Iniciativa é estratégica para construção de uma política pública estadual que amplie os rebanhos de animais adaptados ao Semiárido
Faz mais sentido criar animais adaptados à região ou adaptar a região aos animais? Entenda por adaptar a região ao animal como criar um ambiente artificial e comprar ração para que a criação não morra de fome por não se alimentar do que existe no meio natural ou adoeça por conta da temperatura para a qual ela não é adaptada.
A resposta parece óbvia, não é? Mas, nem sempre o que é óbvio é um caminho adotado naturalmente pelos programas públicos. “A maioria das políticas públicas tende a trabalhar com as raças exóticas”, comenta Felipe Teodoro, assessor técnico da AS-PTA.
Acontece que os animais exóticos são muito frágeis para superar os períodos prolongados de estiagem da região e não se alimentam das plantas da Caatinga, adoecendo facilmente e tendo seu desenvolvimento prejudicado. Isso tudo gera prejuízo para quem cria e prejuízo para a população em geral porque o dinheiro público não estava sendo bem empregado.
Além disso, para manter os animais vivos e produzindo leite e carne, é muito comum o desmatamento da Caatinga para criar um lugar mais “aconchegante” para as raças exóticas. E é sabido que a retirada da cobertura vegetal é o primeiro passo para o processo de desertificação do solo.
Para mostrar que a distribuição de animais adaptados ao Semiárido é um caminho mais viável como política pública, a Articulação ASA Paraíba está desenvolvendo o projeto Fortalecimento de Sistemas Familiares de Criação Animal com Raças Nativas na Paraíba. A iniciativa foi a vencedora da chamada pública 01/2021, promovida pela Secretaria Estadual da Agricultura Familiar e Desenvolvimento do Semiárido.
Trata-se de um projeto piloto que envolve quatro territórios de atuação da ASA-PB e tem como organização âncora a AS-PTA e o envolvimento do Patac, Centrac, Polo da Borborema, Coletivo, Folia e Casaco. A partir dessa experiência, pretende-se construir com o governo estadual um programa público mais adequado para as necessidades das famílias agricultoras portadoras de conhecimento sobre a criação dos animais nativos, sejam aves, caprinos ou ovinos.
Na dinâmica das famílias rurais, os rebanhos representam a sua fonte de proteína animal e são também a poupança para quando houver necessidade de investimento de um valor alto, para estruturação da propriedade, quitação de empréstimos e custos com saúde na família. Além disso, os produtos derivados, como queijo, leite, carne e ovos também são fonte de renda para as famílias.
Apesar dessa importância para a segurança alimentar e geração de recursos, criar animais para as famílias mais pobres é quase impossível pela necessidade de um investimento inicial. Daí a necessidade desta atividade ser impulsionada por ações governamentais.
“Nós, do governo do Estado, acreditamos nesse processo na perspectiva de transformação das políticas públicas, lembrando que se trata de um processo inovador do ponto de vista do público”, assegura Jailson Lopes, gerente de projetos da Secretaria Estadual da Agricultura Familiar e de Desenvolvimento do Semiárido.
Público do projeto – A iniciativa com as raças nativas vai atender, em 15 meses, a 80 famílias de oito municípios – Soledade, São Vicente, Esperança, Queimadas, Campina Grande, Boqueirão, Aroeiras e Caraúbas que estão distribuídos nos Territórios Rurais da Borborema, Vale do Paraíba, Seridó paraibano e Cariri oriental.
Todas as famílias têm um perfil específico: estão inseridas em redes que reúnem agricultores e agricultoras experimentadoras e participam de processos de formação sobre convivência com o Semiárido e transição agroecológica, a exemplo dos promovidos pelos programas Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas. O que significa dizer que são famílias que já têm uma certa segurança hídrica em suas propriedade com as tecnologias que guardam água para beber e produzir alimentos e/ou criar animais.
Além disso, são famílias que estão em processo de transição na sua forma de plantar e cuidar da biodiversidade tornando-se agricultores e agricultoras agroecológicos. Sendo assim, já estão sensibilizadas quanto à importância das raças nativas de animais bem como das sementes vegetais crioulas, conhecidas na Paraíba como “sementes da paixão”.
Mulheres e jovens – O projeto destina atenção especial para mulheres e jovens. Por vários motivos. Um deles é que ao longo dos anos tem sido esse público o maior responsável pela conservação das raças de animais adaptados as condições de semiárido.
Além disso, os programas governamentais, em geral, só reforçam a cultura patriarcal que põe o homem como gestor da economia familiar e proprietário dos meios para obtenção da renda familiar monetária. Dessa forma, as mulheres e os jovens seguem numa relação de dependência financeira que leva a vários tipos de violência familiar e até de vulnerabilidade diante de questões como as mudanças climáticas.
Historicamente nas grandes secas, os homens tendiam a deixar a sua terra para buscar trabalho e renda em outras regiões, enquanto a mulher permanecia com a responsabilidade de alimentar todos os filhos em situações muito difíceis. E, ainda mais, sem acesso a conhecimentos e sem autonomia para gerir sua propriedade.
Por outro lado, as mulheres e os jovens se interessam, naturalmente, pela criação de animais de pequeno e médio porte que precisam de pequenos espaços na propriedade.
“Para a juventude, o projeto traz autonomia”, afirma Mateus Manassés, um jovem que tem um papel de liderança na associação de sua comunidade e também no sindicato rural de Queimadas, que faz parte do Polo da Borborema. O Polo é um coletivo que reúne 13 sindicatos, mais de 150 associações rurais, uma associação regional e uma cooperativa da agricultura familiar estadual.
“Os animais nativos são fundamentais para o jovem gerar renda para seu núcleo familiar e para se manter na sua terra, sem precisar estar migrando em busca de emprego, evitando o êxodo rural, que expulsa o jovem do campo”, complementa ele.
Um longo caminho – Antes da concretização desse projeto piloto, foi preciso sistematizar os conhecimentos das iniciativas já existentes de conservação e multiplicação das raças nativas junto às famílias agricultoras.
A partir de diálogos com o Instituto Nacional do Semiárido (INSA), ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, e a secretaria estadual de Agricultura Familiar e Desenvolvimento do Semiárido, a Rede de Criação Animal da ASA Paraíba construiu um caminho para que esse projeto piloto se tornasse real.
“Foram realizadas uma série de reflexões a partir de três grandes seminários e nos fizemos algumas perguntas mobilizadoras como: Como potencializar e reconhecer o conhecimento dessas famílias criadoras das raças nativas que é extremamente importante quando já estamos vivendo as mudanças climáticas?; Como a gente fortalece a criação de animais a partir das raças nativas que têm total independência dos insumos externos à propriedade? E como fortalecer as redes de famílias guardiãs das raças nativas?”, destaca Roselita Victor, da Rede de Criação de Animais da ASA Paraíba e também da coordenação do Polo da Borborema.
Fases do projeto – Iniciado em outubro do ano passado, o projeto está em plena execução. Já foram realizadas reuniões para mobilização das famílias e comunidades atendidas, assim como as oficinas de intercâmbio de experiências e de conhecimentos. “Nesse momento, estamos na fase da construção das unidades demonstrativas para a criação dos animais”, comenta Felipe, da AS-PTA. Uma inovação na implementação foi a aplicação de um diagnóstico, utilizando ferramentas do método Lume para conhecer os sistemas criatórios e a partir disso, aprimorar as unidades demonstrativas. Essa iniciativa permite executar uma política pública realmente adaptada às condições da agricultura familiar.
Dos 80 sistemas de criação, 40 são de aves, 21 de caprinos e 19 de ovinos. “Além dos animais e da infraestrutura, as famílias vão participar também de um processo de formação para o manejo adequado das raças e sua conservação. Elas vão aprender questões ligadas à reprodução e cuidados sanitários. Essas formações são o diamante do projeto”, assegura ele, acrescentando que para efeitos de conservação da raça, os animais nativos não podem ser introduzidos junto aos animais exóticos.
Elementos chave – No desenho dessa ação, há alguns elementos chave. Um deles é a organização das comunidades beneficiadas pela ação em iniciativas de Fundos Rotativos Solidários (FRS) para que o investimento inicial se multiplique e possa beneficiar a outras famílias.
Os FRS podem ser compreendidos como instrumentos de finanças solidárias que permitem acesso a recursos, animais e tantos outros apoios para promoção da organização e desenvolvimento das comunidades rurais. Sendo assim, a comunidade se organiza em grupos que estabelecem suas próprias regras para que cada participante seja beneficiado a medida que os repasses vão acontecendo.
Outro elemento chave desse projeto é o fortalecimento de redes de criadores de raças nativas. Essas redes favorecem a valorização do conhecimento das famílias e o intercâmbio deste saber entre elas.
Além disso, o projeto prevê também como resultado a elaboração de diretrizes para que essa experiência se torne numa política pública e amplie o seu alcance para todas as famílias agricultoras do Estado.
A iniciativa agrega ação de assessoria técnica, por meio de formações e acompanhamento técnico às famílias, como oferece um recurso na forma dos animais e também de benfeitorias para o espaço de criação.
“É um projeto de Ater [assessoria técnica rural] especializada e emancipadora, com fundamento e base agroecológicas. Soma-se a isso o fomento que permite às famílias qualificar ou otimizar seu sistema de criação com a injeção de recursos não reembolsáveis [para os cofres públicos]”, qualifica Jailson Lopes, do governo da Paraíba.
Ainda há outro aspecto relacionado à iniciativa que Glória Batista, da coordenação da ASA Paraíba, destaca: “Como uma política que parte de uma iniciativa popular, a tendência é que influencie outras regiões e estados do Semiárido brasileiro. Quando uma política nasce dessa forma e é abraçada pelo Estado, se cria uma força que articula outros movimentos em outros lugares, estimulando diálogos entre sociedade civil e Estado. Foi isso que aconteceu com a política das cisternas, que possibilitou que mais de 1,3 milhão de famílias tenham água para beber em todo o Semiárido brasileiro”.