Eva é uma personagem singular na alfabetização brasileira. Ela é a protagonista da frase que se tornou emblemática no aprendizado infantil: “Eva viu a uva”. O educador Paulo Freire utilizou esse exemplo para mostrar que antes de ler a “palavra” mundo é preciso ler o mundo. Assim, ele chama atenção para o fato de que não basta saber que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. A pesquisadora Daniela Frozzi (PALIN/FioCruz Brasília) trouxe a interpretação do texto de Freire para o universo da alimentação, aproximando os significados de “Eva viu a uva” com as dimensões e relações intrínsecas na leitura do mundo. Para Daniela, “trata-se de um conhecimento aprofundado, amadurecido, buscado e trabalhado, que amplie nossas visões sobre o assunto, e nos instigue questionamentos”.
Desde 2009, a Lei de Alimentação Escolar (11.947) aperfeiçoou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), indicando caminhos para que a escola pudesse ler o mundo a partir dos modos de produzir, distribuir e consumir alimentos. Duas inovações passaram a fazer parte do programa, que completará 60 anos em 2015. A primeira é que 30% dos alimentos para o preparo das refeições escolares devem ser comprados da Agricultura Familiar, de cultivo orgânico e agroecológico. A segunda é que a Educação Alimentar e Nutricional (EAN) deva perpassar o processo de ensino-aprendizagem.
Assim, Eva tem a chance de descobrir uma diversidade de frutas, verduras e hortaliças saudáveis, livres de agrotóxicos, e que valoriza o trabalho de quem planta, em sua região. Aprenderá também que as feiras orgânicas e agroecológicas e os mercados locais são ambientes férteis para ler o seu mundo e, consequentemente, a sua sociedade. Em 2013, a Lei 11.947 acrescentou outros aspectos que ajudaria Eva a compreender seu contexto social. O alimento passou a ser considerado como uma ferramenta pedagógica (Resolução FNDE Nº 26). No entanto, para que a estudante faça essas conexões, há um longo caminho a percorrer. A começar pelo fato que a agricultura camponesa é invisibilizada por um conjunto de fatores econômicos e sociais, desde a colonização do Brasil e seu auge na modernização e industrialização da agricultura brasileira na década de 70.
Se Eva mora na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, não é fácil encontrar alimentos cultivados na sua refeição escolar. Uma ideia hegemônica é a de que o município do Rio de Janeiro não tem agricultura – ou seja, não há espaço delimitado legalmente para o cultivo local. Com isso, a compra de alimentos da agricultura familiar em espaços urbanos é dificultada. Os gestores da Alimentação Escolar passam a buscar alimentos fora do município e do Estado, conforme a orientação da Lei 11.947. Essa invisibilidade está registrada no Plano Diretor da Cidade do Rio ao excluir a área rural do município e considerá-lo exclusivamente urbano. Se partíssemos somente desta direção, os agricultores da região estariam impossibilitados de fornecer seus alimentos para o PNAE. Isso se dá porque os agricultores familiares precisam obter a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), documento de identificação para acessar políticas direcionadas a eles. Se esse obstáculo não estivesse sendo vencido com luta, Eva continuaria vendo somente a uva.
Em 2011, a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU), formada por mais de 30 organizações que atuam no fortalecimento da agricultura da cidade, articulou um grupo chamado de Mutirão Pró-DAP. Participaram da ação projetos de assessoria técnica, agricultores, instituições de pesquisa e grupos que apoiam a agricultura na cidade: a AS-PTA, o Profito (Farmanguinhos/FIOCRUZ), a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a Rede Ecológica (Grupo de compras coletivas de produtos orgânicos). Essa comissão elaborou algumas estratégias e definiu um plano de ação que teve como diretriz orientar os agricultores sobre o acesso à DAP.
O plano envolveu a realização de um breve diagnóstico das propriedades de sete agricultores, de um total de cerca de 120 que plantam em áreas agrícolas do Maciço da Pedra Branca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Foram levantadas as informações que permitem enquadrá-los nos critérios de emissão da DAP: a documentação e o tamanho da propriedade; o local de moradia; a mão de obra utilizada; e a composição da renda. Os resultados apontaram que cinco entre os sete agricultores têm a renda exclusivamente oriunda da atividade agrícola, enquanto que, no caso dos demais, a renda agrícola representa cerca de 90% dos ingressos familiares .
Em junho de 2012 foi emitida a primeira DAP para um dos agricultores que participou dessa iniciativa. Com essa conquista, a Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) eles reafirmaram a existência da agricultura familiar, num exercício de visibilidade e valorização da produção. No mês de setembro do mesmo ano, o agricultor Pedro Mesquita, da Associação de Agricultores Orgânicos de Vargem Grande (Agrovargem) deu início à comercialização para o Colégio Estadual Professor Teófilo Moreira, localizado no bairro. A escola comprou 10 quilos de abóbora, 10 quilos de banana, 10 quilos de aipim e 5 quilos de abobrinha. Essa experiência inicial no âmbito do PNAE abriu oportunidade para que outras famílias agricultoras da Pedra Branca também comercializassem com as escolas públicas da rede estadual. A experiência da Rede CAU têm demonstrado que é possível comprar da agricultura familiar local.
Após a emissão da primeira DAP para um agricultor do Maciço da Pedra Branca, pelo menos seis outros agricultores tiveram acesso a este documento, incluindo a primeira DAP para uma mulher. Com isto, tem sido possível o fornecimento para alimentação escolar de 3 escolas públicas estaduais localizadas nas proximidades. Essa iniciativa é apoiada pelo Projeto Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais, realizado pela AS-PTA com patrocínio da Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental.
O coordenador do programa de Agricultura Urbana da AS-PTA, Marcio Mendonça, lembra que essa conquista foi fruto de ampla discussão, pois os próprios agricultores estavam desacreditados das políticas direcionadas a eles. A ideia que prevalecia era a de um documento comercial e burocrático para acessar um mercado (de compras feitas pelos governos) com dificuldades de pagamento; e o poder público pouco interessado em compreender e aperfeiçoar a logística do agricultor. Ao longo do embate, “os agricultores passaram a perceber a DAP como um instrumento político de pertencimento, de direito de acesso à política e de resistência dessa agricultura praticada há gerações na cidade”, complementa.
Como são comprados os ingredientes para a alimentar escolar de Eva?
Na hora da compra dos alimentos, os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais quilombolas e de povos indígenas, chamados de grupo de fornecedores locais, têm prioridade sobre os demais grupos (FNDE Resolução 26 04/2015). A segunda prioridade deve ser para os agricultores do território, onde está inserida a escola. Esta categoria tem prioridade sobre os fornecedores de outros Estados. A ausência da DAP é uma das condições que desqualificam esses grupos para fornecerem seus alimentos. Mas a experiência do município do Rio aponta que essa condição pode ser superada com mobilização entre os agricultores e organizações da sociedade civil.
Os agricultores que vivem no Estado e que participam de organizações que têm DAP Jurídica formam o terceiro grupo. Em quarto lugar estão os agricultores do país com a DAP jurídica também. A compra prioriza do mais local possível atendendo às características do primeiro grupo. Dá prioridade ainda para aqueles agricultores que possuem o certificado da produção orgânica. A compra da agricultura familiar é feita por meio de Chamada Pública.
É importante esclarecer que a aquisição é feita de forma diferenciada no Estado e no município do Rio. Na rede estadual, a compra é descentralizada. A escola recebe os recursos do governo e tem autonomia para efetuar a compra, respeitando os critérios previstos na Lei 11.947. A tarefa é gerenciada pela Coordenação de Alimentação Escolar, da Secretaria do Estado de Educação (SEEDUC). Esse modelo tem a vantagem de permitir ao gestor escolar identificar os alimentos e produtos locais de seu bairro, ou da região mais próxima, estabelecendo uma relação direta. Na Chamada Pública de 2015 foram incluídos 39 alimentos, entre os quais, está o caqui. Durante os meses de março e maio, a fruta está em plena produção nas lavouras da Pedra Branca.
No município, a compra é centralizada, realizada pela Secretaria Municipal de Administração (SMA). As escolas recebem os alimentos para o preparo das refeições. O Instituto de Nutrição Annes Dias (INAD), vinculado à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), é responsável por planejar, implementar e avaliar o programa. No mês de março de 2015, a prefeitura, por orientação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), anunciou que comprará os alimentos para as escolas municipais de agricultores de outros estados para atender a meta de 30% da compra de alimentos da agricultura familiar. Para que a compra fosse feita dos grupos locais seria necessário desenvolver outros sistemas de compra e distribuição, pois dentro do modelo que vigora a prefeitura não consegue chegar ainda nesses produtores.
O coordenador de Chamadas Públicas da SMA, Alexandre Gonçalves, indicou a possibilidade de lançar um edital de compras que se ajuste à realidade desses agricultores; e viabilizar um operador logístico para facilitar a entrega centralizada. O anúncio foi feito na pré-conferência de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada pelo Consea-Rio no mês de abril, que abordou os desafios para efetivação do PNAE no município.
A Rede CAU está reivindicando novos caminhos, como por exemplo, comprar do circuito de feiras orgânicas e agroecológicas para a refeição escolar. “É importante valorizar e ampliar esse espaço”, aponta Mendonça, lembrando a luta para emissão de DAPs, que possibilitou projetos de venda para a Alimentação Escolar.
- Encontro da Semana da Alimentação Carioca
Este cenário indica que apesar de haver políticas favoráveis à agricultura familiar a implementação não é simples. Claudemar Mattos, assessor técnico da AS-PTA sinaliza que acessar essas políticas significa resistência e permanência nos territórios e modos de vida de agricultores e agricultoras familiares. Segundo ele, as dificuldades em relação ao PNAE estão ligadas a um forte interesse corporativo e de empresas intermediárias de fornecimento para a Alimentação Escolar. “O aumento da participação da agricultura familiar de forma direta depende de suporte de outras políticas públicas interligadas, como o acompanhamento técnico e de crédito. Além de que os critérios para emissão da DAP precisam ser ajustados a uma realidade de multifuncionalidade da agricultura”, explica.
O que acontece quando Eva vê além da uva?
Desde 2012, o professor Carlos Motta, diretor do Colégio Estadual Professor Teófilo Moreira da Costa, busca uma integração com os movimentos sociais. Por Vargem Grande ainda possuir agricultura familiar, a escola estabeleceu uma parceria para desdobrar o conteúdo curricular em práticas norteadas pela proposta agroecológica. “Assim, problemas da região são debatidos, visando possibilidades de solução, com a participação de políticos, universidades e os atores sociais do bairro; desenvolvemos atividades extraclasse (produção de vídeos e oficinas culturais) voltadas às questões do território. Construímos um Projeto Político Pedagógico (PPP) que integra conteúdos e práticas relacionadas à questão do trato sustentável das lavouras e às condições de trabalho dos agricultores e de vida das comunidades”, explica Motta. Veja mais em http://vimeo.com/121282102
Essa integração inclui visitas às hortas e pomares do bairro e nas aulas de sociologia, geografia e biologia são discutidos temas como trabalho cooperativo, o manejo ecológico de espécies e a importância do mercado local para a produção familiar. “A escola que se propõe cidadã, deve construir a consciência crítica através da realidade local. A Alimentação Escolar, composta de alimentos orgânicos da agricultura familiar, possibilita mostrar de maneira prática, que existem alternativas ao modelo promovido pelas empresas transnacionais e seus agrotóxicos, e sementes transgênicas. Assim justifica-se a ampliação do significado do aprendizado alimentar que engaja a comunidade escolar e a sociedade civil”, defende o diretor.
O Colégio Teófilo Moreira, que na década de 60 era uma escola rural, está resgatando sua história. Fruto desta parceria, um dos estudantes participou da Caravana de Agroecológica do Rio do Janeiro rumo ao III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), representando a escola. Esse encontro reuniu mais de dois mil agricultores de todas as regiões do país em Juazeiro (BA) em maio de 2014. Assim, Eva, aqui representada pelos estudantes do colégio, pôde conhecer melhor o território onde habita e pôde enxergar muito mais que a uva: o contexto social, quem são os agricultores e todos beneficiados por este trabalho, conectando os sentidos da alimentação, do refeitório à sala de aula. É uma das maneiras de ensinar a ler o mundo, antes da palavra, como sugere Freire.
Outras políticas de valorização da agricultura familiar
Além do PNAE, existem outras políticas públicas voltadas para a agricultura familiar no Brasil. A AS-PTA tem colaborado para facilitar o acesso e construir caminhos para trazer visibilidade e valorização aos agricultores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Mendonça esclarece que a região tem especificidades, como o fato de o rural ser muito próximo do urbano. Com isso, os gestores focam o desenvolvimento em outros setores como o turismo, a indústria e os grandes eventos esportivos. “A produção agrícola não é uma atividade econômica de importância para os governantes, pois não gera muitos impostos e visibilidade. Isso fez que com que essa agricultura passasse a receber cada vez menos políticas locais”. A política estadual agrícola está em outros municípios do interior fora da capital. Esse direcionamento pode ser percebido por meio do fechamento das secretarias de agricultura e das agências técnicas de extensão rural do Estado, a Emater.
Essa falta de estímulo levou o trabalhador do campo para a cidade, deixando para trás terras onde pode ser cultivada comida de verdade, livre de agrotóxicos, com geração de renda e modos de produzir que são vitais para o funcionamento da cidade. “Se o campo não planta, a cidade não janta”, diz a sabedoria de um agricultor. “Com o trabalho escasso no campo, o agricultor tem que garantir sua renda conciliando com outras atividades. Por isso, é preciso reconhecer e valorizar essa região como produtora agrícola”, sinaliza.
Essas conquistas, como a DAP e os projetos de venda para a Alimentação Escolar, fortalecem outros espaços políticos de atuação. A liderança do agricultor Francisco Caldeira, da Agrovargem na presidência do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Município do Rio (Consea-Rio) é uma delas. “Assim, os agricultores têm a possibilidade de discutir abastecimento na cidade, consolidar a agenda de eventos como o Tira Caqui (realizado há 6 anos); a Semana de Alimentação Carioca, realizada pelo Consea-Rio; a Semana de Ciência e Tecnologia; a Semana do Alimento Orgânico; e a participação no Circuito de Feiras Orgânicas da cidade e as agroecológicas. “São exemplos em que se coloca em pauta a agricultura em espaços urbanos como realidade da cidade”, destaca Mendonça.
O Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO) é mais uma alternativa de fortalecimento da agricultura familiar, promovendo ações em bases agroecológicas, em suas diversas dimensões não só técnica, mas social, ambiental, cultural e econômica. Mattos explica que o caminho possível está no próprio princípio agroecológico que é a ação sistêmica, holística e integrada.
Mattos sinaliza que essas políticas são de âmbito federal. Os estados e municípios devem regulamentá-las e adequá-las às realidades locais, cumprindo o objetivo de valorizar as agricultoras e agricultores locais. “O fortalecimento da participação social nos Conselhos de Desenvolvimento Rural Sustentável e SAN são peças chaves para a integração das políticas públicas para a agricultura”, conclui.
Mendonça concorda e acrescenta: “A AS-PTA colabora para incrementar a renda e fortalecer as capacidades e a organização dos agricultores para lutarem por seus direitos. Ao fortalecer suas capacidades eles podem discutir as políticas públicas e participarem direcionadas a eles e em espaços coletivos e sociais. É mais que uma assessoria técnica: é política, metodológica e organizacional”. Seguindo os ensinamentos de Paulo Freire, não basta Eva ver a uva. A mobilização social vem mostrando a potência de outros modos de ver, produzir, viver e comer.