A estratégia envolve a disseminação de minicasas de farinha, uma inovação desenvolvida por um casal de agricultores, e de roçados comunitários para multiplicar as sementes perdidas
“Há mais de 20 anos que não tem mais casa de farinha na comunidade. Aqui, eram nove casas na minha infância. Hoje, só resta uma abandonada porque ninguém mais planta mandioca. Só conheço uma pessoa que cultiva. As mais velhas se aposentaram e as mais jovens não continuaram como antes, muitas preferem comprar”. Quem conta esta história é a agricultora familiar agroecológica e guardiã das Sementes da Paixão, Rita Izidoro Félix, a conhecida Ritinha da comunidade Benefício do município de Esperança.
O que Ritinha fala, infelizmente, não é exceção na região onde vive, a Borborema paraibana. O mesmo acontece no Sítio Xique-Xique, em Remígio, onde moram José Irenaldo Nunes Bezerra, Elisabeth Ananias Barbosa e os dois filhos, Kaliane (10 anos) e Kaymim (15).
“Quando a gente chegou aqui, há 30 anos, essa região do Brejo, era uma potência em produção de mandioca e farinha, sabe?”, relata Irenaldo. “No decorrer do tempo, as pessoas foram diminuindo o plantio, as casas de farinha foram se fechando. Chegou uma época em que as casas de farinha praticamente não funcionavam mais. Das 20 casas que existiam aqui na região, hoje só existem duas e o pessoal não tem mais a cultura do plantio da mandioca e de fazer a farinha”, acrescenta.
Além da perda do cultivo da mandioca, que sempre esteve na base da alimentação do Nordestino, o desinteresse pelo tubérculo é uma mudança nada alvissareira para quem vive da agricultura numa área semiárida, cada vez mais afetada pelas mudanças climáticas. Ano a ano, o que se presencia na Borborema e em outros territórios do grande Semiárido brasileiro são chuvas abaixo da média anual.
Isso porque a mandioca tem muita tolerância a um longo período de estiagem. “É uma cultura extremamente resistente e se adapta a qualquer região do nosso país”, assegura Ivanilson Estevão, técnico da AS-PTA. O mesmo não se pode dizer da macaxeira, que começou a ganhar o espaço que a mandioca tinha em tempos antanhos. Cientes do comportamento das duas plantas, há cerca de sete anos, o casal Irenaldo e Beta, que antes plantava muito mais macaxeira do que mandioca, inverteu os roçados.
“Trocamos o plantio de uma por outra. Com chuva pouca, é melhor mandioca”, assegura Beta. “Hoje, a macaxeira que plantamos é só pra comer.” Da mandioca, vem metade da renda que faz nas feiras semanais na Feira Agroecológica de Remígio, que o casal que ajudou a fundar. Beta faz e leva para vender vários produtos beneficiados como os beijus e o pé de moleque temperado e cozido na palha da bananeira.
Mas, até chegar neste ponto da história, foi preciso fé que dias melhores viriam, determinação, persistência e coragem para trabalhar. “Eu tinha muita vontade de trabalhar para ganhar meu dinheiro e via grande parte da macaxeira que a gente plantava sendo vendida para atravessador. Uma caixa com 30 quilos de macaxeira por R$ 13,00”, conta Beta.
Ao mesmo tempo, na feira, os clientes sempre perguntavam se alguém ali vendia pé de moleque e beiju. E aí, Beta juntou o interesse das pessoas à sua vontade de aumentar a renda familiar beneficiando a macaxeira que tinha ao seu dispor. E temperou esta mistura com fé e pensamento positivo. Natural da região do Cariri, sem a cultura dos alimentos à base da mandioca e da macaxeira, Beta decidiu que transformaria a macaxeira em quitutes, mesmo sem receitas e sem ter quem a ensinasse.
Ela foi testando as misturas dos ingredientes. “Igual a cozinhar arroz pela primeira vez. Às vezes, fica duro, às vezes, cozinha demais.” De teste em teste, o pé de moleque foi levado para a feira e conquistou o gosto da clientela. A produção dos beneficiados começou com meia caixa de macaxeira, passou para uma e meia e chegou a duas.
Mas, o trabalho era bem exigente. Tanto Beta como Irenaldo não aguentavam mais ralar e espremer. A cada produção, panos de cozinhas terminam esgarçados e rasgados e as mãos, raladas. Foi aí que veio a invenção de Irenaldo.
“Como eu tinha ideia de como era uma casa de farinha, disse a ela (Beta): ‘Vou num ferreiro, que é meu amigo e faz maquinário e adaptar’. Aí cheguei lá e disse: ‘Nelsinho, é o seguinte, eu tô com uma ideia de montar uma pequena casa de farinha na cozinha mesmo. Eu preciso de uma prensa pequena, de 80 cm de comprimento e 50 cm de largura, e um rodete pra gente moer uma pequena quantidade de mandioca’. E ele disse: ‘Ah, rapaz, eu faço, num tem problema não’. E ele fez. Na época custou R$ 1,2 mil. Em casa, a gente fez uma bancada para montar os equipamentos. E foi um sucesso. Para ralar duas caixas de mandioca é uma questão de 20 minutos. A prensa também é um sucesso. Ai não teve mais problema. A gente conseguiu produzir com mais facilidade.”
A teimosia de Beta em nadar contra a corrente e resgatar receitas que estavam esquecidas mais a invenção de Irenaldo estão dando nó em pingo d’água e transformando a relação das famílias agricultoras com a mandioca novamente.
Desde quando adaptaram a casa de farinha na cozinha de casa, Beta passou a demonstrar a invenção em vários encontros de agricultoras e agricultores promovidos pelo Polo da Borborema e a AS-PTA.
“Teve encontro que a AS-PTA levou a máquina e a macaxeira, fui demonstrando como fazia e muita gente ficou interessada”, lembra a agricultora. Daí em diante, o trabalho do casal iluminou o caminho de muitas mulheres no território que passaram a fazer renda a partir do beneficiamento destes tubérculos.
Na feira de Remígio, por exemplo, além de Beta, há mais cinco mulheres que vendem esses produtos. “Saber que tudo isso ajudou a muitas mulheres, é muito gratificante”, confessa Beta.
Juntou a fome com a vontade de comer – Ao mesmo tempo em que Beta e Irenaldo buscavam suas melhoras, a AS-PTA e o Polo trabalhavam com várias estratégias para resgatar a cultura da mandioca no território.
E aí a inovação do casal deu um casamento perfeito com o trabalho de desenvolvido desde 2016. “A gente começou a incentivar este resgate da cultura da mandioca por meio do apoio ao melhoramento e à aquisição de equipamentos – o triturador e a prensa de Beta e Irenaldo – para o beneficiamento”, comenta Ivanilson, o técnico da AS-PTA que assessora a Rede de Agroindústrias Caseiras e Comunitárias do território da Borborema.
“Esse ano, com o projeto Borborema Agroecológica, em parceria com Fundação Laudes, a gente ampliou mais esse trabalho e apoiamos cinco unidades coletivas para o beneficiamento de mandioca. A novidade é que, em cada local, está sendo implantado um roçado coletivo para resgate das variedades de mandioca que foram perdidas na região”, acrescenta Ivanilson.
O projeto Borborema Agroecológica faz parte do INNOVA AF, que busca fortalecer as capacidades das famílias camponesas para a adaptação às mudanças climáticas, por meio da gestão participativa do conhecimento e disseminação de boas práticas. Trata-se de uma iniciativa financiada pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrário (FIDA) e executado pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Dos cinco grupos beneficiados com a minifábrica de mandioca e o roçado coletivo, quatro são compostos só por mulheres e um por jovens que toparam empreender este trabalho. Um dos grupos de mulheres fica em Benefício, na zona rural de Esperança, a comunidade de Ritinha que deu o depoimento de abertura deste texto.
Sobre a minicasa de farinha, Ritinha fala com muita empolgação. Ela conta que as famílias da comunidade estão construindo, em regime de mutirão, todos os sábados, uma estrutura física para abrigar a pequena fábrica de beneficiados da mandioca e macaxeira. “Se juntam seis ajudantes e três pedreiros da comunidade. A família, que não pode ajudar com a mão de obra, dá o lanche.”
Ao passo em que se constrói a estrutura física, a comunidade também decide coletivamente onde vai ser implantado o roçado comunitário da mandioca. “A gente está se reunindo e pesquisando para saber qual o pedaço de terra que vai ser doado para, principalmente, as mulheres plantarem a mandioca.”
Este ano, por causa das chuvas poucas, não houve plantio. Elas aguardam 2022 para lançar as manivas no campo de multiplicação das sementes que, no caso da mandioca, são pedaços do caule da planta. Mais um motivo para reforçar as vibrações e a esperança de chuvas sejam mais promissoras em 2022.
O Polo da Borborema e a AS-PTA – O Polo é um coletivo que agrega 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias, uma associação regional de agricultores/as familiares, a EcoBorborema, e uma cooperativa com capacidade de atuar em todo o Estado, a CoopBorborema. E a AS-PTA oferece assessoria técnica e apoio aos processos organizativos do Polo.
Não perca o vídeo sobre a minifábrica de farinha