“Sentimos na pele como é ter que sustentar a criação no tempo de seca”, dispara Adailma Ezequiel, uma jovem liderança que mora no Sítio Lutador, em Queimadas, e faz parte da Comissão Executiva da Juventude e da Coordenação Política do Polo da Borborema. O Polo é um coletivo de sindicatos rurais de 13 municípios localizados no trecho paraibano do planalto da Borborema, que se estende de Alagoas até o Rio Grande do Norte.
Sobre o impacto da seca na criação, a lembrança mais forte de Adailma, nos seus 30 anos de vida, é a da venda dos animais para “não ver morrer”. Essa era a sina das famílias de Queimadas e dos demais municípios que têm zonas em regiões mais secas como Agreste, Curimataú e Cariri. “Minha mãe sempre dizia: ‘Quando é pra vender, os compradores só querem comprar de graça. E quando [a gente] vai comprar, os animais dos vendedores têm valor’”, lembra Adailma.
Na sequência, a jovem boa de fala emendou: “A partir da parceria entre o sindicato, a AS-PTA e o Polo da Borborema, a gente vai aprendendo e se adaptando à seca. Hoje, eu e minha mãe temos oito cabeças de gado, alguns bodes, ovelhas e porcos. Quando eu preciso, vendo. Mas não é mais obrigação.”
No mapa da Paraíba, o município de Queimadas se situa na região do Cariri, com características de clima mais árido. Lá, o verão chega a durar quase 10 meses. Sobram 2 meses e poucos dias com chuvas. E, mesmo assim, as chuvas são tão irregulares que, às vezes, nem chegam a completar a capacidade máxima das cisternas e demais tecnologias nas quais as famílias agricultoras estocam água.
Em regiões como esta, a vocação das famílias rurais é a criação de animais. No caso de Queimadas, é de vaca para produção de leite e derivados. Lá, segundo Adailma, os criadores de pequeno porte têm até 10 cabeças de gado. Há também quem crie mais de 20 animais, apesar da demanda deles por água e alimento ser grande e o período seco, extenso.
O que vem dando suporte à criação em Queimadas e nos demais municípios do território é a estocagem de forragem para os animais. A cada final de inverno, se colhe capim e milho ainda verde para triturar, armazenar e dar aos bichos ao longo do período sem chuva. “A gente que é criador precisa entender que a gente necessita estocar para a criação. Na mesma lógica de estocar para família. Este estoque é o que salva a criação no verão”, destaca Adailma.
Felipe Teodoro, assessor técnico da AS-PTA para o tema de criação animal desde 2008, assegura que, hoje, a prática de armazenamento está amplamente disseminada em todos os municípios de atuação da organização e do Polo – Solânea, Casserengue, Arara, Remígio, Algodão de Jandaíra, Esperança, Areal, Montadas, São Sebastião de Lagoa de Roça, Lagoa Seca e Queimadas – e para além destes.
Ele conta também que foi nos anos 2000 que as famílias agricultoras começaram a ter contato com a técnica de silagem adaptada à capacidade e realidade deles. E que, no início, “as famílias achavam loucura triturar o milho e o capim e colocar num buraco. Mas, quando viram que quem tinha forragem estava passando a seca com tranquilidade, a resistência começou a ceder. Quem não tinha a forragem, os animais emagreciam, a família gastava seu capital financeiro para comprar ração fora e cara. E, quando o período [da seca] era extenso, ou vendiam ou animais morriam. Isso gerava um grande estresse no sistema produtivo.”
Segundo Felipe, na década de 1990, a silagem já existia na região, mas era uma técnica restrita apenas para os grandes agricultores, que faziam silos enormes, usando trator e muita mão de obra. “Esta estrutura passava uma mensagem que os pequenos não tinham capacidade para fazer o mesmo”, comenta.
Quando a história começou a mudar – Para as famílias superarem os desafios de manter o rebanho com peso ideal e produzindo leite o ano todo, a AS-PTA trouxe para o território com o apoio do Polo novas técnicas de silagem e também o primeiro dos 20 equipamentos disponíveis hoje para as 300 famílias dos 11 municípios que necessitam armazenar ração para manter os bichos vivos e com boa saúde.
Em processos formativos, as famílias conheceram o silo cincho menor, com três metros de diâmetro. A visita de intercâmbio aos Sertões de Pernambuco e de Sergipe possibilitou aos agricultores e agricultoras paraibanos/as o contato com outras tecnologias: o silo trincheira e o tambor. “Os intercâmbios cumpriram papel importante para que as famílias se apropriassem das técnicas e desencadeou um processo de experimentação vigoroso”, assegura uma sistematização feita pela AS-PTA sobre este trabalho.
Mas, mesmo com equipamento adaptado e famílias estimuladas, a técnica de ensilagem carecia de mão de obra considerável. E este desafio foi encarado com a realização dos mutirões de trabalho entre as famílias, uma cultura da região que ainda hoje existe, mas numa proporção menor.
Daí em diante, outras soluções foram sendo desenvolvidas para tornar esta técnica de produção de forragem cada vez mais acessível às famílias que tinham a criação como principal fonte de sustento. Em parceria com outra organização de assessoria à agricultura familiar da Paraíba, o Patac, as máquinas ensiladeiras se tornaram móveis para facilitar o transporte para as comunidades.
Atualmente, as prefeituras e particulares possuem os equipamentos. Tem até quem alugue as máquinas para atender a alta demanda da região, uma vez que o poder aquisitivo das famílias agricultoras aumentou e tornou possível contratar este tipo de serviço, assim como pagar diárias para ampliar a mão de obra nas semanas dedicadas à feitura dos silos.
E as famílias levam tão a sério a estocagem de forragem que separam uma área exclusiva para plantar o milho que vai matar a fome dos seus animais. O tamanho desta área vai depender, é claro, do tamanho da propriedade. Daí que a limitação das terras termina sendo um grande empecilho para o aumento da produção das famílias.
Apesar da disseminação da técnica da ensilagem na região do Polo, Felipe defende que esta ação se torne uma política pública para que os seus benefícios possam alcançar mais famílias. “Iniciativas como esta pode ser apoiada por um conjunto de prefeituras, por exemplo, para favorecer dinâmicas auto-organizativas territoriais. O que acontece aqui pode ser desenvolvido em qualquer lugar”, assegura.
Gestão descentralizada – Em Esperança, um dos 11 municípios beneficiados com as máquinas adquiridas pela AS-PTA e Polo, a produção de forragem de 40 famílias chega a quase mil toneladas. Este resultado foi alcançado em 2019. E, segundo João Paulo Diniz Brito, em 2020, o desempenho não foi diferente.
João Paulo faz parte do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Esperança há 10 ou 12 anos pelos cálculos dele. Atualmente, está como vice-presidente e membro bastante ativo da Comissão Municipal de Criação Animal, fórum que faz a gestão do uso e da manutenção das ensiladeiras, e também de uma comissão semelhante do Polo. Nas eleições passadas, ele se candidatou a vereador e, por pouco, não foi eleito. Ficou como primeiro suplente da Câmara Municipal Legislativa.
O sindicato de Esperança faz a gestão de três das 20 máquinas disponibilizadas para uso pela AS-PTA e Polo. “O Sindicato se responsabiliza pelas orientações de uso, deslocamento e manutenção. Desde que assumimos isso, não teve mais problemas de equipamento quebrado e desperdício de silo”, pontua. Para as famílias sindicalizadas, não há cobrança de taxa para uso do equipamento. Elas só precisam comprar a gasolina para fazer a máquina funcionar e a lona quando vai fazer pela primeira vez a silagem.
“A gente orienta que, assim que começar o corte, as famílias falem com o sindicato. Recomendamos bem para não deixar secar [a matéria-prima] pra não perder os nutrientes.” Ele explica que o processo requer que se limpe um terreiro plano na propriedade, forre o chão com capim, palha de feijão ou lona, que é para não “melar” a ração. Feito isso, pode pôr o material verde triturado, depois cobrir com a lona e, sobre esta, por uma camada de cerca de dez centímetros de terra para proteger a lona do sol e de algum animal. “O segredo é vedar bem vedado. É preciso tirar todo o ar, compactar bem com os pés ou com trator. Se entrar ar, o fungo se desenvolve e o material apodrece”.
Para que as ensiladeiras estejam disponíveis para todas as famílias que demandarem, é preciso um planejamento. De agosto a outubro, primeiros meses após o fim do inverno na região, é o período de uso concentrado dos equipamentos. As regras para a utilização dos equipamentos são definidas pelos integrantes da Comissão de Criação Animal de cada sindicato. Essa autonomia só favorece a capacidade deles de se auto-organizarem para fazer o bom uso de um bem coletivo.
Relações no agroecossistema – Além do trabalho com a silagem, João Paulo destaca também várias outras atividades e tecnologias sociais que giram em torno da criação animal, como o biodigestor que, a partir do esterco dos animais, produz o gás de cozinha e livra a família do gasto com a compra de botijão que pesa no orçamento. Ele citou também como importante para manter os rebanhos dos agricultores e agricultoras familiares as oficinas que estão sempre aperfeiçoando os conhecimentos dos/as criadores/as, como a oficina de sal mineral para evitar a verminose.
Em dois tempos, o sindicalista também falou do cultivo das palmas mais resistentes à praga da cochonilha, que substituiu as palmas forrageiras desaparecida da região por causa do ataque dos insetos que se parecem com mofos brancos. E não se esqueceu das tecnologias que armazenam a água para a segurança hídrica do rebanho.
As tecnologias, os conhecimentos e a gestão integrada dos insumos produzidos na propriedade são princípios da convivência com o Semiárido, que tem proporcionado condições reais das famílias ampliarem a sua resistência aos períodos cada vez mais severos de estiagem devido às mudanças climáticas. Mas, isto é assunto para outro texto.
Conheça a sistematização produzida para a coleção Teia Agroecológica: Boletins sobre Tecnologias Sociais em Agroecologia
Informativo-12 – Rede Itinerante de Máquinas Moro-ensiladeiras do Polo da Borborema
Fotos: Túlio Martins/Arquivo AS-PTA