No dia Nacional da Consciência Negra, um encontro reuniu, no Sítio Lagoa do Mato, município de Remígio, cerca de 50 agricultoras do Polo da Borborema no lançamento municipal da décima edição da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. A Marcha acontece todos os anos no dia 08 de março e é organizada pelo Polo da Borborema e pela AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.
Em 2019, ano comemorativo de sua primeira década, a Marcha retorna ao município onde surgiu, Remígio-PB, onde já em 2008 aconteceu a I Marcha das Mulheres, à época ainda como um evento municipal que reuniu cerca de 260 agricultoras. A partir de 2010, o evento passou a ter um caráter e uma mobilização regional, com 900 mulheres e tem aumentado o seu público a cada ano, chegando a em 2018, reunir mais de 5 mil agricultoras não só da Borborema, mas de outras partes do estado e do Brasil, em São Sebastião de Lagoa de Roça-PB.
Não foi por acaso que o lançamento municipal aconteceu no Dia Nacional da Consciência Negra. A Marcha de 2019 terá como tema mobilizador o racismo e a vida das mulheres negras. Iniciando o dia, dispostas em círculo, as mulheres, em sua maioria negras, banharam suas mãos em uma água perfumada com plantas medicinais e essências perfumadas e foram convidadas a trazer para a roda a memória de seus antepassados e seus ensinamentos que seguem vivos e continuam a ser repassados para filhos e netos. Muitas trouxeram para o momento, as histórias de suas avós e bisavós que chegaram a trabalhar como escravas nas fazendas do território.
A programação teve início com a leitura de um depoimento sobre a transição capilar de uma jovem negra e sua jornada em busca da aceitação de sua beleza natural. Em seguida, várias mulheres se colocaram, dando seus depoimentos de dor e sofrimento e contando seus caminhos de superação diante do racismo que sentiram na pele.
Histórias como a de Maria do Socorro dos Santos Belarmino, de 59 anos, moradora da Comunidade Macaquinhos, que se emocionou ao lembrar das dificuldades que enfrentou para poder estudar, em meio à pobreza de sua família e aos preconceitos por parte dos colegas de sala: “Sofri muita humilhação por aqueles que eram brancos e tinham mais comida que eu. Hoje com as graças de Deus consegui criar meus três filhos e dar a eles o que eu não tive”.
As mulheres deram vários depoimentos de situações de racismo sofridas na escola, na comunidade e em trabalhos que realizaram, muitas como empregadas domésticas, em que eram humilhadas e discriminadas por seus patrões. Dona Josefa Miranda, conhecida como ‘Mima’, do Sítio Camará, conta que passou por uma experiência diferente da vivida pela maioria quando trabalhou em São Paulo, em que eram os seus patrões que a ajudavam a enfrentar o preconceito: “Um dia estava com eles em um restaurante e quando levantei para ir ao banheiro, um segurança veio perguntar ‘o que essa negra queria ali’. Meu patrão veio e disse ‘essa negra tem nome e está na nossa mesa’. E depois me disse, ‘nunca baixe sua cabeça para essas pessoas, levante sua cabeça e vá em frente’, acho que isso fortalece a gente”, conta Mima. “Eu digo para a minha irmã, não se importe se a gente entrar numa loja e vierem atrás da gente, nós podemos fazer tudo que qualquer um pode, somos gente igual a eles”, completa.
Valéria da Silva Félix, é agente comunitária de saúde e estudante de Serviço Social, a jovem de Remígio contou que há três anos, pela primeira vez abandonou o alisamento que fazia desde os 12 para assumir o seu volumoso cabelo crespo: “Quanto mais a pele é escura, quanto mais o cabelo é crespo, maior é o preconceito. Muitas vezes não precisa nem falar nada, só o olhar das pessoas já denuncia, a gente sente. E não devemos nos sentir culpadas por querer alisar, porque isso foi ensinado para a gente, que o nosso cabelo era feio, que só o cabelo liso que era bonito. Agora a gente está desconstruindo isso e precisamos educar nossas crianças para esse mundo cruel, vamos amar e nos dar as mãos, juntas somos mais fortes”.
As mulheres também conversaram sobre a violência contra a mulher, que atinge de forma especial as negras. Valéria citou os dados do Mapa da Violência de 2015, que mostra que o número de casos de homicídios de mulheres negras aumentou 54%, enquanto que o número de homicídios de mulheres brancas caiu 10%.
Dando continuidade à programação, no período da tarde, Roselita Vitor, da Coordenação do Polo da Borborema e liderança do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio, relembrou momentos da trajetória da população negra no Brasil desde a constituição de seu povo e seus quase 400 anos de escravidão.
Alguns pontos marcantes foram: a Lei da Educação de 1837, que determinava que negros e negras não podiam ir à escola; a Lei das Terras de 1850, que proibia a população negra de possuir terras; a Lei do ‘Ventre Livre’ de 1871, que concedia alforria aos negros nascidos a partir daquele ano; A Lei dos Sexagenário que tornava libertos os negros que alcançassem os 60 anos e a Lei Áurea, com a abolição oficial da escravatura. “A gente percebe que algumas dessas medidas eram apenas de faz de conta, pois sabemos que, por exemplo, não tem como existir ventre livre, se os filhos continuam vivendo com os pais escravos nas fazendas, da mesma forma, sabendo da vida de sofrimento que o negro tinha, dificilmente ele iria viver até os 60 anos e conquistar a liberdade”, comentou Roselita.
Seguindo com a linha do tempo, chegou-se até os anos mais recentes, como a Constituição de 1988 que torna o racismo crime, e os anos 2000 quando o país dá seus primeiros passos para pensar políticas públicas afirmativas no sentido de uma reparação ao crime que significou a escravidão contra a população negra. Em 2003 a Lei 10.639 que institui o debate sobre a cultura africana nas escolas, em 2009 a Política Nacional de Saúde para a população negra e o reconhecimento das áreas remanescentes de quilombos. Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial, em 2012 a criação de cotas nas Universidades e a Emenda Constitucional que equipara os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos outros trabalhadores com carteira assinada.
Adriana Galvão Freire, assessora técnica da AS-PTA comentou sobre a importância de conhecermos a história para a garantia dos direitos conquistados: “Precisamos ter consciência do nosso processo histórico para saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Não podemos aceitar retrocessos naquilo que já foi conquistado”.
Finalizando o evento, foi feito o convite a todas as mulheres presentes para o evento de lançamento regional da Marcha, que acontecerá na próxima sexta-feira, 23 de novembro, no Centro de Remígio, a partir das 8h, durante a Feira Agroecológica do município. “Estará presente uma representação dos outros municípios que fazem parte do Polo, além de nós mulheres de Remígio, as feirantes e as agricultoras do município em um momento festivo, onde daremos início ao nosso processo de mobilização e de encontros nas comunidades com as outras mulheres que não puderam estar aqui”, explicou Giselda Bezerra, do STR Remígio. “Se o que fizemos aqui hoje ficar só com a gente, não vamos conseguir engrossar o nosso caldo para a marcha, precisamos ir em busca das outras mulheres em cada comunidade”, finalizou Roselita.