Para a agricultora Maria Portela, os eventos contribuem para a conservação da agrobiodiversidade “fornecendo sementes de qualidade e seguras produzidas pelos próprios agricultores e agricultoras”
São muitas as nascentes que contam a história do surgimento das festas e feiras das sementes crioulas e da agrobiodiversidade, organizadas no centro-sul do Paraná e no planalto norte catarinense. Elas reuniram, e ainda mobilizam, centenas de famílias agricultoras e comunidades em torno de um propósito comum – conservar as espécies e variedades crioulas, manter os laços comunitários e fortificar a sua organização local. Para navegar nesse rio de histórias, este barco partiu nas águas da comunidade do Pinhalão, em União da Vitória, buscando compreender a contribuição destes importantes encontros, que nutrem processos, na consolidação e incidência política de redes territoriais de conservação da agrobiodiversidade.
Cuidar da memória coletiva é fundamental para avançar, a partir do reconhecimento da trajetória e do chão que se pisa no presente. Por isso, para relembrar essa história abundante de lutas, desafios e conquistas, foi preciso buscar as suas fontes, ou seja, quem a construiu e constrói há mais de duas décadas.
Ao longo da viagem, percebe-se que as feiras não são somente um evento, que acontece no início do ano agrícola da região, correspondente ao segundo semestre do ano. Elas são um dispositivo de ação coletiva que fortalece as redes territoriais ao reconhecer o trabalho das mulheres e juventudes, ao refletir sobre estratégias de enfrentamento ao agronegócio e o pacote tecnológico – imposto pela revolução verde, ao ampliar a Rede de Famílias Guardiãs e todo seu conhecimento. Ao trazer para o centro valores como a solidariedade, partilha e cooperação.
Uma, dentre as diversas estratégias de promoção da agroecologia e combate ao avanço do agronegócio, com à contaminação por transgênicos por exemplo, as feiras surgem para atender uma necessidade percebida pelas famílias agricultoras: a crescente e preocupante erosão genética, principalmente de espécies de adubação verde e variedades de cereais como milho e feijão. Importante mencionar que junto a defesa das sementes crioulas, preserva-se, também, os saberes e práticas tradicionais atreladas a elas, ou seja, sua cultura.
Como uma grande bacia hidrográfica, nutrindo um vasto e complexo ecossistema de diversas relações, a nascente da comunidade do Pinhalão verteu água no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Juntando-se a outras nascentes e córregos, torna-se um rio, que corre no centro-sul do Paraná e planalto norte catarinense, território de atuação do Coletivo Triunfo e do Programa Local Paraná da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.
“As feiras surgiram pela nossa organização, aí percebemos que tinha muitos agricultores da agricultura familiar buscando por variedades crioulas, então deu-se a iniciativa de reunir todos para a troca de sementes e o mais importante as experiências compartilhadas”, afirma Bernadete Grein, agricultora de Canoinhas (SC), ao relembrar como as feiras surgiram. Para as famílias agricultoras, o acesso a uma grande variedade de sementes é a principal motivação para a participação nas feiras, que apontam também como relevante o processo de troca destas sementes e a perspectiva do conhecimento adquirido e trocado nestas oportunidades. Além destas, o resgate de variedades de sementes antigas que foram perdidas pela comunidade em questão, a convergência de sementes crioulas adaptadas à região, motivações relacionadas à produção orgânica e à alimentação saudável, encontro com companheiras e companheiros nas feiras e o caráter de luta.
No começo não havia comercialização, tudo era trocado entre as famílias. Mesmo com a imposição do modelo neoliberal defendido pelo agronegócio, a região, conhecida por sua alta produção de cereais, mantém fortes traços da agricultura familiar camponesa, como a solidariedade, partilha e construção comunitária. A partir do crescimento das feiras – em quantidade de eventos, locais e número de participantes – os acordos foram continuamente revistos, primeiro com a venda de sementes nas bancas, depois na entrada de produtos beneficiados e artesanato. O mesmo procedimento ocorre com outras inovações, como a organização de seminários e processos formativos, oficinas autogestionadas, debates e proposição de ações conjuntas com os diversos públicos presentes. O rio ganha força, acompanhado pelo crescimento da mata ciliar que o sustenta, incidindo politicamente.
Percurso metodológico: as paradas ao longo de navegação
Compreende-se a sistematização de experiências como um processo vivo, tomando como inspiração as metodologias propostas pela educação popular para trilhar este percurso, onde a mobilização de diferentes sujeitos é primordial. Esse cuidado possibilita colher múltiplos olhares – tanto de famílias agricultoras, entidades e organizações do campo popular quanto de coletivos e instituições de ensino, pesquisa e extensão. A diversidade de pessoas e trajetórias presente na trajetória das feiras é enorme e navegar por essas águas não poderia ser diferente.
O primeiro passo foi buscar as fontes, da onde vinham as nascentes e quem era responsável por sua proteção. Levando em consideração que este trabalho foi realizado ao longo de 2021, um momento grave de instabilidade sanitária e política que o país atravessa, a quantidade de pessoas mobilizadas foi reduzida em número, mas não em representatividade. Após o primeiro contato, foi pedido que as vinte pessoas sugerissem mais duas, cada uma, totalizando um grupo de 60 navegantes. Como houveram indicações duplicadas, demonstrando laços de afetividade e apoio mútuo, ao final foram envolvidas 50 pessoas, considerando critérios de representatividade de gênero, geração e a participação das famílias guardiãs, equilibrada com a participação de técnicas/os, professoras/es, e pessoas com outras inserções.
Dentre diferentes formatos de interação, como diálogos por telefone, encontros virtuais e presenciais e formulários online, organizados a partir de perguntas mobilizadoras, foi possível constatar a importância destes eventos para a incidência política e consolidação de redes territoriais de conservação da agrobiodiversidade.
As percepções convergem nos diferentes grupos, mais uma demonstração de que são processos de organização social e não apenas encontros pontuais. Silvana Moreira, professora do curso de Agronomia do Instituto Federal do Paraná, Campus Irati, afirma que “as feiras significam um espaço de compartilhamento de saberes e sementes. Além de ser um momento de encontrar pessoas que praticam agroecologia. Estas duas coisas mobilizam: o acesso à diversidade de sementes e o encontro para o compartilhamento de saberes”.
O reconhecimento do trabalho diário das famílias guardiãs, realizado com esmero e carinho, é outro ponto importante dessa história. Ao contrário da narrativa da tecnificação do campo, dentro de uma lógica de monocultivo, vê-se a diversidade e exuberância de cores, sabores, conhecimentos partilhados por quem viveu as experiências. Para um dos mais antigos guardiões da região, Antônio Carlos, conhecido carinhosamente como Taborda, as feiras significam momentos de “intercâmbios e trocas de experiências com outros guardiões é muito importante o encontro com os amigos. O intercâmbio que mais me motivou foi o encontro para Pelotas, no Rio Grande do Sul, que eu fui reconhecido com certificado como Guardião das Sementes Crioulas”.
Para quem vive nas matas e águas desse rio, o ato de trocar, conhecer e aprender são as alavancas das feiras para a preservação da agrobiodiversidade, assim como para o desejo de participar das feiras. Através dos diferentes atores, apesar dos diversos ambientes e situações que cada participante ou comunidade se inseriu nas feiras, todos passam pelos mesmos ciclos, que vão de uma ancestralidade da diversidade cultivada nas comunidades, ao surgimento da revolução verde trazendo um abandono local – seja das técnicas de cultivo, das sementes, como até o abandono do próprio meio rural. Tudo isso vindo à tona no movimento de recuperação dessa ancestralidade e fortalecimento dos vínculos territoriais através das sementes. A forte participação das mulheres e jovens neste processo vem em geral ligada a essa busca pela recuperação histórica, seja especificamente das sementes, como também pela necessidade de se reconhecer como atores políticos sempre presentes neste processo.
A feira apoia a estruturação de processos locais e vice-versa em um círculo virtuoso, como nos processos defendidos pela agroecologia. Grupos e associações surgiram após a realização das feiras nos municípios, bem como feiras municipais ganharam força através das famílias já organizadas. Em Rio Azul, o Grupo de Mulheres da Invernada foi motivado pela Feira Regional realizada na comunidade em 2005. “Quando comecei a participar das feiras, foi o que motivou o nosso grupo, estar e resgatar sementes que nós tínhamos e perdemos, e depois trocar nas feiras por outras variedades que nós não tinha. As feiras sempre contribuíram, sim, para deixar de usar os agrotóxicos. E conscientizar, comer alimentos saudáveis e comida de verdade. E conservar as sementes crioulas. A Cirene, Sebastiana com o Sr. José, são pessoas que sempre vão com a gente nas feiras”, relembra a liderança comunitária e agricultora familiar Maria Teresinha Skrzcezkiwski.
No balaio levado no barco, alertas sobre a contínua erosão genética. Os adubos verdes, fundamentais para o manejo e fertilidade dos solos, precisam ser resgatados – desde as sementes à prática tradicional de seu plantio. A contaminação transgênica, do milho e da soja principalmente, o desaparecimento de variedades crioulas de feijão são alarmantes e apontam para a necessidade de criar estratégias de manutenção das espécies e variedades puras. Por outro lado, o balaio aponta também o reconhecimento da importância e aumento de sementes de hortaliças, mudas de plantas medicinais e de flores, reconhecendo a participação das mulheres na conservação da agrobiodiversidade. E, também, a inserção de produtos beneficiados e artesanatos nas feiras.
Contação coletiva dessa história
O processo que motivou esta sistematização – consolidação de redes territoriais de conservação da agrobiodiversidade – prova que a única maneira possível de contar a história das feiras é coletivamente, pois assim elas são organizadas, enquanto processo. Buscando, novamente, inspiração nas metodologias propostas pela educação popular, e realizando as necessárias adaptações ao contexto em que a atividade foi realizada, houve um chamado para exercitarmos nossa capacidade de improvisação, inteligência coletiva e escuta para contar uma história em que o enredo não está dado, mas foi vivenciado por todas as pessoas que estavam ali.
Na história observou-se que para as/os participantes a feira tem muito mais que sementes. As histórias pessoais se intercalam com as histórias das feiras mostrando esse sentido de transmissão do conhecimento por trás das sementes. O papel das mulheres como protagonistas das feiras e o seu trabalho na preservação da agrobiodiversidade, a importância da partilha, assim como a solidariedade das famílias guardiãs que participam das feiras. Assista a essa memória viva das feiras aqui.
Nos caminhos apontados durante a navegação, levanta-se possibilidades ao olhar conjuntamente para o horizonte que aponta. Destaca-se a importância da retomada dos campos de multiplicação de sementes, principalmente das espécies de adubação verde. Essas atividades trazem consigo mais do que as sementes crioulas, apresentam alternativas viáveis de produção, como as experiências com o adubo da independência, incentivando os grupos de famílias agricultoras e guardiãs a participar ativamente em todas as suas etapas – plantio, crescimento, colheita e o acompanhamento em todo o processo. Os campos de multiplicação estimulam os vínculos entre as pessoas e organizações de base, dinamizando as redes territoriais de conservação da agrobiodiversidade.
Além dos campos de multiplicação, a retomada das campanhas conjuntas de resgate e conservação das variedades crioulas, como o “Milho é Nosso”, “Adote uma semente crioula e seja uma nova família guardiã”, incentivadas pela AS-PTA, Coletivo Triunfo e outros grupos que atuam na defesa da agrobiodiversidade. no Paraná. Todas essas ações apoiam a necessária e já apontada reestruturação do trabalho de base, junto às comunidades rurais e urbanas.
Conheça melhor essa história assistindo ao vídeo aqui.
Navegue por esse rio
Esta publicação foi pensada como um convite, para que seja possível navegar, revisitar, reconstruir coletivamente essa história e, a partir dos acúmulos e aprendizados adquiridos na viagem, remar em direção a construção de lutas e conquistas coletivas, em defesa da agrobiodiversidade na região centro-sul do Paraná e planalto norte catarinense.
Agradecemos a todas as pessoas que, em seus territórios, fazem da conservação das sementes crioulas e da agrobiodiversidade a sua bandeira de luta e sua vida.
Suba nesse barco clicando aqui..