No município de Remígio/PB, mais de 40 agricultoras familiares agroecológicas passaram a manhã debatendo sobre a relação da política nas suas vidas
“Querem que a gente esteja pra sempre no cabresto. Mas a gente tem que entender que o poder emana da gente. Por isso, eles não fazem momentos como esse. Só fazem carreata e arrastão”.
“Precisamos refletir sobre o papel do voto, mas também de que classe nós somos. A gente precisa trabalhar uma nova consciência nas pessoas”.
“Temos que votar em mulheres, mas não é qualquer mulher que me representa”.
“A gente quer ter acesso às feiras, às cisternas, até ao Bolsa Família… as políticas que a gente quer apontam para a transformação da sociedade”.
“Precisamos reconstruir desde a questão da humanidade a políticas públicas”.
Cada sentença acima foi proferida por uma mulher num encontro que reuniu mais de 40. Foi na terça-feira passada (20). Elas passaram mais de quatro horas, sentadas em círculo, debatendo questões ligadas à vida delas e à política. Diversas nas idades, religiões e graus de envolvimento e experiência na luta social, tinham uma identidade em comum: eram todas agricultoras e vivem na zona rural de Remígio.
Com história de luta para acesso à terra nos anos 1980 e 1990, Remígio é um município com forte articulação das famílias agricultoras, que se organizam no sindicato integrado ao Polo da Borborema. O Polo é um coletivo que reúne 13 sindicatos e cerca de 150 associações comunitárias no território da Borborema.
Pelo tom e animação no debate, deu pra perceber o quão politizada estão as participantes. Também pudera, cerca de 90% delas fazem parte ou já participaram de, pelo menos, uma das 13 edições da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. E a grande maioria estão inseridas nas dinâmicas que mobilizam as mulheres nas comunidades rurais, seja os fundos rotativos solidários, quintais produtivos, beneficiamento de alimentos, bancos de sementes comunitários, feiras, quitandas agroecológicas, entre outras.
A primeira pergunta feita ao grupo foi: Qual o sentimento sobre o momento que estamos vivendo no Brasil?
As respostas contaram de sentimentos de revolta, angústia, medo, indignação e esperança. Uma das primeiras a relatar o que sente falou da importância do Bolsa Família para sua família. “Quando fui me cadastrar no benefício, Kaymmi tinha seis meses [hoje tem 16 anos e vai votar pela primeira vez]. O Bolsa Família ajudou a muitas famílias. Tiro por mim. Me ajudou e me ajuda muito até hoje. Sinto muita revolta com a mudança do nome do programa”.
Outra mulher fala do medo que a habita. “Desde que esse homem ganhou, vivemos da misericórdia de Deus. Um negro, um pobre não podia entrar na universidade. Quem botou eles para dentro? E, nessa pandemia, quantas pessoas morreram porque não tinha a vacina? E hoje quantas pessoas passam fome. Agora tá tudo caro. Tá difícil”.
“Fico indignada. Nossa família se ajudava para não passarmos necessidade. Aí veio o presidente Lula e nos deixou de cabeça erguida. E tem gente da minha família que ainda apoia essa criatura [o presidente atual]!!!”
“O que sinto é que há muita falta de amor [por parte do governante do país]. Como uma criança vai passar o dia todo com centavos? Muitos deles não têm comida em casa. Como vão se alimentar na escola com centavos?”
“Tenho medo de pessoas fanáticas que possam nos agredir. O que escuto são ideias preconceituosas de raiva e ódio. Mas estamos acostumadas a lutar”.
Depois dessa rodada auscultando os sentimentos, Roselita Vitor interagiu fazendo uma pergunta: “Qual a visão de mundo que as pessoas têm?” Ao perguntar sobre isso, uma das diretoras do Sindicato de Remígio toca numa questão crucial: a forma como olho o mundo revela o mundo para mim. Isso significa que a realidade é moldada pela nossa capacidade de ler os acontecimentos.
“Deus não está acima de todos. Deus sempre caminhou ao nosso lado seja qual for a religião que a gente professe. O que se quer é imprimir sobre nós é um olhar estritamente equivocado”, pontua Roselita dialogando especialmente com o depoimento de uma agricultora evangélica que tem duas cisternas – uma de água de beber e outra de produção – e mais uma cisterna na casa do filho casado envolvida nas ações do STR de Remígio. Na sua fala, a agricultora contestou a interpretação feita pelos vários falsos profetas: “A gente tem que saber usar a palavra de Deus”.
Participação social – Entre os pontos que Roselita falou ao interagir com os sentimentos que as mulheres revelaram, eis um importante: “As cisternas, as quitandas [da Borborema, que são pontos fixos de venda de produtos agroecológicos], as feiras, a lei de cotas pros negros e até o Bolsa Família são resultado da luta dos movimentos sociais. A defesa das cisternas, por exemplo, começou em 1993, quando nos organizamos para ocupar a Sudene [no Recife]. Se a gente se organizar, a gente também muda a realidade. Não é só missão do presidente. Mas, qual foi a diferença de Lula? Ele nos ouviu.”
Na continuidade, Rose fez várias provocações. “As mulheres negras despontam na pobreza. Temos que refletir sobre isso. Tem jovens que vieram pela primeira vez para uma reunião de mulheres agricultoras. Temos que seguir articulando nossa força. Tudo é luta pra ajudar a chegar aonde chegamos hoje”.
A segunda pergunta – Após as provocações de Rose, foi feita uma segunda pergunta ao grupo depois de circular fotos da Câmara dos Deputados, do Senado, do poder judiciário. “Esse pessoal que se vê nas imagens representa quem?”
“Os ricos, a elite, os homens brancos”, dispara uma. “Essa galera aqui não defende as nossas pautas, dos negros, das mulheres, da agroecologia”, sustenta outra.
E, mais uma vez, a partir da conversa espontânea do grupo, Rose faz outra pergunta a todas: “Somos de que classe?” Entre as várias respostas, uma pontua: “Da classe pobre”.
E Eliane, uma das mulheres presentes na conversa, coleta no ar essa resposta e contesta: “Não somos da classe pobre. Eles [a elite que domina o poder político e econômico] é que nos empobrecem para chegar nesse momento [as eleições] e se favorecerem.”
“Os ricos querem escravizar a gente. Fico indignada quando uma pessoa como a gente diz que vai votar nesse presidente que taí”, acrescenta outra participante.
Foi aí que a conversa chega na parte das classes, da identidade de classe, da consciência de qual lado a gente faz parte. “Não entender quem é você é muito bom para a classe dominante”, sublinha Rose. “O que aconteceu no Brasil foi muito ódio pela redução de alguns privilégios das classes mais altas. E, para justificar esse ódio, disseram que Lula roubou. O Brasil sempre esteve dominado pelos empresários e latifundiários. Por que, no estado da Paraíba, estamos há quase 30 anos tentando ter um programa de sementes crioulas e não conseguimos? Porque quem está do lado de lá [ocupando as cadeiras do executivo e legislativo] representam os empresários”, sustenta.
“Por que as esculturas que temos nas nossas cidades são dos empresários? Os trabalhadores não investem sua força de trabalho no município?”, questiona Rose, lembrando que quando pequena conheceu seu Machado e dona Nina que moravam na Lagoa de Remígio, local de onde surgiu a cidade, e que davam abrigo aos tropeiros que passavam por lá. “Por que a estátua não é do casal?”
Terceiro momento do encontro – “Esse é um momento especial para gente. Estamos refletindo sobre nosso compromisso com a sociedade”, reflete Gizelda Beserra, outra liderança do STR de Remígio. “Quem vai mudar esse cenário?”, diz apontando para as fotos que circularam antes no grupo. “Essa mudança também depende de nós!”
E a conversa rumou para o que fazer para ter mais mulheres nos espaços de poder representativo. “Precisamos votar nas mulheres que nos representam, que assumam a luta das mulheres, da comunidade LGBTQI+. Estamos vivendo dias em que nossos filhos podem ser mortos pelo ódio que esse governo suscita nas pessoas. Estamos vivendo dias em que nos falta a humanidade. Vivemos sob o ódio. Há um panorama de agressões”, lamenta Rose.
E cada participante foi convocada para levar mais adiante as reflexões que foram feitas durante a manhã. “Cada uma aqui tem o compromisso de falar disso com as vizinhas”, recomenda Rose.
Para encerrar a manhã, uma música, como é costume das mulheres que fazem a Marcha na Borborema. A canção entoada pelas vozes femininas foi Nego Nagô que diz assim em uma das estrofes: “Tem que acabar com essa história, de o negro ser inferior. O negro é gente e quer escola, quer dançar samba e ser doutor.”
A iniciativa – O Encontro Mulheres e Política, proposto pelo Sindicato de Remígio e pela AS-PTA, é uma das iniciativas de incidência política que acontecem em vários territórios do Semiárido. Articulações como a ASA, a ANA e a Rede Ater Nordeste de Agroecologia estimulam esses processos para ampliar o voto consciente e para a eleição de candidatos/as comprometidos/as com as pautas de interesse das famílias agricultoras agroecológicas. Queremos interferir no jogo de forças políticas que determinam as leis e o destino dos recursos públicos.