Município chegou a investir mais de 40% dos recursos da alimentação escolar em produtos da agricultura familiar. E, entre os fornecedores, mais de 66% são mulheres.
O ano era 2006. Um grupo de mulheres do assentamento Oziel Pereira, na zona rural de Remígio, município do Agreste paraibano, começou a se reunir para discutir o que estava acontecendo na comunidade, pra desabafar, colocar o papo em dia e fazer artesanato. Não demorou muito, o grupo se desfez porque muitas delas voltaram para a sala de aula pra estudar à noite, mesmo turno das reuniões. Dois anos depois, em 2008, o grupo volta a se juntar com um número menor de mulheres.
Um ano depois, em 2009, os movimentos sociais e os/as defensores/as do direito à alimentação saudável no Brasil conseguem uma vitória que dá uma guinada no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). E, por tabela, faz o mesmo na vida de milhares de mulheres que passariam a fornecer seus alimentos beneficiados para crianças e adolescentes das escolas públicas.
Deste ano em diante, os/as gestores/as públicos/as são obrigados/as por força da lei 11.947 a investir 30% dos recursos repassados pelo governo federal para a compra de produtos da alimentação escolar na aquisição de produtos frescos e naturais cultivados por famílias agricultoras que vivem e produzem nas proximidades das escolas.
A partir deste marco, as Margaridas, que se dedicavam ao artesanato, participavam de feiras e exposições e faziam salgados por encomenda, mas não tinham retornos financeiros satisfatórios, começaram a pleitear a sua participação no PNAE de Remígio.
Só que as famílias agricultoras fornecedoras eram poucas e sempre as mesmas. “A Secretaria de Educação negociava de forma clientelista, favorecendo a algumas famílias”, conta Euzébio Cavalcante, que, naquela época, representava o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável e ainda hoje representa.
“O Conselho teve um papel importante para impulsionar uma mudança no PNAE. Cobramos a ampliação da participação das famílias. E aí, mudou a gestão e ficou ainda melhor o diálogo com o governo municipal”, continua ele.
Isso aconteceu nos idos de 2012 e 2013. Em 2012, o jovem Melchior Naelson Batista da Silva, conhecido como Chió, vindo da agricultura familiar, filiado ao PT, foi eleito prefeito de Remígio. Um dos compromissos da sua campanha era implementar uma dieta saudável na alimentação escolar.
“Nós, das Margaridas, cobramos que dessem uma olhada para as mulheres. Antes, os outros gestores diziam que a gente não tinha produção para abastecer a alimentação escolar”, lembra Anilda Batista Pereira dos Santos, coordenadora do grupo As Margaridas, primeiro coletivo de mulheres a se tornar fornecedor de produtos beneficiados para as escolas: bolo, tapioca e pamonha.
“2013 foi um ano muito contra nós”, dispara Adilma outra fundadora das Margaridas. Ter ganho o edital para fornecer seus produtos para as crianças não foi suficiente para abrir as portas das escolas para suas comidas. Foi preciso que elas fossem nas escolas abrindo uma por uma.
“O primeiro ano não foi fácil. Chió quebrou uma panelinha de décadas e também tirou tudo o que era processado: iogurte, salsicha, sardinha e deixou só o que era natural. Tinha muita gente [na administração pública] que boicotava a merenda, principalmente, os bolos, que passavam três dias encostados até serem entregues nas escolas. Entregavam as tapiocas duras. E aí queriam cancelar o contrato com as Margaridas. E, numa reunião com o secretário de Educação, a gente insistiu e aceitaram que fossemos entregar os nossos produtos em algumas escolas rurais. E, depois, conseguimos cobrir todas as escolas rurais de Remígio que é um município extenso. No ano seguinte, fechamos contrato de novo e mais agricultores participaram”, conta Anilda.
Com persistência, se vai longe – Neste primeiro ano, além da luta travada para mostrar a capacidade de abastecimento das escolas, as mulheres também enfrentaram outra batalha. Desta vez, financeira. Para confeccionar os produtos, precisavam de um investimento inicial para a compra de material e equipamentos. Conseguiram R$ 1,1 mil do Fundo Rotativo Solidário gerido pelas mulheres do assentamento e criado a partir da AS-PTA e Polo da Borborema e mais um montante com algumas participantes das Margaridas.
Ao todo, levantaram cerca de R$ 1,8 mil emprestados. Por conta deste endividamento, trabalharam duro durante seis meses sem ganhar um tostão. Tudo o que entrava era para pagar a dívida e juntar dinheiro para a reforma de um espaço para elas cozinharem. Iniciaram os trabalhos na cozinha de Anilda, mas precisavam de uma estrutura de cozinha profissional como preconiza a Vigilância Sanitária.
Conseguiram uma casa velha para ser a sede do empreendimento. Um espaço que foram reformando aos poucos. Começaram pelo lugar de produção. “Quem olhava por fora e via uma casa caída nem imaginava que, dentro, tinha uma cozinha toda na cerâmica. A gente queria reformar a casa toda para as pessoas saberem que valia a pena lutar pelos nossos sonhos”, recorda Adilma. Mas, mesmo com tantos desafios, as sete Margaridas fecharam o ano com saldo de R$ 5 mil para continuar a reforma em 2014 e cada uma embolsou R$ 1 mil.
“2015 foi o ano dos sonhos”, qualifica Adilma, seguindo a narração da história das Margaridas. Foi neste ano que a AS-PTA surgiu com uma proposta que se encaixava como uma luva nos desejos delas: de reformar as cozinhas dos grupos de mulheres que faziam produtos beneficiados. Trata-se de um recurso da organização Manos Unidas que foi transformado em Fundo Rotativo Solidário para multiplicar o valor inicial e alcançar um número maior de grupos de mulheres.
“O projeto previa que cada mulher recebesse R$ 3 mil. A AS-PTA viu o nosso trabalho coletivo e sugeriu juntarmos o valor das sete mulheres e também chamou uma arquiteta para fazer o projeto da nossa reforma de forma voluntária. Conseguimos terminar outro espaço da casa com cerâmica, pintura, porta e banheiro para tomarmos banho e trocar de roupa”, segue Adilma.
“2020 era o ano da ‘bença’. O PNAE já estava aprovado e tínhamos três meses de eventos agendados para fazer refeições. Mas deixamos de ganhar por causa da pandemia”, pontua ela.
PNAE em 2020 – Mas Remígio, diferente da maioria dos municípios do Semiárido e de todo o Brasil, foi um dos lugares que, devido à gestão compartilhada do PNAE, não suspendeu as compras dos produtos da agricultura familiar.
Um levantamento da Articulação Semiárido (ASA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) com 168 grupos produtivos apontou uma queda marcante no rendimento destes coletivos comparando o ano de 2019 a este.
Se, no ano passado, estes 168 coletivos tiveram um faturamento de aproximadamente R$ 27 milhões. Este ano, até setembro, venderam o equivalente a R$ 3,6 milhões apenas. Este valor, em grande medida, corresponde às vendas feitas antes do isolamento social. Outro dado revelado pela pesquisa é de que 44% dos coletivos, que até 2019 vendiam alimentos saudáveis e diversificados ao PNAE, não o fizeram em 2020.
Em Remígio, como já foi dito, a situação foi outra. Segundo Euzébio, que também é poeta, cantador e liderança sindical do Polo da Borborema – um coletivo com 13 sindicatos rurais – a prefeitura de Remígio já chegou a investir mais de 40% do valor da merenda escolar adquirindo alimentos da agricultura familiar. Para 2020, a meta era atingir o percentual de 50%, se não fosse a pandemia.
Nirley Lira, assessora técnica da AS-PTA que se dedica à sistematização desta experiência de gestão do PNAE para o projeto Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), destacou que “a gestão municipal entendeu tanto o impacto desta política que foi além dos 30% obrigatórios.”
O projeto Comida de Verdade nas Escolas do Campo e da Cidade identificou experiências bem sucedidas na gestão do PNAE em todas as regiões brasileiras e está sistematizando-as para divulgar os elementos determinantes para o sucesso destas iniciativas. E, com isso, estimular outras gestões a ir pelo mesmo caminho, ampliando assim os benefícios que o PNAE tem capacidade de trazer tanto para os alunos e alunas quanto para a agricultura familiar camponesa.
No dia em que estavam entregando 580kg de bolo na Casa da Merenda, produzidos em quatro dias de trabalho das Margaridas, Adilma conta que, durante a pandemia, as escolas não estão recebendo os produtos toda semana como acontecia antes. “Mas de dois em dois meses, há uma grande entrega na Casa da Merenda com um valor que dá pra gente não desaminar.”
De acordo com Nirley, em uma semana de produção intensa, as mulheres conseguiram arrecadar o mesmo valor de três meses de entrega. “Quando estavam com aula, os bolos eram entregues na escola e serviam para vários alunos. Agora, é um bolo por aluno”, revela a assessora da AS-PTA.
Até o momento, a gestão municipal que, desde 2018, foi assumida por Francisco André Alves (Avante), vice-prefeito de Chió, fez duas entregas de cestas. Na primeira, havia só produtos in natura. Na segunda, já acrescentaram o bolo. Foram 950g distribuídas para as famílias dos/as estudantes. Esta segunda chamada, o processo de construção do edital já não foi participativo como nas anteriores por causa das dificuldades trazidas pela pandemia.
A Casa da Merenda – Eis um equipamento que faz toda a diferença na execução desta importante política pública que favorece a segurança alimentar e nutricional das crianças e também a soberania dos territórios a partir da produção da agricultura familiar.
“O governo municipal disponibilizou a Casa da Merenda para se reunir, estruturar a merenda e também receber os produtos do roçado que serão levados para as escolas. É o espaço da gestão compartilhada do PNAE entre prefeitura e agricultores e agricultoras”, anuncia Euzébio, que também é agricultor familiar e assentado da Reforma Agrária.
“O PNAE de Remígio tem dois editais por ano que são construídos de forma participativa, envolvendo os/as agricultores/as familiares, o sindicato rural, a secretaria de educação e a Empaer (Empresa de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária da Paraíba)”, pontua Nirley. O papel do sindicato é de articulação política e da Empaer, de oferecer assistência técnica às famílias envolvidas com o PNAE.
Na Casa da Merenda, 15 dias depois dos grupos enviarem suas propostas ao edital de compra dos alimentos, há um encontro para assinatura dos contratos e os/as fornecedores/as levarem amostras de seus produtos. E, no fim do ano, há uma confraternização entre todos os envolvidos com o PNAE, na qual os ‘comes’ são os pratos que saciam a fome dos pequenos quando estão na aula.