Monitoramento dos estoques dos 60 bancos do território, realizado há 12 anos, passa por adaptações em 2021, mas não deixará de ser feito
Quem já experimentou o sabor, viu ou ouviu falar no feijão macassar preto, feijão gordo preto ou no milho preto? E no feijão ovo de rolinha? Na fava de moita roxa? Bem, antes que pensem que estes nomes estão sendo inventados pela mente criativa de quem escreve o texto, informo que são variedades de sementes existentes no território da Borborema, na Paraíba.
Algumas destas sementes foram encontradas sob os cuidados de apenas um guardião ou guardiã da biodiversidade que vivem no território. Como são materiais de interesse de muitas famílias, as sementes em pequena quantidade são logo multiplicadas para que não tenham o mesmo destino de 90% das sementes domesticadas pela humanidade ao longo de 12 mil anos de agricultura: extintas em apenas um século, o 20.
Para identificar a semente em risco de desaparecimento no território, é feito anualmente e logo nos primeiros meses, o monitoramento dos estoques do banco regional e dos 60 bancos de sementes comunitários (BSCs) distribuídos nos 14 municípios, cujos sindicatos rurais fazem parte do Polo da Borborema. O Polo é uma rede formada por sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias, uma associação de produtores agroecológicos, a EcoBorborema, e uma cooperativa de agricultores e agricultoras familiares inaugurada em janeiro passado.
O monitoramento deste ano, por conta da pandemia, está sendo feito de forma remota com o repasse via telefone das informações anotadas no caderno específico para este acompanhamento. E, em alguns casos, a coleta de dados acontece de forma presencial, mas envolvendo de duas a três pessoas da comissão gestora do banco e mais uma pessoa da AS-PTA.
Até o ano passado, este monitoramento tinha a fase de coleta de informações e fase de socialização dos resultados, que incluía a Festa das Sementes da Paixão, com a participação de guardiões e guardiãs de sementes de todos os 60 BSCs do território. Este momento tem uma importância muito grande por possibilitar um intenso intercâmbio de sementes. Os resultados destas trocas são observados nos anos seguintes a partir do aumento de variedades dos estoques de cada unidade.
Ainda não se sabe será satisfatório o resultado do monitoramento realizado em 2021 com dados dos bancos de 2020, mas a notícia a ser comemorada, a princípio, é que os 60 BSCs seguem ativos e em funcionamento. Na comunidade Benefício, na zona rural de Esperança, o banco de sementes está cheio de feijão e fava. Há uma diversidade de variedades: três tipos de feijão carioca, macassar, rosinha, mulatinho, preto, gurgutuba, ovo de rolinha, fogo da serra, fava cara larga, além de sementes de coentro, girassol e outras. Milho, porém, só há dois quilos guardados.
“Não adianta colocar milho pra dentro (do banco) sendo transgênico. Só tem dois quilos porque é limpo”, conta Lúcia Andrade, uma das gestoras do banco. “Tem muita escassez por conta dos outros vizinhos que plantam transgênicos e muitos fazem a silagem (com o milho para alimentar a criação). Eu mesma mandei uma amostra do meu milho para fazer o teste e estou esperando o resultado para ver se planto mais este ano”, continua ela dizendo que a quantidade para plantio está separada e que o restante está dando para as galinhas que começou a criar no passado.
O banco da comunidade Benefício, em funcionamento desde 2017, tem 16 sócios ativos, que colocam suas sementes lá anualmente. Na comunidade, vivem quase 130 famílias. Muita gente de fora do banco, não é, Lúcia? “E não é! Nas reuniões da associação (da comunidade), a gente sempre fala da importância do banco de sementes comunitário”. Fazer parte do banco de sementes é uma atitude que leva ao maior entendimento dos perigos do milho transgênico, por exemplo.
Monitoramento – O levantamento quantitativo e qualitativo do material genético guardado em cada banco, realizado desde 2009, começou a ganhar mais qualidade a partir de 2017, quando a professora Christine Saldanha, do departamento de Engenharia de Produção, da Universidade Federal da Paraíba, e sua equipe agregaram instrumentos e métodos novos à iniciativa.
Segundo Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA que acompanha as ações relacionadas às sementes da Paixão há mais de 12 anos, esta parceria promoveu mudanças relativamente simples, como a adoção do caderno de monitoramento para preenchimento em cada banco e o uso de planilhas menos extensas e mais enxutas, que geram informações mais claras sobre os estoques. Tais informações são sistematizadas e organizadas em Anuários das Sementes entregues aos/às gestores/as dos bancos e aos sindicatos rurais.
“As informações dos monitoramentos são essenciais para mobilizar as famílias e as comunidades”, destaca Emanoel que também aponta vários pontos positivos na aproximação entre academia e as comunidades rurais como o fortalecimento do conhecimento agroecológico e ter a universidade como aliada na luta em defesa do patrimônio genético sob a gestão das famílias agricultoras.
“Nos últimos quatro anos, a gente vem percebendo que, em termos de quantidade, quando temos um ano com baixa pluviosidade, a quantidade das sementes dos bancos também diminui. Quando tem um ano com mais chuvas, os números são bem maiores”, comenta Emanoel, acrescentando que o monitoramento também é fundamental para levantar informações de variedades guardadas em pequena quantidade, mas que nem sempre estão visíveis como outras armazenadas numa proporção bem maior.
“O feijão macassar preto e o feijão ovo de rolinha foram materiais encontrados e multiplicados. Tem a fava de moita preta que só um agricultor tinha em Areial. Ele conseguiu repassar [a fava] para outras famílias e as pessoas estão multiplicando em vários locais”, conta o agrônomo.
O monitoramento também identifica o guardião ou guardiã que está com estoque de sementes suficiente para venda. Assim como o Polo da Borborema e a AS-PTA estão cuidando da produção de alimentos, também estão ampliando espaços de comercialização para seus alimentos diferenciados.
Para as cestas agroecológicas compradas pela AS-PTA para doação às famílias do campo em situação de fome, que foi potencializada pela pandemia, as sementes estocadas nos bancos de sementes comunitários foram fundamentais. Saíram deles direto para as cestas: arroz, uma diversidade enorme de feijões e farinha de mandioca.
“A partir do monitoramento, a gente identifica materiais que nem sempre são encontrados no mercado convencional e que os consumidores ficam encantados porque têm a oportunidade de experimentar sabores e cheiros diferenciados”, comenta Emanoel, dizendo que as sementes viram alimento para os clientes da rede de feiras agroecológicas e das Quitandas da Borborema e também para quem vive em João Pessoa e no Recife.
Segundo Emanoel, participar da rede de bancos de sementes ainda traz uma boa vantagem financeira para as famílias agricultoras. Os BSCs têm uma relação direta com a Associação EcoBorborema e a CoopBorborema. A EcoBorborema coordena uma rede de 12 feiras agroecológicas e também cinco pontos de venda fixos e mais um móvel que são as Quitandas da Borborema. Além disso, a associação também é responsável pelo processo de certificação participativa do processo de produção das famílias que vendem nestes espaços. A CoopBorborema está em processo de organização para a sua estreia como entidade que vai abrir outros mercados para os produtos cultivados e beneficiados no território.
“A gente tem várias experiências de agricultores/as que conseguem deixar de vender no período da safra com preços abaixo do mercado, porque todo mundo tem. Eles guardam suas sementes nos bancos e, no período da entressafra, vão aos poucos empacotando e comercializando a preços bastante interessantes. Essa semana, houve venda para um ponto comercial fora da Paraíba de feijão preto a R$ 9, quando na safra, o valor chega a R$ 5. Feijão rosinha vendido por R$ 8, o dobro do valor alcançado na safra. As favas a R$ 10, na safra é R$ 7. São todos os agricultores que fazem isso? Não. Mas começamos com dez e já temos mais de 50 agricultores fazendo esta comercialização”, diz o assessor técnico da AS-PTA.
Sementes crioulas de região semiárida – Além de seu valor por ser uma semente crioula, as sementes da paixão, como todas as outras do Semiárido brasileiro, têm um valor agregado pela sua adaptação a condições de estresse climático numa época em que as mudanças no regime de chuvas, por exemplo, são uma realidade em todo o planeta e ameaça a produção de alimentos global.
O território da Borborema, mesmo depois da intensa seca de 2012 a 2017, segue registrando invernos abaixo da média pluviométrica. Isso só reforça a necessidade de monitorar o estoque de sementes da região, para ampliar os cuidados e o zelo que elas merecem.
“Este trabalho de monitoramento é fundamental para não perdermos essa diversidade, essa riqueza de variedades crioulas que é um patrimônio das comunidades e das famílias. E saber onde estão as sementes, qual a sua quantidade, é fundamental para fazer o resgate e ter este material no nosso território. Uma variedade só numa comunidade tem risco muito grande de ser perdida”, arremata Emanoel.
Todo este trabalho direcionado ao material genético na Borborema produz resultados muito significantes. A região foi considerada, em 2019, uma zona de preservação das sementes de milhos por um conjunto de universidades nacionais e internacionais . O mérito para este título? Ter sob a guarda das famílias agricultoras quatro espécies de milho endêmicas, ou seja, no mundo inteiro, estas sementes existem só no território da Borborema, no semiárido paraibano.