador do projeto.
Fonte: www.asabrasil.org.br