A proposta de nos aproximarmos da culinária quilombola das comunidades do Maciço da Pedra Branca/Rio de Janeiro surge de uma parceria realizada junto à Comissão de Quilombos do projeto Sertão Carioca: conectando cidade e floresta, com os grupos de pesquisa e extensão CulinAfro da UFRJ Macaé e Núcleo de Políticas em Alimentação e Nutrição Escolar (Nucane) da UERJ, que originou a pesquisa “Cozinhas quilombolas: campo de saberes e fazeres para a agenda da educação em saúde e da promoção de alimentação adequada e saudável na escola”. O objetivo deste livro é relembrar e sistematizar as memórias sobre a comida e a cozinha afro-brasileira local, do Maciço da Pedra Branca/Rio de Janeiro, envolvendo os saberes, os fazeres e os afetos, a partir das narrativas de vida das famílias das comunidades quilombolas.
Nas próximas páginas vocês verão receitas contadas por representantes, sobretudo mulheres, dos três Quilombos do Maciço da Pedra. São receitas que estão presentes na memória de suas infâncias. Comidas preparadas e partilhadas por suas mães, avós, tias e outras mulheres, em diferentes momentos da vida da comunidade. Comida do cotidiano, comida oferecida às mulheres quando dão à luz, comida que cura, comida para dar sustância, comida para festejar, comida para rezar e comida para receber e partilhar. Comidas que expressam a biodiversidade e biointegração com o território e os quintais. Expressão da cozinha afro-brasileira ancestral e atual, compartilhada de geração em geração, em um processo de conservação e inovação.
No nosso primeiro encontro, a conversa sobre lembrança das comidas, das cozinhas e dos quintais da infância mostrou como estes espaços fazem parte das histórias das famílias e dos territórios. A ideia deste livro de receitas veio dos representantes das comunidades presentes no encontro: Leo, Leila, Adriano, Tati e Alice.
Combinamos que as conversas sobre as receitas aconteceriam em encontros nos três territórios. Encontros de troca de práticas, saberes das cozinhas e receitas culinárias de famílias de cada quilombo. Cada território recebeu os demais grupos com um prato que foi preparado e partilhado coletivamente.
Foram realizados os encontros nos quilombos do Camorim (Jacarepaguá) e do Cafundá Astrogilda (Vargem Grande). Em função do momento da pandemia por COVID-19, o encontro do quilombo Dona Bilina (Rio da Prata) foi adiado presencialmente, acontecendo virtualmente para definição final das receitas que entraram no livro e, posteriormente, presencial para partilha e complementação das receitas. Nos dois locais onde os encontros aconteceram presencialmente, a comida foi preparada no quintal, no fogão de lenha, perto das hortas.
A conversa sobre as comidas e as cozinhas, no encontro da CQ Cafundá Astrogilda, aconteceu durante o momento de preparo da moela com batata. Para a condução da conversa no primeiro encontro, fizemos uma roda de conversa com as seguintes provocações: Quais são as comidas de família (aquelas do dia a dia, das festas, do cuidado, marcantes, dolorosas e alegres)? Como essas comidas são preparadas? Quem são as pessoas de referência na cozinha? Como é a estrutura das cozinhas: tipo de fogão, utensílios (colher de pau, pilão, ralador, peneiras, fogão a lenha etc.)? Há alguma conexão com os quintais (plantas de comer e curar)?
No segundo e no terceiro encontros, a conversa continuou em volta do fogão a lenha e nas cadeiras no quintal enquanto a galinha com quiabo era preparada, no quilombo Cafundá Astrogilda, e a feijoada, no quilombo Dona Bilina. As histórias das comidas eram contadas como parte das histórias de vida das famílias e dos territórios. As falas das rodas de conversa e nas conversas individuais que aconteceram durante esses encontros foram gravadas e transcritas e as oficinas foram fotografadas, para registro e para composição deste livro de receitas. Além disso, as observações e reflexões partilhadas durante os encontros foram registradas em diário de campo pela equipe de pesquisadoras.
O livro de Manoel Querino A arte culinária na Bahia inspirou a forma de contar as receitas neste livro. Ao invés de usar as formas convencionais de descrição das receitas, que traz ingredientes e suas quantidades e modos de preparo, com descrição detalhada das etapas utilizadas, construímos um inventário, com descrição dos ingredientes e os processos artesanais das cozinhas, a partir das receitas narradas pelas participantes dos encontros. A chef indígena do povo pataxó Deborah Martins diz que quando a gente apresenta uma comida que aprende com a mãe e com a avó, não está apresentando um prato, está contando uma história (SAENZ, 2020).
As receitas foram escolhidas para compor o presente livro, priorizando as que se repetiam nas conversas, as que eram conhecidas em várias famílias, as que tinham relação com alimentos e formas de preparo ancestral e que mostravam significados que diziam respeito a diferentes situações da vida das comunidades. Compreendemos que este registro pode compor o acervo das CQ do Maciço da Pedra Branca, sendo acessado pelas crianças, jovens, escolas e pelas próximas gerações, valorizando suas histórias e resguardando as memórias do território, por meio da história das cozinhas e das comidas que os trouxeram até aqui.
O trabalho retratado aqui integra ações do Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta, coordenado pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa – AS-PTA, que visa contribuir para a conservação dos recursos naturais da floresta urbana do Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), com base no manejo sustentável da biodiversidade, valorizando os saberes e práticas de comunidades tradicionais.
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Memórias e Receitas das Cozinhas dos Quilombos do Maciço da Pedra Branca