“A melhoria da renda e da autonomia das mulheres rurais está relacionada diretamente com as Casas de Sementes, não tem nem como dizer outra coisa”, essa frase de uma agricultora familiar cearense da Rede de Intercâmbio de Sementes (RIS) anuncia a vitalidade das sementes crioulas, especialmente daquelas armazenadas coletivamente em Casas e Bancos de Sementes Comunitários (BSC). Essas sementes de nomes muitos -“da paixão”, “da vida”, “da partilha”, “da resistência”, “da gente”, “adaptadas”, “da luta”, “da liberdade”-, ao se encontrarem com a terra fazem nascer uma agricultura soberana, cheia de agroecologia, que se espalha entre as casas, sonhos e projetos das agricultoras, agricultores e dos povos das águas e das florestas.
As sementes crioulas carregam memórias, como nos conta a agricultora baiana da Rede de Produtoras da Bahia, “se eu fosse te contar toda história que tem nessa semente de melancia que já está na minha família há mais de 50 anos…”, e também amor, como bem nos lembra Seu Dodô com as “sementes da paixão” da Rede de Sementes da Articulação do Semiárido Paraibano (ASA Paraíba). Sementes crioulas envolvem ainda os animais, “a galinha caipira”, “a galinha de capoeira”. É nessa mistura de cultura, cuidado e biodiversidade, que encontramos um dos principais componentes de preservação da natureza, da defesa dos territórios e das formas de vida.
Os anúncios que brotam das sementes crioulas carregam também denúncias, por isso as ações e nomenclaturas não deixam de reafirmar sua essência de luta e de resistência. As populações do campo, das florestas e das águas em defesa de seus territórios bradam contra a concentração de terras, a contaminação das suas sementes pelas variedades transgênicas, a erosão da diversidade genética e cultural e a intoxicação das pessoas e do ambiente pelo uso de agrotóxicos.
No Brasil apenas a área plantada de soja, cana, milho e eucalipto, principais culturas do agronegócio, ocupa mais de 76 milhões de hectares. Aproximadamente 50,2 milhões dessas terras são cultivados com plantas transgênicas, especialmente milho, soja e algodão, resistentes a vários tipos de agrotóxicos. Essas condições fazem do nosso país “o segundo maior produtor de soja do mundo e o quarto de milho, não por coincidência, ocupa o 2º lugar a nível mundial em área plantada com Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), o que corresponde a 26% da área mundial, segundo dados do Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia (ISAAA)”. (GRAIN)
O agronegócio, aliado a grandes corporações como a Bayer/Monsanto, que controlam tanto os OGMs quanto os agrotóxicos, exerce uma enorme pressão sobre a terra, os territórios e o direito de plantar e se alimentar de forma saudável. Apesar disso e de tantos outros desafios, há muitos faróis acesos iluminando os caminhos agroecológicos, esses pontos de luz e inspiração nos dão coragem para seguirmos adiante e acreditar que outros mundos são possíveis.
Feiras, histórias e intercâmbios da Rede Sementes da Agroecologia (ReSA)
Na matéria desse mês o farol que nos ilumina é a Rede Sementes da Agroecologia (ReSA) do Paraná criada em 2015. A ReSa é inspirada na Campanha “Patrimônio dos povos a serviço da humanidade”, lançada em 2003 pela Via Campesina no Fórum Social Mundial de Porto Alegre (RS). Entre os objetivos da Campanha estavam ações de resgate das sementes crioulas, como a promoção de festas, feiras, identificação de guardiãs e guardiões detentoras(es) de conhecimentos sobre as sementes, além de estratégias para impedir a disseminação de variedades transgênicas e o controle por empresas transnacionais da produção e comercialização de sementes.
A Rede envolve 25 organizações como movimentos sociais, sindicatos, cooperativas, ONGS e órgão públicos, além de professoras(es), estudantes, guardiãs e guardiões de sementes. É um espaço de troca de saberes, de articulação de ações voltadas à produção, à multiplicação e à preservação de sementes crioulas, e, ao mesmo tempo, de resistência às ameaças biológicas, químicas e econômicas. A luta se dá também no âmbito jurídico e legislativo, contra políticas estatais que prejudicam as práticas ancestrais associadas às sementes e a soberania dos povos do campo, das águas e das floretas. A ReSa luta para assegurar aos povos o livre acesso às sementes crioulas, enquanto um direito humano de produção saudável e reprodução social.
Embora a oficialização da ReSa se dê em 2015, foi em 1999 que essa sementinha começou a brotar. Os primeiros movimentos aconteceram em um encontro de mulheres agricultoras no município de União da Vitória-PR, que em parceria com a Prefeitura do município, o Sindicato dos(as) Trabalhadores(as) Rurais e AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia construíram ainda em 1999 a 1ª Troca de Sementes Crioulas. Durante o evento foram resgatadas mais de 100 variedades de sementes de diversas espécies como milho, feijão, centeio, trigo, arroz, batata, batata-doce, amendoim, hortaliças e animais como cabritos e galinhas.
Essa primeira iniciativa passou a iluminar várias outras e, em diferentes municípios paranaenses, agricultoras, agricultores e parcerias iniciaram uma série de feiras. De 1999 para cá foram realizadas 77 Feiras Municipais em 14 municípios!
No ano 2000 a necessidade de integrar os diferentes municípios e promover maiores intercâmbios de sementes e de conhecimentos levou a organização da 1ª Feira Regional, que contou com a participação de todos os municípios do Centro Sul do Paraná. Nas versões que se seguiram a Feira passou a envolver também o Norte Catarinense.
Em 2019 é a vez da 17ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade. A Feira aconteceu no município de Rebouças-PR, dentre as(os) organizadoras(es) estavam o Grupo Coletivo Triunfo que participa da ReSA e a AS-PTA. A 17ª edição foi apoiada pelo poder público por meio da Prefeitura de Rebouças, especialmente pelas Secretarias de Agricultura, Educação, Cultura e Obras.
Entre os dias 16 e 17 de agosto aproximadamente quatro mil pessoas circularam pela Feira. As(os) participantes vieram de caravanas de 60 municípios do Paraná e de 15 de Santa Catarina. Estavam presentes ainda pessoas de São Paulo, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Paraíba.
A Feira contou com mais de 100 expositoras e expositores da agricultura familiar, que organizaram suas barracas com sementes crioulas, alimentos, mudas, flores e artesanatos. O momento é de comercialização, troca e muito aprendizado compartilhado, é o encontro de guardiãs e guardiões da biodiversidade! A grande circulação de pessoas e a enorme variedade de sementes caracterizaram a 17ª Feira como a maior já realizada no Brasil.
A programação teve novidades, nesse ano foram oferecidos Minicursos que abordaram temáticas como – manejo ecológico de solos, sementes crioulas, erva mate e comunicação popular. Além disso, durante todo o encontro aconteceram diversas Rodas de Conversa sobre produção agroecológica e a preservação do patrimônio cultural e genético das sementes crioulas.
O dia 16 contou com uma grande participação de escolas municipais, as(os) estudantes puderam ver de pertinho a riqueza da biodiversidade da agricultura familiar, conhecendo ainda histórias, práticas e experiências ancestrais que as sementes crioulas guardam. Durante a noite foi realizado o Seminário “O que você sabe sobre a sua comida?”, com a participação de Paulo Perna (Universidade Federal do Paraná – UFPR), Yumie Murakami (Secretaria de Saúde do estado do Paraná) e Cintia Gris (Centro de Tecnologias Alternativas Populares – CETAP).
No dia 17, a abertura foi formalizada por uma mesa diversa, participaram desse momento representantes do poder público municipal e estadual, movimentos sociais, cooperativas, quilombolas, indígenas, benzedeiras e guardiãs e guardiões das sementes crioulas. Às autoridades presentes foram entregues duas cartas em nome da 17ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade denunciando políticas e ações que têm prejudicado a manutenção das variedades crioulas como, por exemplo, a contaminação por sementes transgênicas. As cartas serão protocoladas na Assembleia Legislativa do Paraná para que se tornem documentos oficiais de subsídio aos debates pela defesa dos povos do campo, das florestas e da água e do direito de guardar, plantar e cuidar das sementes crioulas.
A Feira Regional encerra mais uma edição, mas segue viva no cotidiano dos territórios, nos quais, mais uma vez, as sementes trocadas, comercializadas e todo o conhecimento compartilhado fazem nascer a resistência, os alimentos saudáveis, a preservação cultural e da biodiversidade.
Helena Lopes em parceria com André Jantara, AS-PTA