Em novembro e dezembro 2019, a inauguração de cinco unidades da rede de Quitandas da Borborema, em Solânea, Arara, Esperança, Remígio e Queimadas, foi providencial diante do que aconteceu meses depois em todo o mundo. Não sabiam os envolvidos neste empreendimento que os pontos de venda fixos, que funcionam de segunda a sábado, seriam essenciais tanto para quem cultiva alimentos na região, quanto para quem os consomem.
Cerca de três meses depois, em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado de pandemia devido ao rápido alastramento de um novo vírus, causador de infecções respiratórias graves, em vários países do mundo. O Brasil foi um deles. Rapidamente, os canais de comercialização dos alimentos da agricultura familiar agroecológica foram afetados. Alguns municípios decretaram o fechamento das feiras e, em outros, estes espaços precisaram se ajustar a critérios de segurança sanitária para seguir funcionando.
No território da Borborema, onde há uma rede de 12 feiras agroecológicas em 13 municípios, alguns desses espaços foram suspensos por algum período. As famílias agricultoras que vendiam seus produtos ficaram, de uma hora pra outra, sem poder contar mais com este canal de comercialização. E os clientes assíduos das feiras agroecológicas ficariam sem seus fornecedores de alimento saudável?
Com o fechamento das escolas, a alimentação servida nos dias de aula também deixou de ser distribuída e os fornecedores – os/as mesmos/as agricultores/as das feiras – viram outro mercado fechar as portas. Mesmo com a criação de uma nova lei para que os alimentos sigam sendo oferecidos para os estudantes que estão em casa, poucos municípios de todo o país adquirem os produtos in natura para pôr nas cestas distribuídas às famílias.
Foi justamente isso o que aconteceu com a família de Fátima Melo, 27 anos, que mora no Sítio Lajes, na zona rural de Solânea. Sem a venda das hortaliças para as escolas, ela e o esposo Edivaldo dos Santos viram o orçamento mensal despencar 600 reais. “Não perdemos totalmente a nossa produção e a renda porque surgiu a ação de distribuição de cestas básicas com financiamento da Fundação Banco do Brasil e isso deu uma força grande. Também demos uma diminuída no plantio”, conta Fátima.
Além do mercado institucional do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a produção deles era escoada para duas feiras agroecológicas – a do município em que vivem e a de Casserengue – e para a feira livre de Casserengue, onde o marido tem um ponto de venda. A feira de Solânea chegou a parar durante duas semanas logo no início da chegada do vírus na região. As duas de Casserengue passaram mais de dois meses fechadas e reabriram há duas ou três semanas.
Fátima, que é monitora EcoSol na Quitanda de Solânea, com medo do vírus, decidiu fechar também este espaço. Mas, a suspensão das vendas só durou oito dias. Logo que viu a situação geral de perda de renda para a sua família e para outras tantas, retomou o funcionamento da Quitanda inaugurada em novembro. Com o isolamento social, com a queda da circulação das pessoas nas ruas, Fátima instituiu a venda com entrega em domicílio, que no período mais crítico da contaminação no município, chegou a representar 90% das vendas. Atualmente, o sistema de delivery é responsável por metade das vendas mensais. Grande parte das encomendas são feitas por quem mora em Bananeiras, um município próximo com uma população urbana com renda mais alta.
Segundo Fátima, a Quitanda tem um papel muito importante na região porque funciona todos os dias da semana, só fecha aos domingos, com uma oferta de alimentos de verdade, livres de venenos. “Tem ajudado muito, muito não só a mim, mas aos agricultores/as. É um trabalho muito gratificante porque a gente sabe que está levando produtos saudáveis para os consumidores. E a gente vem conseguindo superar as dificuldades.”
Sobre o papel das Quitandas da Borborema, Gizelda Lopes, reforça tudo o que Fátima falou. A coordenadora política do Polo da Borborema – uma articulação de 13 sindicatos de trabalhadores rurais no território de mesmo nome – ainda acrescenta: “No tempo de produção, a família come uma parte e vende o excedente. Como um espaço fixo para escoar os produtos, principalmente, neste tempo de pandemia, as Quitandas têm livrado os/as produtores/as dos atravessadores”.
Gizelda também destaca a solidariedade entre campo e cidade que Fátima pontuou. Nos municípios, estes espaços e as feiras semanais são lugares que oferecem comidas sem agrotóxicos a preços mais acessíveis. E por falar em preços, os valores praticados nas Quitandas são iguais aos alimentos não orgânicos ou até menores.
Não é à toa que as vendas de todas as Quitandas em funcionamento, nestes meses de pandemia, cresceram bastante. “As Quitandas da Borborema vieram no tempo certo. Em todas as unidades, de janeiro a fevereiro o ritmo de venda era um. Em meados de março até agora, as vendas subiram, mesmo algumas quitandas funcionando em apenas um turno. As pessoas buscam por limão, mel, frutas, verduras”, acrescenta a vice presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio.
Além dos produtos in natura (frutas, hortaliças, raízes, vegetais, grãos e sementes), as Quitandas oferecem uma variedade de alimentos beneficiados, como doces, bolos, polpas de frutas, fubá, xerém, mungunzá, entre outros.
Gizelda conta que a rede de Quitandas é fruto do fortalecimento do trabalho com a agroecologia desenvolvido na região há cerca de 26 anos. “Esse processo ampliou as propriedades rurais, diversificou a produção, possibilitou que as famílias fiquem no campo com mais sustentabilidade, autonomia e melhor infraestrutura. Chegaram as tecnologias de primeira e segunda águas, a silagem. Houve a valorização do trabalho no arredor de casa. As mulheres ampliaram o beneficiamento dos produtos. E chegou a pergunta: O que fazer com o excedente da produção? Foi aí que as redes de agricultores e agricultoras agroecológicos criaram as feiras e, agora, chegaram as Quitandas da Borborema”, contextualiza.
Início da rede de Quitandas – As Quitandas da Borborema são fruto do debate sobre a necessidade de ampliar e diversificar os circuitos comerciais de comercialização agroecológica com a estruturação de uma rede de pontos fixos. As cinco unidades municipais da Quitanda da Borborema e a unidade regional, que teve sua inauguração adiada devido à pandemia, foi possível por meio da elaboração e realização de um projeto submetido ao Ecoforte – Programa de Fortalecimento e Ampliação das Redes de Agroecologia, Extrativismo e Produção Orgânica Nº 17.240. O Programa Ecoforte é desenvolvido em parceria com a Fundação Banco do Brasil – FBB, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e o Governo Federal.
Mas antes mesmo da celebração do projeto, a expectativa e o debate sobre a estruturação de pontos fixos foi estimulando a construção de iniciativas locais. A primeira iniciativa aconteceu meses antes da aprovação do Programa Ecoforte. “Ela é fruto da motivação de alguns feirantes que foram conhecer a experiência do ponto fixo ‘Tenda Agroecológica’ no município de Boqueirão, na microrregião dos Cariris Velhos da Paraíba, onde há uma experiência similar”, comenta Ednaldo Rodrigues, assessor técnico da AS-PTA, organização de assessoria à agricultura familiar que atua no território da Borborema num parceria muito estreita com o Polo da Borborema e com a Associação EcoBorborema, criada para viabilizar os canais de comercialização dos produtos agroecológicos que abundam das propriedades das famílias agricultoras em transição agroecológica.
Em Arara, o ponto fixo deles fez um ano justo no mês que foi decretada a pandemia, em março passado. Lá, as/os agricultores tiveram apoio, além da AS-PTA e do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do município, da igreja católica que dispôs de um espaço onde foi instalada a primeira Quitanda agroecológica do território da Borborema. E quem diria que, em menos de um ano depois, o empreendimento se alastraria para mais quatro municípios. E ainda há a previsão de inauguração da Quitanda da Borborema regional, que já está funcionando como entreposto para circulação e diversificação dos produtos da agricultura familiar para os demais pontos fixos.
“Na unidade regional, a jovem Denise Ribeiro dá suporte a todas as Quitandas municipais e atua na divulgação da iniciativa nas redes sociais e no suporte operacional”, comenta Ednaldo, contando que estes canais de comunicação têm sido muito importantes para impulsionar as vendas nas Quitandas Agroecológicas.
Além das unidades fixas, também está previsto no projeto, uma quitanda móvel, no estilo dos atuais “food trucks”, que deve circular durante eventos em Campina Grande e região. Em cada uma das unidades, há um jovem EcoSol com bolsa paga pelo projeto para fazer promoção, venda dos produtos e prestação de contas. O salário deste bolsista e mais os custos fixos das Quitandas são completados com uma porcentagem de 20% da receita mensal.
Impacto do isolamento social nas Quitandas Agroecológicas – Apesar de estarem sendo pontos importantes para a oferta de alimentos saudáveis neste tempo de pandemia, duas unidades sofreram impactos neste tempo, a dos municípios de Queimadas e Esperança. Esta última, voltou a funcionar há cerca de cinco semanas. A de Queimadas segue fechada, mas logo será reaberta.
Ednaldo explica que o principal motivo para o fechamento delas foi o fato de a estrutura estar dentro dos Sindicatos Rurais dos municípios, que por serem estabelecimento de atendimento ao público tiveram restrição no seu funcionamento a partir de decretos municipais.
“Mesmo com todas as mudanças, as Quitandas da Borborema ampliaram o número de famílias agricultoras fornecedoras de alimentos saudáveis, principalmente jovens e mulheres, que tiveram a oportunidade de garantir a renda nesse momento tão difícil que estamos vivenciando”, afirma Ednaldo.
Em breve, todas as unidades municipais das Quitandas da Borborema estarão abertas, funcionando a pleno vapor, favorecendo a compra e consumo de alimentos saudáveis vindos direto da propriedade da família agricultora do próprio município ou de outro próximo. Afinal de contas, como o inverno no território da Borborema foi de chuvas boas e bem distribuídas, os roçados e os quintais abundam de alimentos de verdade para reforçar a saúde de quem os consumir.
E, só para encerrar com chave de ouro este texto, ainda tem outro elemento que potencializa o valor das Quitandas da Borborema. Elas são o que se chama de “circuito curto de comercialização”, ou seja, favorece de uma proximidade entre produtores e consumidores e traz muitos benefícios para quem produz, como para quem consome, por ter acesso a alimentos frescos, e também ao meio ambiente, por não estar implicada na venda uma logística complexa, com grandes frotas para o transporte e elevado consumo de combustível. E já foi evidenciado muitas vezes que o percurso longo entre produtores e consumidores – as cadeias longas de comercialização e distribuição – com muitos atravessadores, que fazem subir os preços dos alimentos e também não pagam um valor justo aos produtores, são bem propícios a problemas de abastecimentos dos centros urbanos. Como foi visto na greve dos caminhoneiros e agora na pandemia.