“Eu não sou contra o progresso, mas apelo pro bom senso…”
Foi com a letra de Roberto Carlos que o agricultor Jeremias, do município de Magé, expressou sua insatisfação diante das dificuldades de viver da agricultura familiar, urbana e periurbana, na região metropolitana do Rio. Invisibilizada e pressionada pela urbanização nos últimos vinte anos, a agricultura fluminense resiste, recria e sobrevive aos diversos desafios impostos pelo agronegócio, pelos grandes empreendimentos, mega eventos e pelas políticas públicas que dificultam a manutenção do homem, da mulher e da juventude nesta atividade.
Neste contexto, o Projeto Alimentos Saudáveis nos Mercados Locais foi executado pela AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia entre 2013 e 2015. Inserido nos municípios de Magé, Guapimirim, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro, o projeto se propunha a dar visibilidade às agricultoras e agricultores da região metropolitana, assim como seus produtos e toda diversidade dos quintais e das roças. Além disso, o apoio aos espaços de comercialização especialmente nas feiras agroecológicas e na alimentação escolar foram incentivados junto com os parceiros locais. Estes dois anos de projeto foram marcados por intercâmbios entre agricultores, entre agricultores e consumidores, pelo fortalecimento de espaços com o protagonismo da mulher, pelo fomento para beneficiamento da produção, pelo manejo das áreas produtivas e o acompanhamento aos espaços de certificação orgânica, por muitas trocas, aprendizados, conquistas e desafios.
No dia 27 de julho, no Centro de Formação de Líderes de Nova Iguaçu, reuniram-se cerca de 150 pessoas, entre agricultores e agricultoras dos municípios inseridos no projeto, assessores técnicos da Emater e da Cooperativa Cedro, professores universitários e representantes de consumidores, e outros parceiros da AS-PTA, para a realização do seminário que celebrou a conclusão do Projeto, que contou com patrocínio do Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania. O seminário foi um momento de encontro, reconhecimentos dos atores que constroem a história da agricultura familiar na região metropolitana do Rio de Janeiro e de partilha dessas histórias, das conquistas e desafios individuais e coletivos que se fizeram presente no decorrer do projeto e também para além deste. Foi um dia rico de trocas, sabores, saberes, sorrisos e a certeza de que “o brilho das pessoas é bem maior e irá iluminar nossas manhãs”, como diz a música da Maria Rita que animou o início desse encontro.
Aos poucos as pessoas foram chegando e dando vida ao espaço. Fotos, produtos, materiais produzidos durante o projeto e relatos ajudavam a preencher o espaço com a memória e um pouco das trajetórias que ali se encontravam. Uma mesa de café da manhã com produtos das terras metropolitanas de onde vinha cada participante dava as boas vindas aos que iam chegando e ao mesmo tempo apresentava a diversidade e riqueza da agricultura familiar do Rio de Janeiro e seus protagonistas. Enquanto isso os agricultores iam montando suas barracas de feira com os seus produtos, preenchendo ainda mais o espaço com cores e aromas da roça. E foi esse clima familiar e alegre que deu o tom do dia que começava.
Após a chegada e acolhida de todos, teve início uma roda de conversa onde nos reunimos para ouvir os agricultores, suas impressões, os desafios e conquistas enfrentados nos seus territórios nesses últimos anos. Entre os diversos relatos, algumas semelhanças sobressaíram, como por exemplo, a certeza de que para avançarmos na construção da Agroecologia e superar os problemas colocados pelo agronegócio e pela urbanização do nosso território, a união das pessoas é fundamental, pois como colocou Maridy, agricultora e militante de Magé, “quebrar um galho sozinho é muito fácil, mas quebrar vários gravetos juntos é bem mais difícil!”. Francisco Caldeira, agricultor e presidente do Consea Rio, enfatizou a importância da participação dos agricultores na construção das políticas públicas e espaços de tomada de decisão. Jorge Cardia, presidente da Agrovargem e Renato Baldez, coordenador da Feira da Roça de Nova Iguaçu, trouxeram em suas falas a preocupação com a preservação ambiental e a certeza de que agricultura com base na ecologia, feita com amor e responsabilidade, pode contribuir muito nesse processo. Os relatos foram construindo um pouco da realidade atual da agricultura familiar – uma agricultura que se reinventa e resiste diante de muitos desafios, apresentando como principal combustível de luta e resistência o auto-reconhecimento da importância de seu papel na sociedade.
Após o almoço, uma mesa redonda proporcionou a abordagem dos principais fatos históricos que interferiram positiva ou negativamente nas características da agricultura familiar da região metropolitana, em especial da Baixada Fluminense e do Maciço da Pedra Branca. O Delegado Federal do Desenvolvimento Agrário (MDA-DFDA/RJ), José Octávio, destacou que o avanço da agroecologia é fortemente contido por causa das consequências da Revolução Verde no campo, e que ainda há fortes resistências no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e no próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário. José Octávio ressaltou como o maior problema da agricultura familiar fluminense é a invisibilidade, e que as feiras locais são estratégias interessantes para proporcionar a valorização das agricultoras e agricultores no cenário da gestão pública, inclusive.
Mariella Rosa, agrônoma da Emater de Nova Iguaçu, abordou a história da agricultura na Baixada Fluminense. Fatos como a ocupação do entorno da Baía de Guanabara pelos índios Tupinambás devido aos solos de aluvião (mais férteis) e boa disponibilidade de água, favorecendo o cultivo da mandioca. Importantes engenhos de açúcar e de farinha deram origem e fortaleceram grandes fazendas e contribuíram com a formação das vilas e povoados que proporcionaram o surgimento de outros cultivos, como feijão, arroz, milho e o aumento do cultivo da mandioca. Outros ciclos agrícolas subsequentes como o da laranja fizeram com que a população rural aumentasse de 30 mil para 120 mil em 20 anos. Mariella destaca que a decadência da lavoura da laranja marca o início dos conflitos por terra na região.
Hoje, na Baixada Fluminense são 5.500 estabelecimento rurais, boa parte deles em assentamento rurais de reforma agrária. As áreas de agricultura na região metropolitana servem também de um “colchão de amortecimento” sobre as áreas de remanescentes de Mata Atlântica, mas que vem sendo entraves devido a política de “desagriculturação” do estado do Rio de Janeiro, em benefício da expansão imobiliária e das grandes obras de infraestrutura, que consideram as áreas rurais como vazios que precisam ser ocupados. A Doutora em Sociologia e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Annelise Fernandez levou para o debate a semelhança dos processos que levam a desterritorialização dos agricultores no Maciço da Pedra Branca, na Zona Oeste carioca. Fernandez destaca que na região também existiu o mesmo processo de resistência das Ligas Camponesas contra os processos de urbanização, e ratificou a política atual do estado e do poder econômico que favorece a especulação imobiliária, a expansão urbana e a invisibilização da agricultura, seja ela nos quintais ou nas áreas de cultivo de caqui, banana e aipim existentes no Maciço. Annelise concluiu dizendo que as diversas agriculturas existentes na região metropolitana têm fortes características camponesas e isto deve ser o elo para consolidar a luta de representações, com a atuação em rede a favor da agricultura nos espaços urbanos e periurbanos.
Concluindo os debates, os participantes concordaram que resgatar a história permite resistir e contrapor a invisibilidade da agricultura, sendo a região metropolitana um território de resistência e mobilização política.
Ao final do dia o encerramento se deu numa grande ciranda com cantigas e agradecimentos representando a união de um povo que é a força desse povo. Que juntos, agricultores, técnicos, instituições, governo e consumidores podem enfrentar os desafios que se apresentam.
Para o Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA este projeto pôde reafirmar e fortalecer o compromisso da instituição em dar visibilidade às histórias de vida dos agricultores e agricultoras, apoiar a geração de renda por caminhos mais igualitários e com foco nas(os) protagonistas do desenvolvimento de seus territórios, os agricultores familiares que resistem e persistem na produção de alimentos saudáveis em mercados locais, de produtos dessa gente!