Polo da Borborema e AS-PTA fizeram escutas com professoras, gestoras de escolas, mães, pais e crianças para saber como estão acontecendo as aulas nos 11 municípios em que a Ciranda da Borborema acontece
“Tá difícil pras crianças. Tem que ir pra casa da minha mãe. Às vezes, a internet tá ruim. Meu ensino também é pouco, não consigo ajudar a eles”. Foi com estas palavras que Hosana Alexandre, agricultora familiar, mãe de quatro filhos, três dos quais em idade escolar, moradora da zona rural do município de Matinhas, no território da Borborema, respondeu à pergunta sobre como está sendo para a família o ensino remoto nestes tempos de pandemia.
A caçula de Hosana é Mariana, tem 10 anos, estuda o 5º ano no grupo escolar Padre Cícero Romão Batista que fica na “estrada perto de casa”. “Com ela é mais fácil. Eu e o irmão mais velho ensinamos as tarefas”, disse Hosana. A situação complica mais com Felipe (12), que cursa o 7º ano, e para Deiziana (17), que faz o segundo ano do ensino médio. Eles estudam na rua, que é como quem mora no campo costuma chamar o centro urbano do município.
Segundo Hosana, ambos estão desestimulados. Sem aula presencial e com as dificuldades de acessar à internet para ver os vídeos que explicam as tarefas e o assunto que estão estudando, os dois, que nunca repetiram de ano, andam dizendo que essa forma de ensino não está adiantando de nada, que vão passar de ano, mas sem aprender.
O coração da mãe, que faz de tudo para manter o filho e as filhas na linha, estudando, lendo, escrevendo, fica bem apertado. Hosana que “há nove anos é pai e mãe” dos três revela que fica muito triste com a situação. “Quero o melhor para eles. Não quero que passem, no futuro, o que passei. Mas, eles vão chegar lá”.
Conversando mais um pouquinho, Hosana confessa que “queria que passasse logo essa doença triste para meus filhos voltarem a estudar, que a vontade [deles] é pouca [neste período de ensino à distância]. Fico dando uma injeção de ânimo. Fico mandando ler um livro ou a Bíblia. Eles leem um pouco, mas estão sempre com um livro”. E na escola deles tem biblioteca? “Tem não.”
Como forma de estimular a habilidade dos filhos com a escrita e a oralidade, Hosana recomenda que criem histórias e à noite, “se deita cada qual no seu quarto pra contar e ouvir as histórias”. São histórias da vida deles, histórias inventadas.
Hosana, essa mãe que faz das tripas coração para que seus filhos tenham um horizonte de vida mais amplo e promissor do que teve, estudou até a 5ª série. Aos 10 anos, já trabalhava em casa de família para ajudar a mãe a criar os irmãos menores. Ela era a mais velha. A última série que estudou, cursou à noite. De dia, já trabalhava.
“Repeti três vezes a 5ª série para poder passar”. A escola ficava no centro de Matinhas e ela ia a pé junto com seu irmão e outras crianças. Chegava em casa às 23h. Na escola, de tão cansada, só fazia dormir.
O estudo na zona rural sempre foi e segue sendo para aqueles que tem muita persistência. As condições nunca são favoráveis a quem busca aprender as letras e os números. De vários anos para cá, as escolas do campo enfrentam uma onda de fechamento. Em outro município no território da Borborema, em Solânea, uma escola do campo – bem arrumadinha com uma pequena biblioteca, três salas de aulas, pequenas e separadas, e cantina – deixou de funcionar para dar lugar a uma capela. Desta vez, até o padre foi para a reunião com a comunidade defender o fechamento da escola.
Nos últimos anos, o campo de todo o Brasil acumula histórias de escolas que deixam de funcionar e as crianças vão para distantes de suas casas buscar o alfabeto. O fechamento das instituições do campo é uma onda longa e gigante que segue ameaçando a população rural. Mas, em algumas vezes, o intento da prefeitura é peitado pela comunidade organizada, que defende o funcionamento da escola para as crianças menores perto de suas casas.
Na região de atuação do Polo da Borborema e da AS-PTA, as comunidades – empoderadas do seu direito e do texto que preconiza esta condição na Constituição Federal – tem conseguido algumas vitórias. Em Lagoa Seca, foi assim. Neste casos, a comunidade escolar se ampara no sindicato rural, pesquisadores das universidades públicas da Paraíba e de organizações como o Polo da Borborema e a AS-PTA.
Exclusão digital – Mas, atualmente, o ensino do campo se depara com outra gigante dificuldade que só estampa o quadro de exclusão da população do campo. Uma situação que só aumenta a desigualdade social.
Segundo dados de 2018, levantados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), ligado ao Comitê Gestor da Internet do Brasil, nas áreas rurais do país, chega a 41% a fatia da população que nunca acessou a internet. Entre habitantes de áreas urbanas, o índice cai para 20%.
E 43% das escolas do campo disseram que não têm internet por falta de estrutura na região e 24% delas apontaram o alto custo da conexão. Enquanto, na zona urbana, 98% das escolas têm ao menos um computador com acesso à internet, nas escolas rurais o índice cai para 34%.
A mesma pesquisa apontou que entre população analfabeta ou que só frequentou a educação infantil, 83% nunca acessaram a rede. Quando se olha para pessoas que tiveram só o ensino fundamental, o índice cai, mas ainda assim é elevado: 35%.
Quanto mais dinheiro em casa, maior a probabilidade de ter acesso à rede. Se entre as famílias que ganham mais de 10 salários mínimos, apenas 7% das pessoas nunca entraram na internet, aqueles que ganham até um salário mínimo contam com uma taxa de 35% de acesso zero.
Escuta – Entre 19 de agosto a 25 de setembro, a equipe do Núcleo da Infância da AS-PTA e do Polo da Borborema – um coletivo formado por 13 sindicatos rurais de municípios localizados na parte paraibana do planalto da Borborema – convocou professoras, gestoras das escolas, mães e pais para saber como anda o ensino remoto.
A escuta foi realizada nos 11 municípios em que a Ciranda acontece. Em nove deles, a reunião aconteceu pela plataforma virtual com algumas dificuldades de conexão. E, em dois, Matinhas, o município de Hosana, e Casserengue, foi por telefone.
Os depoimentos em cada reunião se repetiam: professoras cansadas do aumento de atividade e com a lida com a tecnologia que muitas não tinham tanta intimidade, pais estafados por assumirem também o papel de intermediação nos estudos dos filhos, quando muitos nem tem estudo para isso.
“É uma situação muito delicada. Os pais se viram numa pressão. Eles não têm obrigação de ensinar e sim de oferecer a escola e oportunidade dos filhos estudarem. E o ensino remoto não é a mesma coisa, não tem o mesmo rendimento. As vídeo-chamadas são desgastantes demais. Algumas vezes, perguntamos às crianças e escutamos uma pessoa dizendo a ela a resposta. É uma delicadeza gigante que temos que lidar”, confessa a professora Jaqueline Moreira de Brito, que ensina há 16 anos em escolas do campo.
Atualmente, ela ensina às crianças que estão iniciando a vida escolar – pequenos e pequenas de quatro e cinco anos – na escola da comunidade Carrasco, em Esperança, que faz parte do projeto Ciranda da Borborema. A escola acolhe crianças de comunidades do arredor, como de Barra de Camará, onde a prefeitura fechou a unidade de ensino que havia lá. Jaqueline conta que uma das preocupações deste momento é que a escola não perca o vínculo com as famílias das crianças.
E a evasão escolar? – Quando perguntada sobre esta ameaça, Denise Pereira da Silva, da equipe do Núcleo de Infância e Educação da AS-PTA, trouxe à tona algumas questões que podem inspirar as professoras – ‘incansáveis guerreiras’ nas palavras de Denise – na sua missão de ensinar as crianças cada vez mais envolvidas com os afazeres e brincadeiras que o quintal de casa as oferece.
“Brincando, as crianças desenvolvem suas habilidades. Como ensinar as questões do ensino infantil, de forma remota, trazendo a natureza como aliada? A natureza traz pra gente possibilidades infinitas pra gente observar, olhar, tocar, sentir”, provoca, acrescentando que as crianças com as quais conversou disseram que sentiam falta dos amiguinhos e das tias, mas não do ensino e que estão gostando mais de brincar no arredor de casa com os irmãos. De fato, nas famílias que vivem sem violência, a convivência com irmãos, pai, mãe, avó e a natureza são espaços bons para as crianças estarem.
“A pergunta é como as mães estão psicologicamente. Se o companheiro está compartilhando as tarefas da casa. E como está a cabeça das crianças”, acrescenta Denise, pontuando que o momento das escutas das pessoas envolvidas na Ciranda da Borborema foi também para dar condições para as pessoas ampliarem a compreensão sobre este momento.
Para Márcia Araújo dos Santos que acompanha a ação da Ciranda pelo sindicato de Lagoa Seca e também faz parte da Comissão da Juventude do Polo da Borborema, destaca que a escuta se deu para que o Polo e a AS-PTA soubessem o que está acontecendo na base e pra entender como estão as professoras do campo. “É um momento de estarmos juntas, entendendo-as. A nossa ideia é sempre levar algum conteúdo para as crianças e para as professoras”, conta.
Ciranda da Borborema – A ação do Polo da Borborema e da AS-PTA com as crianças das comunidades acompanhadas pela ação dos sindicatos rurais acontece desde 2002 e é a principal ação da Campanha pela Valorização da Vida na Agricultura Familiar. A metodologia da Ciranda promove mobilizações e formações nos adultos – pais, mães, gestores/as escolar e professoras/es – e depois esse conteúdo é levado para as crianças de forma mais lúdica e brincante.
Atualmente a ação acontece em 11 municípios dos 13 que o Polo da Borborema e a AS-PTA acompanham. Em cada município, há vários lugares para a realização das atividades semestrais que é a culminância do tema que foi explorado pelos adultos nas comunidades. Além das escolas, a Ciranda acontece também em outros espaços comunitários, como a sede das associações dos agricultores e agricultoras. A ação tem envolvido cerca de 1,6 mil crianças, 200 adolescentes e 130 educadoras/es do campo. O apoio financeiro vem da ActionAid e Kindermissions Werk.