O exemplo de Lagoa Seca contou a favor desta novidade e a atuação do sindicato rural de Montadas e do Conselho de Desenvolvimento Rural também
No Brasil, comprar semente para distribuir para as famílias agricultoras é obrigação dos governos federal e estaduais. Mas, a partir deste ano, no território da Borborema paraibana, duas prefeituras abrem precedentes e passam a adquirir sementes crioulas no próprio território para distribuir para seus agricultores e agricultoras. Começou com Lagoa Seca em março passado e se estendeu por Montadas.
Em ambos os casos, há a atuação de organizações da sociedade civil, como o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, que faz parte do Polo da Borborema – uma rede territorial – da ASA Paraíba – uma articulação estadual – e de mais duas nacionais, a Articulação Semiárido (ASA) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). E também houve participação ativa do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS), um fórum com várias representações da sociedade civil – sindicato rural, igrejas e associações rurais – e dos poderes legislativo e executivo municipal.
Em Lagoa Seca, a partir do Programa Municipal de Sementes criado pela Lei 206/2014, o prefeito Fábio Ramalho, que assinou a Carta Compromisso Agroecologia nas Eleições , está realizando a segunda compra de sementes para distribuição local. Em março passado, as sementes foram compradas de agricultores e agricultoras familiares de seis municípios do território: Casserengue, Esperança, Arara, Remígio, Montadas e Areial. Foi quase 1,5 tonelada de sementes de feijão, fava e milho, que chegou nas mãos de 120 famílias.
Segundo a diretora do departamento de Meio Ambiente da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, Nohana Andrade, a expectativa era que as 120 famílias multiplicassem as sementes recebidas e vendessem o excedente à prefeitura que criaria um banco municipal. “Mas, a pouca chuva dificultou a multiplicação”, justificou.
Mas, mesmo num ano com registro de seca grave nos meses de junho e julho, justo na época do inverno no território, 12 famílias de Lagoa Seca conseguiram vender à prefeitura de Lagoa Seca uma quantidade de sementes maior do que a primeira aquisição: mais de 2 toneladas de feijão e fava, que foram compradas por R$ 12.432,00. Um investimento muito baixo para o impacto que causa, tendo em vista que irá beneficiar todas as famílias rurais, ou seja, 2/3 da população de Lagoa Seca.
“Ainda estamos fechando a compra de 300kg de milho. A expectativa é chegar em 2,5 toneladas de sementes para distribuir no inverno de 2022”, comenta Nohana. “Os critérios desta distribuição vão ser definidos de forma participativa com o envolvimento do Sindicato e do Conselho de Desenvolvimento Rural. Vamos decidir as melhores estratégias”, acrescenta a agrônoma.
A família do agricultor Robson Alves Gertrudes, 45 anos, do Sítio Retiro, foi uma das 120 que recebeu cinco quilos de feijão carioca no início de 2021. Associado ao STR há mais de 20 anos, foi a primeira vez que Robinho, como é conhecido, aceitou as sementes doadas pelo governo. Como ele tinha seu banco de sementes da paixão em casa, nunca se interessara pelas que vinham de fora.
“As sementes de feijão que recebi foram as primeiras que plantei, mas perdi tudinho por falta de chuva. Depois, plantei o feijão faveta que guardo em casa e lucrei 315 quilos que deu para fazer o estoque para consumo da família, para separar as sementes de plantio no ano que vem e para separar 150kg que vendi para a prefeitura de Lagoa Seca”. O preço da negociação foi mais lucrativo do que o valor do mercado local, que estava pedindo de R$ 6,00 a 8,00 pelo quilo. “Vendi por R$ 9,00 pra prefeitura”, conta ele.
E qual a sua opinião com relação à distribuição das sementes pela prefeitura, Robinho? “Muito importante. São as sementes dos próprios agricultores da região que são distribuídas”, responde com poucas palavras, mas de forma incisiva.
A prefeitura está mais perto do povo – A doação de sementes via programas públicos sempre foi uma política pública direcionada às famílias, mas que não supria a necessidade delas. Tanto por conta do tempo que as sementes chegam, muitas vezes, depois de ter iniciado o inverno, quanto pela qualidade das mesmas, que são de variedades comerciais e não adaptadas às características ecológicas do Semiárido. Por isso que comprometer o governo municipal na aquisição e doação de sementes locais é um grande feito. Um avanço sem tamanho para a agricultura familiar de qualquer lugar do país.
A prefeitura é o governo que está mais próximo do povo. É mais fácil de chegar, pressionar, acompanhar seus gastos e influenciar as prioridades no investimento do recurso público. Isso foi um fator primordial para Montadas começar a investir recursos públicos nas sementes da paixão.
“Recentemente, em setembro passado, o Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável reformulou os conselhos municipais, modificando a sua composição. Agora, um representante da prefeitura passa a ocupar a vice-presidência”, conta seu Joaquim Pedro de Santana (72 anos), poeta, guardião das sementes da paixão, vice-presidente do Sindicato de Montadas e presidente do CDRS do município.
Com essa maior integração com o governo municipal, seu Joaquim explica que o CDRS convocou o prefeito Jonas de Souza para uma conversa. Foi o momento de cobrar dele o cumprimento de promessa feita em 2019, quando estava na primeira gestão. “Na época, ele havia sinalizado que iria comprar as sementes para distribuir para os agricultores e agricultoras.” Além do mais, houve uma influência do que estava acontecendo em Lagoa Seca e já trazia resultados positivos.
Com a cobrança, o prefeito de Montadas se comprometeu em fazer cumprir a palavra. “Com cerca de R$ 10 mil, a prefeitura adquiriu 20 sacos de feijão e 10 de milho que estão na sede do Conselho, que fica no Sindicato para entrega no ano que vem”, informa seu Joaquim. Cada saco, pesa 60kg. Então, são 1,2 mil quilos de feijão e 600kg de milho.
E como vai ser esta entrega? “Como em Montadas só há dois bancos comunitários de sementes, não vamos poder repassá-las para eles porque se trata de um programa municipal que deve atender a todas as famílias agricultoras”, assegura seu Joaquim. “Os critérios para atender todo mundo é um troço muito complicado, tem que ter uma questão muito bem planejada”, disse quase rimando.
Mas rima sobre as sementes não falta a seu Joaquim, que nunca cessa de expressar seu amor pelas sementes. Seja através da ação enquanto liderança sindical e presidente do CDRS, seja com as palavras que saem de sua boca com fluidez e sabedoria dos poetas do Sertão:
“A confiança em Jesus
É meu ponto de partida
Também a experiência
Nos longos dias de vida
Afirmo com perfeição
A semente da paixão
É boa e é garantida
Esta semente querida
Que já vem de tradição
De todas as variedades
Milho, arroz, fava e feijão
Plantio só é sagrado
Se plantado no seu roçado
A semente da paixão
Toda a nossa plantação
Para fortalecer a gente
Plante tudo escolhido
Sem ter nada diferente
Eu fico realizado
Porque sou apaixonado
Por essa tal de semente
Mas essa tal de semente
Já vem dos nossos bisavós
Eles morreram e deixam
Ela para nossos avós
Hoje plantam nossos pais
Quando eles não plantarem mais
Plantarão nossos filhos e nós
No tempo dos meus avós
Os santos eram Pedro e João
Pelas imagens serem ocas
Guardavam milho e feijão
Em Nossa Senhora era a fava
Botavam dentro e tampava
Era assim que se guardava
A semente da paixão
Também tem semente humana
que é a semente de gente
tem que ser selecionada
de pessoas competentes
pois estas são capazes de zelar
mas também podem acabar
todos os tipos de sementes”
Joaquim Pedro de Santana