Evento de dois dias reúne famílias guardiãs do Polo da Borborema e promove Festa da Colheita das Sementes da Paixão e produtos da agricultura familiar na praça principal de Lagoa Seca-PB
Em Lagoa Seca, no território da Borborema, na Paraíba, nos dias 23 e 24/08, o assunto foi as Sementes da Paixão. Cerca de 90 participantes da Rede dos Bancos Comunitários de Sementes do Polo da Borborema voltaram a se reunir presencialmente após a pandemia para organizar as demandas relacionadas à proteção, multiplicação e acesso às sementes crioulas e destacá-las nas ações de incidência política junto aos governos municipais e estadual.
E, como estamos em plena época de campanha eleitoral, os pleitos mais estratégicos vão ser incluídos no documento que o Polo da Borborema vai apresentar aos candidatos do campo progressista no dia 13 de setembro.
Os dois dias fizeram parte da 1ª Festa da Colheita das Famílias Guardiãs das Sementes da Paixão da Borborema. O evento é mais um passo da caminhada iniciada desde a fundação do Polo da Borborema em 1996, como lembrou Manoel Oliveira, conhecido mesmo como seu Nequinho, da diretoria do Sindicato Rural de Alagoa Nova e da Coordenação Executiva do Polo.
“No que se refere às políticas públicas que vinham pra gente, costumamos usar dois ditados: Que a corda sempre tora pro lado mais fraco e a água sempre corre para o mar. O que costumava vir de política pra gente era a esmola que o pessoal ganhava para cavar açude para o fazendeiro. Historicamente, as sementes sempre eram moeda usada na troca de favor com políticos”, destacou Euzébio Cavalcanti, poeta, sindicalista, guardião de sementes e agricultor familiar assentado da Reforma Agrária em Remígio.
“Hoje, a gente diz ao governo que nós queremos sementes crioulas. As experiências estão hoje aqui por causa da nossa história de resistência. Hoje, os agricultores e agricultoras guardam e mostram o que antes tinha vergonha porque era dito que não valia nada, que não eram sementes e sim, grãos”, acrescenta Euzébio e complementa referindo-se ao ditado que citou antes: “Hoje, queremos fazer um barramento no rio para que a água não corra toda para o mar.”
Em 2004, o governo da Paraíba reconheceu, por meio da Lei 10/2004, os bancos de sementes como espaço para guardar as sementes locais. “Ou seja, reconheceu essa forma de guardar como legal”, traduz Euzébio. Isso graças à organização social e pressão política, que no território da Borborema teve como um dos protagonistas o Polo da Borborema, em parceria com a ASPTA.
Atualmente, o principal pleito dos guardiões e guardiãs de sementes é que o governo estadual compre e distribua sementes crioulas. “O Estado só quer comprar sementes convencionais das empresas sementeiras”, dispara Euzébio.
No evento, os guardiões e guardiãs acompanharam a apresentação de iniciativas de acesso às sementes da Paixão a partir de ações diversificadas em Lagoa Seca, Montadas, Alagoa Nova e Queimadas. No primeiro, trata-se de um programa público municipal de aquisição e distribuição de sementes crioulas para as famílias guardiãs, em parceria com o sindicato e juntos constituíram o Programa Planta Lagoa Seca. Em Montadas, a ação se deu por meio da intervenção do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e Sustentável, que conseguiu recursos públicos para comprar e distribuir sementes, criando o Programa Conselho no Roçado.
Em Alagoa Nova, foi construído um banco municipal de sementes e com recursos próprios o sindicado comprou sementes de milho livre de transgênicos, fortalecendo a rede municipal de bancos e novas famílias de outras comunidades sendo atendidas pelo banco municipal. E, em Queimadas, as iniciativas de reforço dos estoques foram organizadas pela própria comunidade e gestores dos bancos comunitários de sementes, onde foram realizados bingos e contribuição dos fundos rotativos solidários para aquisição de sementes da paixão e fortalecer os bancos comunitários municipais.
“Fica muito claro pra gente que só com vontade política as coisas andam”, ressaltou Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA, acrescentando: “Vontade política e participação popular”. Ele recordou que, em maio desse ano, também no Banco Mãe de Sementes da Paixão, no distrito de Quicé, em Lagoa Seca, houve uma audiência territorial com o secretário de agricultura da Paraíba, na qual os representantes da Rede de Sementes do Polo questionaram a compra das sementes às empresas.
“O governo do Estado investe R$ 6 milhões, por ano, no programa de compra de sementes. Não podia destinar R$ 500 mil para comprar as nossas sementes da Paixão? Por que não faz? Será que investir parte desse recurso para fortalecer os estoques de sementes crioulas não poderia gerar autonomia para famílias”, criticou.
Nesse momento, Nelson Anacleto, secretário de Agricultura e Abastecimento Alimentar de Lagoa Seca, comenta que, há cerca de dois meses, esteve numa audiência com o secretário da Agricultura, Bivar Duda, e com o secretário do Desenvolvimento da Agropecuária e da Pesca, Joaquim Carneiro, e questionou porque o governo não compra direto dos agricultores, como a prefeitura faz. “A resposta é que os editais deram desertos. Mas eles fazem editais voltados para a realidade das empresas, essas não vendem sementes crioulas”.
Segundo o secretário Nelson Anacleto, se não há regra no Estado para a compra direta de sementes aos agricultores, pode-se criar. “Compramos, em 2021, em plena crise por conta da seca, 1,5 mil quilos de sementes de 150 famílias. Em 2022, vamos comprar mais de cinco mil quilos”, observa ele anunciando o ‘caminho das pedras’: Tudo é pressão social para que se tenha vontade política”.
“Para ter alimento de verdade é preciso semente de verdade”, acrescentou Luciano Silveira, da coordenação da AS-PTA na Paraíba, que fez uma explanação sobre o contexto no qual está inserida a luta em defesa das sementes crioulas no território da Borborema, no semiárido paraibano.
“Pra gente entender o tamanho da nossa luta e a importância dela para a gente e para toda a humanidade, precisamos saber contra quem estamos lutando quando defendemos um modo de produção de alimentos de qualidade para ser consumidos pela sociedade”, dispara.
E faz um resgate histórico da implantação da Revolução Verde, nos anos de 1960 e 1970, quando o Estado se associou às indústrias de insumos agrícolas, entre eles, os agrotóxicos, para mudar completamente a forma de manejar o campo e produzir alimentos. Essa política se expressou em todos os campos, como os empréstimos nos bancos públicos para os agricultores familiares que precisavam comprar venenos para que as outras parcelas do financiamento fossem liberadas.
“Hoje, empresas grandes querem dominar a produção de alimentos e de sementes”, afirmou, informando que as indústrias que patenteiam as sementes são as mesmas que produzem mais produtos químicos e mais venenos. “O mercado de alimentos, por exemplo, está cada vez mais concentrado em grupos, que possuem grandes cadeias de supermercados, como o Atacadão, que é do grupo do Carrefour, o Açaí, que é do Wallmart. E essas cadeias vendem produtos ultraprocessados.”
Ao final de sua fala, Luciano verbalizou que o Polo, com sua rede de Bancos de Sementes, defenda a criação de uma política municipal de sementes a exemplo do que acontece com Lagoa Seca e questiona aos presentes: “Como fazemos que a experiência de Lagoa Seca e de Montadas [sementes crioulas compradas com recursos públicos e distribuídas via Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável] possam influenciar outros municípios?”
À tarde do dia 23 foi tão cheia de informações e trocas quanto a manhã. No primeiro momento, foi apresentado o resultado do monitoramento da quantidade e tipos de sementes crioulas que existem nos bancos comunitários do território coberto pelo Polo. Esse monitoramento, realizado há cinco anos, faz parte de um projeto de extensão desenvolvido pela professora Christine Cuebe, da Universidade Federal da Paraíba, com a participação de vários alunos e alunas.
Os dados socializados são de 59 bancos comunitários, com 637 associados, que representam 1.136 famílias. “Contabilizamos 11 espécies diferentes de sementes, além das plantas de roçado, temos frutíferas, forrageiras, oleagionosas, hortaliças, leguminosas e de flores”, informa a professora.
Entre as espécies, o milho e o feijão se destacam. No caso desse primeiro, de 2019 para 2021, a pesquisa apontou um crescimento sucessivo de variedades guardadas nos bancos comunitários. De 145 variedades, em 2019, para 189, em 2021. O crescimento também foi verificado no estoque. De mais nove toneladas em 2019 para quase 26 toneladas em 2021. “Houve um grande crescimento apesar da seca e dos dois anos de pandemia”.
Feira – No dia 24/08, foi a vez da abundância e diversidade das sementes crioulas e dos alimentos gerados pela agricultura familiar – sejam eles frescos e naturais, sejam eles beneficiados – ganharem um espaço públicos para serem mostrados, vendidos, comprados, trocados e doados.
A feira organizada pela 1ª Festa da Colheita das Famílias Guardiãs de Sementes da Paixão da Borborema animou o centro de Lagoa Seca e movimentou a praça da matriz. Estudantes das escolas municipais e estaduais também estiveram presentes acompanhados de suas professoras.
Na feira, foram montadas 13 barracas, uma para cada município que faz parte do Polo, além de mais duas barracas. Uma das para divulgação e venda dos itens da marca Produtos do Roçado beneficiados e ensacados pela EcoBorborema e comercializados região e para as cidades e capitais próximas.
E outra barraca para doação de sementes, que foi sucesso enquanto durou o estoque de sementes crioulas. O milho preto, batizado de Milho Chile por um dos primeiros guardiões dessa semente no território porque a recebeu de campesinos dos Andes, foi um dos que mais despertou interesses. E a primeira leva dele logo se acabou, precisando ser reposta.
Enquanto no pequeno palco montado um trio de forró tocava para animar o ambiente e representantes das organizações que promoveram o evento deixaram recados importantes sobre essa luta travada no território pelas famílias agricultoras, nas barracas o burburinho era grande.
Dona Iraci dos Santos, vinda do Sítio Furnas, no município de Montadas, levou alguns quilos de uma semente de feijão diferente. Trata-se da variedade chamada Divino Espírito Santo. É o terceiro ano que ela tá com essa semente. No primeiro, devido à seca, o que colheu só ficou para semente no ano seguinte, que já teve uma safra melhorzinha. “Dessa vez, eu provei para poder vender, né, minha filha?” O feijão foi aprovado com louvor tanto pelo bom sabor, quanto pelo seu caldo grossinho, como também pela planta ter sido mais resistente ao excesso de chuvas do que as outras variedades de feijão, como o rosinha.
“Esse ano, lucrei mais ou menos 120kg desse feijão. Ele cresce bem grandão se for plantado numa terra bem forte. Quando ele tá amadurecendo, as folhas começam a cair. E também ele tem uma vagem bem grossa que protegeu mais o feijão”, diz ela.
Pra ser feira mesmo, além dos vendedores é preciso ter os/as compradores/as. Um deles era o casal Angélica Batista e Ramom, que havia levado a pequena Anahi de um aninho. Moradores de Lagoa Seca, eles são clientes das feira agroecológica do município. “A gente já tinha preocupação com a comida e com o nascimento de Anahi é sempre compramos alimentos agroecológicos mesmo. Estou levando o Fubá da Paixão para dar a ela”, conta Angélica, que faz doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.