“A gente já vinha sofrendo com os 10 anos de seca. Antes da pandemia, com a análise do milho, a gente descobriu que as nossas sementes bem antigas, que vieram do meu avô para meu pai e do meu pai para mim, estavam contaminadas [pela transgenia]. Ficamos horrorizados. Era a semente que a gente tinha. Fizemos contato com o sindicato”. O relato é de Gerlane Isidoro dos Santos, agricultora, guardiã das sementes da Paixão e uma das coordenadoras do Banco de Sementes do assentamento Cícero Romano, antigo sítio Arara, na zona rural de Areial.
O município de Areial é um dos 13 cujo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais que faz parte do Polo da Borborema, um fórum que, além dos sindicatos, reúne mais de 150 associações comunitárias, uma associação regional, a EcoBorborema, e uma cooperativa da agricultura familiar, a CoopBorborema. O Polo tem assessoria técnica e política da AS-PTA.
No território de atuação do Polo, dezenas de comunidades de famílias agricultoras passam pela mesma situação do assentamento de Gerlane. Segundo Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA que acompanha o tema das sementes crioulas, o monitoramento feito pela Comissão de Sementes do Polo identificou que os estoques comunitários, guardados nos Bancos de Sementes Comunitários (BSC), estão comprometidos, seja pela perda da semente por conta da seca, seja pela contaminação do milho pela transgenia.
E aí uma ação emergencial foi planejada pela Rede de Sementes do território e está sendo executada como parte da estratégia da campanha “Não planto transgênico para não apagar minha história”. A ação consiste em ir ao encontro das comunidades, exibir vídeos curtos feitos para a campanha que abordam os riscos e consequência da contaminação do milho da Paixão pela transgenia e como ela acontece, refletir sobre as informações apresentadas e, por fim, pactuar coletivamente o que a comunidade está a fim de fazer para ampliar a proteção as suas sementes de milho. A ideia é motivar mais famílias e mais comunidades a plantarem seus milhos em condições de segurança com relação à contaminação. (Conheça as animações da campanha aqui e aqui)
Na comunidade de Gerlane, ela afirma que a reunião que tiveram foi a primeira para discutir este assunto com a presença de todos os sócios. “Emanoel veio explicar o que era a semente transgênica. Além deste conhecimento novo, soubemos também que aquele milho que o governo doava [o distribuído para alimentação animal pelo Programa Venda de Balcão] é uma fonte de contaminação. Quando a gente ganhava, ficávamos satisfeitos. Agora, a comunidade jamais vai fazer uma coisa dessa [plantar estas sementes]. Eu conversei com algumas pessoas para saber o que tinham achado e elas saíram da reunião com esta consciência”, conta Gerlane.
Reuniões como essa realizada no assentamento Cícero Romano, em Areial, aconteceram em outras oito comunidades de Lagoa Seca e Solânea. E também foram feitas para as lideranças dos 13 Bancos de Sementes Comunitários de Queimadas em dois momentos. Todas as comunidades passam por situação de emergência em relação ao estoque de sementes nos BCS, principalmente, as de milho crioulo.
Só em Solânea, outro município acompanhado pelo Polo, houve reuniões em seis comunidades. “A perda de sementes de 2020 para 2021 foi total, principalmente dos milhos pontinha e jabatão. Mas os agricultores e agricultoras estão na luta, não baixaram a cabeça”, assegura Josileide Marques da Cruz, conhecida como Leide, que faz parte da diretoria do sindicato de Solânea e, no Polo, acompanha as Comissões de Sementes e de Infância e Juventude.
“As reuniões têm sido boas, participativas, apesar das perdas das sementes não só para alimentação humana, como para alimentação animal. As famílias perderam também o milho que serviria para a ração animal”, acrescenta Leide, contando que as despesas com a compra de água tanto para consumo humano quanto animal está pesando no bolso das famílias. Cada carro-pipa, com 10 mil litros, custa entre R$ 150 a R$ 220, de acordo com a região de Solânea. No território da Borborema, o valor do pipa pode chegar até R$ 250 a depender da distância com a barragem de abastecimento do carro.
“A seca, mais a pandemia, mais o declínio das políticas públicas estão fazendo as famílias passarem muitas necessidades”, reforça Emanoel. “Mas, apesar disto, ao final da reunião, muitas pessoas saem com ânimo diferente daquele que chegaram.”
Além das informações e dos esclarecimentos para os sócios e sócias dos BSC, na reunião é calculada a necessidade de sementes para cada comunidade visitada. As sementes doadas são todas certificadas como crioulas por meio dos testes de transgenia realizados com fitas que detectam a presença de proteínas presentes nas sementes transgênicas. Até o momento, foram doadas para os BSC cerca de 1700 quilos de sementes. O material genético sai do Banco Mãe de Sementes Crioulas, cuja função principal é, justamente, abastecer os BCS em situações como essa.
Os encontros presenciais, além de animar as famílias que andam enfrentando tempos de escassez, estão sendo muito eficazes na sensibilização dos guardiões e guardiãs das sementes e, como resultado, têm conseguido fortalecer o compromisso deles só plantarem sementes que saibam a sua origem e que foram testadas antes, como Gerlane comprovou em sua comunidade. O sucesso é tamanho que a previsão é que elas sigam acontecendo durante todo o inverno de 2022. “É uma grande oportunidade de dinamizar os bancos de sementes que se encontravam sem reuniões, sem encontros”, atesta Emanoel.
Por conta dos cuidados sanitários necessários devido à pandemia da Covid-19, os encontros são realizados com até 15 pessoas, que usam máscaras e têm à disposição álcool para manter as mãos higienizadas.