AS-PTA e Polo da Borborema ajustam a abordagem metodológica para abarcar as dinâmicas comunitárias e, assim, reforçar ainda mais as organizações comunitárias como forças sociais
No Livro dos Abraços, do escritor latino-americano Eduardo Galeano, há um conto curtinho de um menino que pede ajuda ao pai para aprender a olhar o mar. Na sabedoria inata das crianças, o pedido de ajuda anuncia que é mesmo um baita exercício observar uma paisagem ampla, com diversos elementos em movimento, de forma simultânea e em constante interação.
Do litoral para a Borborema paraibana, este exercício de ampliação do olhar é uma prática constante do Polo e da AS-PTA. Nos últimos dois anos, por meio do Projeto Borborema Agroecológica que que faz parte das onze iniciativas executadas no âmbito do projeto Gestão do Conhecimento para a Adaptação da Agricultura Familiar às Mudanças Climáticas (INNOVA AF), mais uma oportunidade foi construída nesse sentido. Uma das perguntas associadas à ação do projeto foi: Como construir comunidades resilientes às mudanças climáticas?
“Antes, o nosso foco estava nas famílias, ainda que estivessem organizadas em equipamentos comunitários como os Bancos de Sementes ou os Fundos Solidários. Agora, buscamos refletir para entender também o papel das associações comunitárias de base e os grupos informais, aqueles que se encontram para limpar barreiros e fazer outras atividades de forma coletiva”, comenta Roselita Vitor, da coordenação do Polo da Borborema.
“Estamos experimentando uma nova abordagem, que passa a ser comunitária. Nos interessa saber como as famílias se articulam para que possamos provocá-las, cada vez mais, para que façam a gestão comunitárias dos seus bens. Na comunidade Benefício, em Esperança, uma das sete acompanhadas pelo projeto, está sendo construída uma comissão comunitária para fazer a gestão da máquina ensiladeira. Estão pensando nos princípios para o uso da máquina, como será a contrapartida por parte das famílias que a usarem, como vão levar a máquina”, acrescenta ela.
Para refletir sobre esta caminhada de dois anos de inovação metodológica, a AS-PTA e o Polo da Borborema se reuniram no fechar das atividades de 2021. De 15 a 17 de dezembro, as lideranças sindicais e os assessores da AS-PTA, com a preciosa contribuição de Eric Sabourin, pesquisador do Centro de Pesquisa Agrícola Francês (CIRAD) e professor, contemplaram a experiência trazida pelo projeto Borborema Agroecológica (INNOVA AF).
“Esse exercício nas comunidades nos permitiu atualizar o olhar e como isso é importante para a gente atualizar a nossa estratégia de ação também, entendendo que nas comunidades existem muitos dispositivos de ação coletiva”, conta Paulo Petersen, da coordenação nacional da AS-PTA.
“Os agroecossistemas, as famílias, têm o que nós chamamos de ação coletiva. Os Fundos Rotativos Solidários, os Bancos de Sementes, todo o processo de produção e circulação de conhecimentos, os mercados, são várias evidências de que a ação coletiva, nas comunidades e nos territórios, é que permite as grandes transformações que ocorrem nos estabelecimentos”, acrescenta.
Segundo Paulo, a abordagem metodológica no território se organiza por temáticas: recursos hídricos, criação animal, saúde e alimentação, dinâmica de experimentação na área de solos e outros. “Mas, esses temas nas propriedades e nas comunidades são articulados. Esse é o grande desafio, que durante muito tempo, em função da execução de projetos, a gente entra muito através da perspectiva temática. E, tanto o Lume [método quantitativo e qualitativo desenvolvido pela AS-PTA que faz uma leitura sistêmica do agroecossistema familiar], na escala do agroecossistema, como o exercício que fizemos agora nas comunidades [através do Borborema Agroecológica/INNOVA], foi capaz de integrar os temas, que é que os agricultores fazem.”
E o que esta nova paisagem observada pede aos sindicatos? Segundo Rose, o sindicato, cujo papel sempre foi de acompanhar as famílias, pode se sentir dividindo o poder de mobilização, que passa a ser compartilhado com as lideranças comunitárias. “É preciso refletir que junto não se perde poder, mas ajuda na luta municipal, fortalecendo a territorial. No território do Polo, são 13 municípios, com 13 sindicatos rurais e mais ou menos 150 associações de base”.
Estimuladas na perspectiva da ação-reflexão-ação de seus processos, “essas comunidades terão cada vez mais clareza de sua história, sua trajetória na agricultura familiar e do seu papel diante da agroecologia. Um sindicato inteligente vai perceber isso como força social e política do movimento que surge a partir da democratização do poder, a partir da construção de processos emancipatórios”, assegura Rose e acrescenta: “A liderança sindical não é a estrela toda. É estrela junto aos outros. O Polo não quer fazer assessoria à agricultores de forma individual. Assim, a gente não vai muito longe. Queremos que as comunidades discutam políticas públicas a partir de seu olhar. A gente sempre ouviu das comunidades rurais que as políticas públicas contrariam tudo o que eles estavam fazendo. Com força social, tudo muda.”
Observatório Agroecológico – Na Borborema, segundo Paulo, há um esforço sistemático de tirar aprendizados das experiências não só da assessoria da AS-PTA, mas sobretudo do Polo, que se envolve nas análises “para estar, permanentemente, aperfeiçoando suas estratégias de ação, suas formas de organização, para que se coloque, de fato, como protagonista no território.
Pra frente, nós estamos com um desafio de não perder de vista a continuidade desses esforços de análise e construção coletiva de conhecimento sobre o território. A gente tem se colocado o desafio de aprimorar os mecanismos de monitoramento que já desenvolvemos no decorrer dos anos. Um deles é o próprio método Lume, que foi desenvolvido para verificar as mudanças que as inovações vão gerando efeitos na vida das famílias, na economia. Agora, estamos tentando ver também as mudanças do ponto de vista das dinâmicas coletivas no território, não na escala só das famílias.
O Observatório é um elemento de organização e sistematização do conhecimento e de debate do Polo, da AS-PTA, das organizações parceiras de pesquisa, de prefeituras, que estão alinhadas pela ideia de desenvolver um projeto de desenvolvimento fundamentado na agricultura camponesa e na agroecologia”, explica Paulo.
É que quando a paisagem tende a ser mais ampla, o esforço necessário para observá-la pede que outros olhos se juntem nesta missão. Assim escreveu um dia Eduardo Galeano.
Lendo o processo
Parceiro da AS-PTA e dos sindicatos rurais de alguns municípios da Borborema antes mesmo do surgimento do Polo, o francês Eric Sabourin testemunha, a partir do olhar de quem vê de fora, os grandes momentos desta caminhada de 30 anos de construção de um território agroecológico na região agreste da Paraíba. Para organizar seu olhar, Sabourin divide as mudanças observadas em quatro grandes focos: um primeiro sobre a evolução do movimento; sobre a metodologia, que divide na abordagem comunitária e o projeto político do território. Abaixo, seguem suas percepções contextualizadas nos anos de parceria.
Sobre a evolução do movimento na Borborema
Quando após três anos de trabalho de acompanhamento dos grupos de agricultores experimentadores junto com AS-PTA e os STR de Lagoa Seca, Remígio e Solânea, saí em 2001 e o desafio era consolidar o Polo da Borborema e o trabalho na escala territorial, à época, com 16 municípios em lugar de três. A equipe da AS-PTA era pequena e a do Polo ainda não existia, só tinha os agricultores da diretoria e as bases nos STR municipais. No entanto, foi uma aposta que deu certo, graças ao intenso trabalho de capacitação e aprendizagem mútua em torno da gestão do conhecimento e, em particular, do conhecimento agroecológico.
Em 2015 e 2016, quando voltei a visitar as comunidades onde tinha trabalhado, fiquei impressionado pelo avanço sociotécnico que permitiu resistir e superar os períodos cada vez mais longos e intensos de seca.
A capacidade organizativa se traduziu na valorização dos produtos locais e agroecológicos por meio de uma economia solidária (economia mista associando práticas de reciprocidade e práticas de troca comercial), privilegiando circuitos curtos e mercados de proximidade com qualidade e preços acessíveis (rede de feiras agroecológicas, acesso aos mercados de compras públicas, Ecoborborema, venda direta em vários pontos, novos empreendimentos rurais).
Hoje, na visita às comunidades e nas reuniões realizadas com o Polo durante o seminário, o que me impressionou foi o crescimento incrível da organização das mulheres. A afirmação da agroecologia com uma autonomia feminista nos atos e não apenas no discurso. E a renovação das lideranças dos STR, do Polo e das organizações coletivas e redes por mulheres e jovens, muitas e muitos de uma grande competência e qualidade de liderança.
Isso dá uma força nova com as e os líderes jovens, mas, sobretudo, uma estabilidade e uma ancoragem humana, doméstica e feminina, com as mulheres na cabeça de associações, STR, diretoria do Polo, Presidência da CoopBorborema e Ecoborborema.
Sobre a metodologia observação-ação
A Borborema se transformou num verdadeiro laboratório social e técnico de experimentação, adaptação local e aprimoramento com renovação e qualidade de várias ferramentas de diagnóstico da realidade, de experimentos, de planejamento e de monitoramento.
A originalidade é a socialização e o compartilhamento dessas ferramentas com um número cada vez maior de atores e interlocutores, muito além das únicas lideranças. Isso se deve a uma dinâmica extremamente participativa, original e aberta em redes, mas também há um considerável, laborioso e lento processo de acumulação de formação e capacitação, por vezes um pouco mais formal, mas sempre ligado à ação e a uma gestão compartilhada do conhecimento.
Sobre a abordagem comunitária
Depois de um investimento nas bases da produção, outro na valorização e agora beneficiamento dos produtos, o processo hoje investe na valorização das práticas de reciprocidade camponesa e rural entre rurais e urbanos, com dispositivos coletivos abertos (feiras livre, feiras agroecológicas, fundos rotativos, redes temáticas), mas também com uma defesa dos bens e recursos comuns (as organizações (associações e cooperativas, STR), as feiras, os reservatórios de água, sementes, equipamentos coletivos ou compartilhados, trabalho mútuo, conhecimentos e saberes).
Essa nova abordagem, fundada no Método Lume, é essencial e revolucionária do ponto de vista paradigmático e metodológico. A aplicação do Lume evidencia e mede as práticas e os fluxos de economia não mercantil. Os próximos passos já em preparação entre AS-PTA e o Polo são exercícios do tipo Lume na escala da comunidade e do território e não apenas dos agroecossistemas.
Nesse processo, o enfoque de trabalho em redes é essencial porque abre para a participação e interlocução de outros atores: outras ONGs como AS-PTA e outras organizações de agricultores familiares e camponeses, ASA Paraíba, mas também de pesquisadores como nós do Cirad, os colegas da Embrapa, INSA, das Universidades, e cada vez mais entidades municipais (prefeituras, secretarias), ou consórcios de municípios.
Sobre o projeto político agroecológico no território
Essa construção social segue um rumo porque os atores dessas redes têm, mesmo nem sempre evidenciado, um projeto político transformador. Por isso, esse processo atravessa as maiores dificuldades (secas repetidas, cortes e desmonte de políticas públicas federais, pandemia Covid) e segue firme e renovado, porque é a encarnação não só da resistência, mas da resiliência da agricultura familiar camponesa, das comunidades rurais e de quem toma o tempo de trabalhar com elas.
No contexto atual do Brasil e face aos desafios para o Semiárido, esse projeto político transformador é estratégico e representa, a longo prazo e não só para 2022, uma força que deve ainda procurar se ampliar e tecer alianças com outras expressões dos movimentos sociais a exemplo dos consumidores.