O alimento que vem da natureza tem a natureza de nos transformar. A comida cria alternativas concretas de convivências plurais em realidades urbanas distintas, marcadas pela violência e a violação de direitos à cidade e ao alimento livre de agrotóxicos e desigualdades no acesso e na qualidade. Essas vias têm sido germinadas nas comunidades e favelas do Rio de Janeiro. O casal Ana Santos e Marcelo Correia decidiu experimentar outras formas de produzir e comer na Serra da Misericórdia, entre as baixadas de Inhaúma e Irajá, Zona Norte do Rio de Janeiro.
A Serra se estende por 26 bairros, como Penha e Olaria e a comunidade da Vila Cruzeiro, onde Ana e Marcelo se engajaram em projetos de recuperação de áreas verdes. Em 2011, eles participaram do grupo que fundou o Centro de Educação Multicultural (CEM). A organização atua com intervenção socioambiental e cultural por meio da educação. Até 2017 o CEM ocupava um prédio no morro do Grotão, situado no Complexo da Penha.
A articulação do CEM em redes locais ampliou o foco para a produção agroecológica de alimentos e a construção de um circuito para facilitar o acesso aos moradores do Complexo da Penha. Inicialmente, Ana e Marcelo começaram a cultivar a chaya, conhecida como “espinafre de árvore”, por sugestão do ativista Luiz Poeta, fundador do grupo Verdejar Socioambiental, vizinho do Complexo. Em 2014, o casal começou a apresentar a hortaliça, na Feira Orgânica de Olaria, que acontece aos sábados na Praça Marechal Maurício Cardoso. Essa foi a brecha para puxar as conversas sobre vida, saúde e as tradições alimentares. Daí em diante, o rumo da prosa era mostrar o valor de comer alimentos cultivados localmente e sem o uso de agrotóxicos.
Em 2015, a dupla conheceu a agroecologia, por intermédio da Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede Cau). Nesse mesmo ano, a organização obteve a certificação de produtores orgânicos, conferido pelo Sistema Participativo de Garantia (SPG), devido à articulação com a Rede Cau e parceria com a Associação dos Produtores Biológicos do Rio de Janeiro (Abio). Ana explica que, atuando em rede, eles começaram a entender as dificuldades de acesso à comida saudável, principalmente na favela. “Quando a gente trabalha e se envolve em redes, percebemos o que é possível. E o sonho deixa de ser só seu para impactar o lugar onde você vive”, completa.
Com esse passo, o CEM integrou a feira de Olaria, comercializando seus alimentos e de parceiros, como a banana e o aipim da AgroVargem (Associação dos Agricultores Familiares de Vargem Grande). Na Rede Cau, Ana aprendeu que a comida pode ajudar a falar sobre meio ambiente com as crianças de uma maneira mais próxima: “ao invés de dizer para não cortar as árvores, vamos plantar uma goiabeira, fazer sacolé, pegar mamão verde e fazer doce”, conta. Nessa caminhada, chegaram ao Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do município do Rio (Consea-Rio), representando o segmento de movimento urbano. Assim, se engajaram em diversas frentes de trabalho no campo da agroecologia para aprender e partilhar.
Comida de verdade: possibilidades no Complexo da Penha
A jornada de Ana e Marcelo mostra que existem outras vias para se chegar a sistemas alimentares saudáveis com acesso justo, combatendo a desigualdade social, financeira e geográfica. “Passamos a desenvolver um diálogo possível sobre o abastecimento da localidade por meio da agricultura urbana com práticas agroecológicas, que já fazem parte da tradição dos moradores”.
Ana compreendeu que a agroecologia estava no seu dia a dia, nos hábitos, no sentimento e na resiliência da agricultura praticada nos quintais e sítios da cidade. Foi quando chegou à conclusão: “Eu faço agroecologia. A alimentação foi uma forma bacana de permear essa prática, de chegar de forma mais sensível”, afirma. Na feira de Olaria esse aprendizado é constante: “a gente sente um cheiro e lembra do passado. Isso é agroecologia. Queremos gerar os burburinhos, fofoca a partir da agricultura urbana”.
O casal seguiu tecendo as redes, colocando novos fios na trama. Em parceria com a AS-PTA, articularam o Arranjo Local da Penha. O objetivo é promover a agricultura urbana, a alimentação saudável e as culturas tradicionais locais. A ideia é pensar coletivamente estratégias e desenvolver ações diversas, que impulsionem o debate sobre alimentação, saúde e agroecologia no território.
Para isso, o CEM se aproximou das organizações e instituições do entorno, como a Clínica da Família Felipe Cardoso, o Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI), o parque Ari Barroso, a Arena Dicró, o Centro de Referência e Assistência Social (Cras) Carlos Drummond de Andrade, a Escola Municipal Bernardo de Vasconcelos, a Escola Técnica Estadual Juscelino Kubitschek e a rede comunitária da Penha Tamo Junto.
Uma estratégia inovadora desse arranjo local foi levar a “xepa” da feira de Olaria para o Grotão. Ao invés da comunidade descer à feira, foi a feira que chegou à comunidade com hortaliças, frutas e verduras orgânicas e agroecológicas em ótimo estado e de qualidade. Os alimentos são vendidos a preços acessíveis, numa média de R$ 0,50 e, em alguns casos, são doados aos moradores.
Do contato com o alimento agroecológico, os moradores reconheceram que esses sabores podem ser encontrados na redondeza. “É um reencontro com as tradições. Muitos dizem que já não encontram mais nas feiras alguns tipos de alimentos, como é caso da mostarda. Outros, gostam de conhecer as novidades, como a alface roxa”, lembra Marcelo. O CEM aproximou uma realidade que parecia distante e inacessível, semeando a agroecologia na cidade a partir do que já existe de recursos e conhecimentos na localidade. Essa circularidade gera vínculo com o território, identificação com a cultura alimentar local e visibilidade para a produção de alimentos sem agrotóxicos.
Os arranjos podem germinar os espaços de convivência, onde a comida de verdade faz parte da realidade local. Os frutos começam a nascer entre vasos de alfavaca, canteiros com salsa, garrafas com pimentas e panelas velhas com boldo. Quando se está conectado em rede, entende-se a potência de um gesto cotidiano de plantar e cuidar da terra para obter uma couve, uma cebolinha, uma salsa. O pé de manga carregada no meio da rua, a jaca que prospera num sítio da proximidade e a feira agroecológica da região podem ser reapropriadas e ressignificadas pela própria comunidade. Tecem suas redes de sentidos e afetos, compartilhando saberes e a consciência da ligação indissociável entre cultura, biodiversidade e território.
Para Ana, a ideia de alimentação saudável está ligada às relações que a comida estabelece com o local e as pessoas. É um olhar enraizado com as culturas e os conhecimentos populares. Nesse sentido, o saudável não é o mais caro, como se supõe. “Podemos juntar o arroz e o feijão com os legumes e as frutas, procurar em volta e identificar o que é possível, dentro do nosso meio. Esses são valores da agroecologia. Não adianta adotar um modelo alimentar que não faz parte da cultura de onde estamos porque aí deixa de ser saudável, pois não nos pertence, temos que buscar fora.”, compartilha Ana. Com essa lógica, deve-se incentivar e valorizar refeições que fazem parte da memória e da história, como a batata doce e o aipim no café da manhã, a abóbora com carne seca e o frango com quiabo. Marcelo completa dizendo que o trabalho do CEM é “também quebrar muros invisíveis, que estão na mente das pessoas, um lugar muito difícil de entrar por conta dos medos e preconceitos. São passos lentos e firmes”.
Novos rumos: potencializar outros espaços de convivência
Em 2018, o trabalho do CEM segue com o Arranjo local da Penha. A produção de alimentos será deslocada para Vargem Grande, Zona Oeste da Cidade, onde eles atuam em parceria com a AgroVargem e o coletivo Hortelã. A perspectiva é construir uma cozinha comunitária para desenvolvimento de processados agroecológicos, com banana, caqui, abacate e ervas, que tem produção abundante na região.
É seguir o ciclo de transformação da comida para alimentar as redes, as culturas, as localidades. Agora, é hora de semear em outros territórios. “O amor está vivo. Vamos potencializar novos espaço de integração com mais elos”, declara Ana. Em uma realidade hostil, violenta, opressiva e desigual, Marcelo conclui que “temos que ser o contraponto e a agroecologia é a linguagem”.