Os últimos quatro dias da visita de campo da Mesa de Diálogos Energia Renovável: Direitos e Impactos escancarou a necessidade de regulamentar a atividade de geração de energia renovável no Brasil. No final de semana, a comitiva federal esteve visitando algumas comunidades afetadas pelas indústrias de energia eólica há cerca de oito anos, entre elas a comunidade Sobradinho, emblemática por ser impactada por uma lista imensa de danos causados pelas torres eólicas.
Na segunda-feira, dia 30, esteve na I Roda de Conversa sobre Energia Renovável que aconteceu na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde foi apresentado um conjunto de pesquisas e estudos realizados sobre os danos à saúde, ao bioma, à fauna e à flora.
Na terça-feira, 31, a comitiva foi recebida no Encontro de Juristas e Advogados/as da Paraíba para Debater os Direitos dos Agricultores/as frente a Expansão das Energias Renováveis, promovida pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da Paraíba (Fetag-PB), Polo da Borborema, AS-PTA, CPT, GT Energias Renováveis da Articulação do Semiárido (ASA Paraíba) e ActionAid.
A Mesa de Diálogos é formada por representantes dos três ministérios (do Meio Ambiente, de Minas e Energia e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar), da Secretaria Geral da Presidência da República e dos dois órgãos federais (Fiocruz e Incra). A comitiva esteve durante nove dias (de 23 a 31 de outubro) visitando várias regiões da Paraíba e Pernambuco afetadas pelas indústrias de energia renovável ou na mira delas. Acompanham a caravana o Polo da Borborema, a AS-PTA, a CPT, o MST, Comitê de Energias Renováveis do Semiárido (CERSA), a ASA Paraíba, a Fetag-PB, a Cáritas Nordeste, entre outras instituições.
Na visita às comunidades afetadas pelas eólicas em Pernambuco, a comitiva foi recebida por ventos fortes que faziam girar as hélices e estas provocavam ruídos que forçavam os visitantes a falarem mais alto. As pessoas saíram de lá com uma ideia mais aproximada do que é viver ao lado dos imensos aerogeradores. Na comunidade Sobradinho, tem torre que está há 100 metros da casa de uma família. Além disso, a comunidade também estava sem energia para escancarar ainda mais a contradição.
Com pesquisadores – Na segunda-feira, no Recife, a comitiva seguiu ouvindo depoimentos e cobranças da parte dos atingidos e também de pesquisadores/as que se dedicam a acompanhar e mensurar os danos causados por essas indústrias. Antes da apresentação de dados dos estudos científicos, representantes de comunidades tradicionais e camponesas falaram.
“A gente tá cansado de ficar repetindo e de falar da nossa dor. Pensa que é fácil? É não! Queremos é justiça”, pontuou com voz mansa e firme, Luíza Cavalcante, do Sítio Ágatha, em Tracunhaém, na região da Mata Norte de Pernambuco e vítima da linha de transmissão de energia. “Queremos fazedores e fazedoras de transformação. Qual o cuidado que vai ser dado à saúde da população? Aquele eletromagnetismo sobre os nossos corpos o que vai fazer?”, continuou.
“O que precisa acontecer é vontade política. O governo nos dê a devolutiva de resolução. O que tem mais valor: a saúde do ser humano ou o capital?” E repetiu a pergunta: “A saúde do ser humano ou o capital”, enfatizou o cacique Robério Kapinawá, de um território que fica entre Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, no Sertão de Pernambuco.
“Demorou muito para o governo ouvir a população. E chegou (a comitiva) quando a população já está exausta. (Essas indústrias de energia) criou um ambiente de conflito e individualismo nas comunidades. Onde tem aerogerador, a gente sabe que não tem agricultura. O capital tá no controle da vida das pessoas. As empresas exploram os territórios e expulsam as famílias deles”, disparou Eurenice da Silva, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Nordeste 2, que atua no agreste de Pernambuco.
Na sua apresentação, Nadine Pontes, autora da dissertação “Impactos Socioambientais e Processos de Vulnerabilização de Parques Eólicos em Comunidades Camponesas Tradicionais no Agreste Meridional de Pernambuco” para o Programa de Pós-graduação em Saúde e Desenvolvimento Socioambiental da Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Garanhuns, elencou uma infinidade de doenças provocadas pela presença das torres eólicas nas comunidades onde os seres humanos e não humanos vivem.
“Há uma gama de problemas que só chegam lá depois das eólicas. Antes, essas populações viviam de forma tradicional”, assegurou a pesquisadora. Ela ressaltou também que teve muitas dificuldades de encontrar referências na literatura acadêmica na área de saúde no Brasil e convidou mais pesquisadores/as para estudar esse campo.
Nadine iniciou sua fala apresentando a Síndrome das Turbinas Eólicas, que provocam ruídos de baixa frequência não são captados pelos ouvidos humanos, mas que causam uma série de perturbações nos sistemas neurológico, respiratório, cardíaco e vascular.
Segundo ela, os ruídos de baixa frequência aumentam a produção de colágeno no organismo e, com isso, órgãos que precisam ser flexíveis como o coração e os vasos sanguíneos, ficam rígidos, causando doenças crônicas graves. Nadine também elencou doenças na visão e na audição das pessoas que convivem com as torres eólicas.
Logo em seguida, foram apresentados dados preliminares da Análise Situacional de Saúde da Comunidade Sobradinho, em Caetés. Uma das pesquisadoras envolvidas, Marcela Moura, da residência de Saúde Coletiva com Ênfase em Agroecologia, da Universidade de Pernambuco (UPE), informa que foram mapeadas 55 casas, sendo 12 vazias. Ao redor delas, 83 torres que estão de 100 a 900 metros de distância das moradias.
Das 33 famílias entrevistadas, 84% não têm torre na sua propriedade e 54% desejam sair do território. Lá, 60% das pessoas apresentam sintomas de doenças mentais. “Em Sobradinho, a gente percebe que é difícil sonhar com as torres no território”, revelou Marcela depois da apresentação da situação encontrada e das respostas das pessoas entrevistadas sobre seus sonhos.
Doutorando no curso de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, Alexandre Teixeira, que faz parte do grupo de estudo Vale do São José, e é natural do Agreste do Estado, fez uma fala contundente, afirmando de início que a exploração dos ventos e do sol é uma prática neocolonialista. “Trata-se do Imperialismo Verde. A Casa dos Ventos, por exemplo, é uma empresa de filiação alemã. Portanto, são os europeus entrando nos nossos territórios para explorar.”
Ele informou que o grupo de pesquisa Vale do São José tem duas dissertações sobre os impactos desses empreendimentos de energia renovável. Um deles sobre os impactos nas aves de rapina. E disse que na área da Caatinga, sem torre, foram encontradas oito espécies de coruja. Com torre, duas. Numa área sem Caatinga, uma. Numa área antropizada (modificada pela presença humana) e com torre, nenhuma.
E saiu apresentando dados sobre a fauna, flora, sítios arqueológicos, comunidades rurais, cachoeiras encontradas na região pesquisada, além de expressões culturais como a pega de boi, uma prática centenária dos habitantes.
“Daqui a 100 anos, os contratos estarão acabados, mas o modo de vida vai permanecer.” E acrescentou: “Espero que essa ouvidoria se torne uma fazedoria. Caso não, vamos levar a denúncia para outras instâncias como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não vamos sair do nosso território. Faremos a resistência de forma mais pacífica ou mais combatente”, encerrou sua fala com aplausos empolgados da plateia.
Pela visão dos/as juristas – No dia seguinte, foi a vez da comitiva do governo federal se debruçar sobre questões jurídicas que envolvem os contratos de arrendamentos. Entre os assuntos tratados no dia, uma lista grande de violações de direitos das comunidades invadidas pelas indústrias que transformam a energia dos ventos e o calor do sol em energia.
Um dos que falaram foi o professor da UFPE, Tarcísio Silva. Ele contou que a forma de operar das indústrias de energia revela “práticas de injustiça e racismo ambiental”. Ele citou em sua apresentação um fenômeno que foi nomeado em várias outras falas por conta da centralidade que tem nesse debate, que é a desterritorialização. “As pessoas são expulsas pela deterioração do ambiente onde viviam.”
E seguiu falando dos mecanismos de controle de terras e quem está por trás disso e analisou o discurso das empresas, pautada na “bandeira verde” para “atrair a opinião em torno da defesa desse modelo”. Esse discurso foi tachado pelo professor como o “canto da sereia”.
Por fim, endossou o clamor das comunidades camponesas e tradicionais por um modelo de geração de energia renovável em pequenas escalas e que “possa ser controlada, de alguma forma” pelas próprias comunidades.”
Outra pessoa que contribuiu com o debate foi o professor Rarisson Sampaio da Universidade Regional do Cariri, no Ceará. Ele apresentou dados de uma pesquisa recém divulgada do Inesc, uma organização não-governamental com 42 anos de atuação com sede em Brasília, em parceria com a articulação Nordeste Potência.
Nesse estudo, foram analisados 50 contratos, que se resumiram em sete pelo modelo padrão que são repetidos pelas empresas. “Não precisamos fazer nenhum esforço para enxergar as irregularidades e disparidades de direitos entre as partes”, acentuou. “Qual é o equilíbrio? As famílias só têm responsabilidades e as empresas só têm vantagens. É um contrato extremamente oneroso para as famílias.”
Também participaram dos debates o Defensor Público Federal, Edson Júlio de Andrade Filho, e o Procurador da República, José Godoy Bezerra de Souza. Os dois órgãos construíram, junto à sociedade civil da Paraíba, várias recomendações para o Incra e a Sudema – órgão responsável pelos pareceres técnicos que embasam a emissão de licenças ambientais.
As recomendações exigem, entre outras coisas, que sejam cumpridas medidas como a estabelecida pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, que indica a obrigatoriedade da consulta livre, prévia e informada às populações tradicionais quando um empreendimento atingir seus territórios.
Uma das declarações dadas pelo defensor foi a constatação de que a violação de direitos praticada pelas empresas de energia renovável é sistêmica e repetida sem que o Estado brasileiro faça nada para intervir.
O procurador, por sua vez, iniciou sua fala constatando que o que acontece no Semiárido hoje é algo que se repete historicamente no Brasil. “Sempre que é descoberto um potencial econômico numa região, esse potencial vira desterritorialização em vez de se tornar bem viver para as comunidades. Mas, um dia isso tem que mudar.”
E começou a indicar propostas que podem ser pontos para o governo federal atuar criando parâmetros mínimos para a paridade dos contratos, por exemplo. Outra proposta elencada é a prestação de assessoria jurídica para que as famílias possam negociar seus direitos. A terceira proposta é a criação de zoneamentos para delimitação de áreas de interesse nacional que se sobreponham aos interesses das empresas. “Qual a razão de existir do Estado se ele não faz isso?”.
“O Governo atual tem capacidade de construir políticas públicas. Temos o exemplo do Programa Um Milhão de Cisternas”, reconheceu ele, acrescentando na sequência que é necessário uma política que traga autonomia energética para as famílias e emancipação.
Como representante da Mesa de Diálogos, Fábio Tomaz, ressaltou que esse momento é muito importante para a construção de jurisprudência que impeça que os empreendimentos passem por cima dos direitos das famílias camponesas e falou da sua expectativa de que “o debate se converta em elementos para o Palácio do Planalto avançar.”
Em breve, será entregue um documento assinado pelas organizações e movimentos sociais e comunidades tradicionais e da agricultura familiar com propostas que devem receber atenção prioritária do Governo Federal. As proposições são em dois campos: na reparação aos danos causados e na proteção de áreas consideradas de interesse público como as regiões produtoras de alimentos e de reservas ambientais.